O mago artificial Rubem Fonseca

Publicado originalmente na Intersignos Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA, vol 1, n° 1, 2008, p. 43-52.

Luis Carlos de Morais Junior

José Rubem Fonseca acredita, como Joseph Brodsky, que a verdadeira biografia de um escritor está nos seus livros. Por isso, ou apesar disso, não gosta de revelar dados de sua vida pessoal. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1925, mas vive no Rio de Janeiro desde os 8 anos de idade.

Rubem Fonseca produz contos, romances e roteiros violentos, que tratam de temas caros aos romances negros do tipo best seller, livros que alguns chamam de para-literatura , e que às vezes se vendem em bancas de jornais.

Aparentemente, a um leitor menos avisado, suas obras poderiam também apelar para as fórmulas fáceis dos “mais vendidos”: sexo, mistério, violência, armas, suspense, finais inesperados, frases rápidas, parágrafos ágeis, ação quase sem descrição, uma dicção atlética, sem adiposidades, impecável.

À parte serem seus livros best sellers efetivos, pois vendem bem, não podemos pensar que sejam apenas isto. Há aí algum tipo de para-literatura ou ainda de pára-literatura, o que não se constitui em fraqueza artística ou intelectual. São romances e contos que trabalham o tempo, e o tempo todo com simulacros e simulacros de simulacros , recusando totalmente todo e qualquer tipo de naturalismo filosófico ou literário, apesar de não partir para radicalismos de linguagem (verbal ou literária).

Há uma espécie de ilusionismo, de magia de circo, nas histórias do mago artificial, tão bem feitas que realçam o seu artificialismo, tão agradáveis/desagradáveis, que irritam, ou fazem rir, e, às vezes, fazem rir e irritam ao mesmo tempo. Desde seus primeiros contos até seus mais recentes romances predomina a preocupação em produzir uma escritura com estrutura cinematográfica (a par de escrever reais roteiros para o cinema), ao mesmo tempo que produz teoria da arte em metalinguagem, ideias sobre artes plásticas ou teatro, poemas-contos, tudo se imbricando de forma labiríntica. Rubem Fonseca é um dos grandes contistas pós-modernos brasileiros, que ombreia com mestres do gênero, como o moderno Mário de Andrade e o realista Machado de Assis.

A teoria do pós-modernismo é muito controvertida, no entanto, penso que não podemos considerar as produções sociais e culturais do ocidente posteriores à segunda guerra, à bomba, à robótica, à cibernética, à informática, ao início da conquista espacial, à contracultura e à queda do muro como ainda consistentes com o mesmo solo epistemológico modernista da primeira metade do século XX. Leitores de As Palavras e as Coisas de Michel Foucault entendem, com rigidez acadêmica, que sempre será modernismo enquanto ainda houver ciências humanas e a forma homem. Observamos que mesmo de dentro das ciências humanas a forma homem está sendo ultrapassada, como prova por exemplo a obra de Carlos Castaneda.

O que mais irrita em Rubem Fonseca, irritar sendo aqui uma palavra esotérica, misto de provocar, fascinar e fazer rir com um certo terror, é que não podemos ali mais antever naturalismo ou ficção artificiosa, e sim apenas um duro e cristalino artificialismo, que produz concomitantemente romances que se chamam de vida onde quer que ocorram, sem que com isso possam ser considerados mais naturais ou menos artificiais.
A obra de Jorge Mautner foi toda influenciada por uma babá que o levava desde pequeno aos cultos do candomblé; há aí um paralelismo muito curioso com Rubem Fonseca, cuja babá namorava um bilheteiro, e desde os dois anos de idade do futuro escritor, o levava diariamente ao cinema, onde ele assistia às sessões.

Rubem Fonseca é o escritor que mais faz a comunicação das mídias entre nós; não só entre cinema e literatura, mas entre todas as artes, como realizador e pensador, RF é transdutor, o que significa, faz a transdução, a “tradução” de uma mensagem constituída em um certo código para outro código.

Caetano Veloso revela nos agradecimentos do seu alentado e bem escrito volume Verdade tropical:

Rubem Fonseca (que, num diálogo telefônico internacional com Cristiana Lavigne, ajudou a resolveu um problema de informática) leu o material já organizado e, entre comentários muito encorajadores (também ao telefone), aconselhou (na verdade impôs) três cortes curtos e precisos como as frases que o fizeram famoso. (Duas dessas ordens foram imediatamente seguidas à risca, e uma delas – depois de muita hesitação – apenas em parte.)

No mesmo ano, 1997, RF ainda defende ardorosamente em público o Chico Buarque escritor, como conta em seu site o jornalista Geneton Moraes Neto:

O escritor Chico Buarque de Hollanda recebeu, em Londres, um julgamento em dose dupla (primeiro,verbal; depois, por escrito) de um dos mais bem sucedidos autores brasileiros – Rubem Fonseca, o recluso autor de sucessos como A Grande Arte e Agosto. O cenário não poderia ser mais londrino: às margens do Rio Tâmisa, no Royal Festival Hall, num salão de onde se podia avistar, através das grandes vidraças, a imponência do Big Ben, numa noite clara deste fim de primavera britânico. Os escritores Rubem Fonseca, Chico Buarque, João Gilberto Noll e Patrícia Melo participaram de uma sessão de leitura de trechos de seus livros. Seguida de um rápido debate com o público, a sessão foi promovida para marcar o lançamento da tradução inglesa de obras de Fonseca(The Lost Manuscript/Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos), Noll (Hotel Atlantico), Patricia Mello(The Killer/O Matador) e Chico Buarque (Benjamin e Turbulence).

Diante de uma plateia que superlotou o auditório de uns cento e cinquenta lugares, Rubem Fonseca, o escritor que jamais dá entrevistas, assumiu o papel de defensor público das virtudes literárias de Chico Buarque. A reação de Fonseca foi causada pela pergunta deste correspondente – que quis saber o que é que Chico Buarque tinha a dizer aos críticos que o consideram uma espécie de “intruso” entre os escritores.

Bem-humorado, Chico Buarque disse que se limitaria a traduzir para o inglês a pergunta, feita em português, porque Rubem Fonseca é que iria responder. Fonseca aceitou a missão, na hora. Depois de dar uma baforada num charuto, disse, em inglês:

– Quero dizer que Chico Buarque sempre foi um escritor – a vida inteira. E é um poeta. Noventa e nove por cento dos críticos elogiaram os livros de Chico. Somente um crítico o tratou como um “outsider”. Somente um! Nós, escritores, consideramos Chico Buarque um escritor. Em nome de todos os escritores, quero dizer que temos orgulho de ter Chico Buarque entre nós!
/…/ Vestindo um paletó marron claro, sem gravata, com barba branca e grisalha e cabeleira rala, Rubem Fonseca terminou se mostrando o mais desenvolto entre os autores na hora de fazer uma performance no palco improvisado. Terminada a leitura de trechos das obras de cada um, os autores enfrentaram uma sessão de autógrafos. Rubem Fonseca aproveitou a chance para dar por escrito, ao autor da pergunta sobre a reação dos críticos aos livros de Chico Buarque, um veredito de cinco palavras, datado e assinado (“Rubem Fonseca – June, 1997):
– Chico é um grande escritor.

Sentado ao lado de Chico Buarque, a quem mostrou a frase que acabara de escrever num exemplar da edição inglesa de Estorvo, Rubem Fonseca estava sorridente, mas não escondia uma ponta de irritação com a citação aos críticos que questionaram o sucesso literário de Chico:

– Qual é, oh cara? – disse a este correspondente.

Se depender da critica britânica, Rubem Fonseca não terá nenhum motivo para se preocupar com o amigo: Estorvo mereceu elogios dos críticos de jornais importantes como The Times (“A qualidade da prosa efetivamente exprime a desorientação de uma sociedade no abismo da anarquia”) e Independent (“A técnica narrativa é tão imprevisível quanto um trecho de uma improvisação de jazz”).
Os dois episódios revelam também o quanto RF é generoso.

Em 2004 foi publicada pela Companhia das Letras a reunião 64 contos de Rubem Fonseca . Cada montagem dos contos, cada forma como eles são reunidos, lhes dá uma outra cara, e significados saltam à vista, tornando ainda mais pertinente a sua fruição, possibilitando novos recursos, agenciando novas relações. É como ler contos novos, mesmo quando já tenhamos lido as coletâneas originais.
O livro de estreia de José Rubem, como o chamam seus amigos, foi Os prisioneiros , um volume de contos, gênero no qual se firmou a partir daí como um mestre.

/…/ Em seus contos, a influência do cinema quase que só transparece na linguagem ágil e elíptica do autor. Há um médico que se parece com Carlitos em “Os Prisioneiros”, uma frustrada ida ao cinema em “Madona”, um cartaz do filme “Bom-Dia Tristeza” em “Relatório de Carlos”, e uma acusação ao escritor de “Corações Solitários” de que teria plagiado um filme italiano – o que é pouco se comparado com as referências acumuladas em seus romances. Em “O Caso Morel”, um personagem roda filmes em super-8 e uma mulher sonha com a carreira cinematográfica. Wexler, o sócio de Mandrake em “A Grande Arte”, herdou seu nome do diretor de fotografia Haskell Wexler. Fala-se, em “Bufo & Spallanzani”, de Clara Bow e Jean Harlow, de filmes dublados, e um encontro é marcado na porta do cine Art-Palácio, em Copacabana.

Depois vieram os romances.

No romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, o assunto do romance é cinema . É uma verdadeira obsessão do narrador comparar os fatos que vão acontecendo a cenas de filmes, e utilizá-los como fonte de informação sobre a realidade e de inspiração para suas ações.

E pedras preciosas. E ainda, a política soviética, durante todo o século XX, da revolução à Perestroika. Ou a esquerda possível, no Brasil, isto é, a culpa (estabelecida por outros), por não ser de esquerda. E outro motivo de culpa, constante nos seus contos e romances: o autor se sente responsável pelo suicídio da mulher que amava, pois dirigia o automóvel quando do acidente que a tornou paraplégica, e ela era bailariana, e se suicidou. Desde O caso Morel que o personagem traz a dubiedade de ser violento e cruel com a mulher, e no entanto se dizer inocente, como se sempre fosse obrigado a agir assim, ou tudo fosse um mal entendido.

Agarrei-a pelo cabelo, delicadamente, e levei-a para o quarto.

“Se você quiser, pode me bater”, disse Liliana.

E ainda, o romance é sobre o grande pequeno contista judeu soviético, Isaak Babel.

A capa brinca com o lugar comum do gênero, das capas dos romances de detetive, com o desenho de um papel amarrotado, onde o título está escrito em letra de imprensa de tamanhos diferentes, e a palavra “imperfeitos” no cursivo imitando manual, com respingos da cor vermelha, tinta ou sangue.

O narrador é um personagem sem nome, cineasta que não sonha imagens, só palavras, pelo humor de ser um personagem de livro, onde não há imagens reais, onde o cinema que a prosa projeta para o leitor é todo imaginário. Ou ainda, a brincadeira meio escondida ou com os conhecidos, pois o autor declara que sua inspiração é sempre de imagens, nunca de ideias ou palavras.

“Vou resumir: meu sonho é como se estivesse lendo um livro mal escrito.”

Referindo-se a esse narrador, Sérgio Augusto observa muito bem que como “a maioria dos narradores e protagonistas de Rubem Fonseca ele é um retrato sublimado de Zé Rubem”, e ainda faz um bem informado inventário de algumas das muitas citações e situações cinematográficas do romance e do:

/…/ herói que parece uma bricolagem dos que Hitchcock manipulou em “Janela Indiscreta”, “Intriga Internacional” e “Cortina Rasgada”, o novo e excitante thriller de Rubem Fonseca resolve alguma de suas passagens à maneira do mestre. Nenhuma de forma tão explícita como a tumultuada fuga do narrador e sua namorada de um restaurante da Zona Sul do Rio, no final do oitavo capítulo. Encurralado por um bandido, o casal provoca uma confusão no restaurante para atrair – e ser salvo – pela polícia. Não foi assim que Cary Grant livrou-se de dois bandidos durante um leilão em “Intriga Internacional”? /…/ Curiosamente, não há qualquer referência direta a Hitchcock em todo o livro. O autor compara alguns de seus personagens ao atores Sidney Greenstreet, Alexander Knox, Burt Lancaster, Richard Widmark e Charles Laughton, tira o chapéu para um dúzia de cineastas (John Huston, Orson Welles, Max Ophuls, Stanley Kubrick, Henry Hathaway, Ingmar Bergman, Istvan Szabo, Abel Gance, Eric Rohmer, Wim Wenders, Allan Dwan, Roberto Rosselini, Rainer Fassbinder) – deixando Hitchcock oculto por elipse. A homenagem a Akira Kurosawa (pág. 115) vale apenas pela a intenção, pois quem dirigiu o filme (“Harakiri”) em que o ator Tatsuya Nakadai “abre a barriga com um pedaço de bambu” não foi Kurosawa, mas Masaki Kobayashi.

Pela reversão da piada, pelo sonho sem imagens, só com palavras, por ser um escritor que parece tanto com o autor, pelo autor ter declarado que sua biografia está nas suas obras, e por outras coisas mais, o romance parece um jogo de espelhos, os personagens querendo ganhar vida, e invadir o real, conscientizar-se da sua presença. Como na cena em que o personagem cineasta vê no restaurante um sujeito que parecia seu pai doente, com face esquálida e envelhecida, e quase lhe dirige palavras ríspidas, pois homem o encara, e é aí que ele percebe que era a sua própria face que via, no espelho (como Boris Schnaidernam observa sobre os contos de O cobrador, vemos aí mais uma referência importante a Machado, neste caso, ao seu conto “O espelho”). Quase ao final do romance, quando ele precisa desesperadamente entrar no hospital para conversar com Gurian, e justamente aí seus blefes não funcionam como costumam, ele se vê de novo no espelho, e não se reconhece.

Havia um espelho no vestíbulo do hospital. Olhei minha imagem e a imagem de Paulino. Paulino parecia um médica de filme americano, limpo, bonito, confiável. Eu parecia mesmo um maluco, de filme francês, em que o limite entre excentricidade e loucura não está bem definido.

Essa autoconsciência atravessando vida e obra pode bem ser a causa de ele se defender, pela boca de seu personagem Boris Gurian:

/…/ “Você deve estar pensando que sou um velho reacionário tentando denegrir uma das maiores revoluções que a humanidade realizou, não é?

“Conheço sua biografia”, eu disse. “Você pode ser acusado de tudo, menos de reacionário”.

“É um erro catastrófico supor que, para consolidar uma revolução, é preciso tirar a liberdade dos artistas. Os soviéticos cometeram esse erro e pagaram caro, muito caro, por isso.”

Pois o livro, a par ser uma declaração de amor a um escritor de várias formas injustiçado, um homem fraco diante da gigantesca estrutura estatal que o engoliu, e que se revela para o narrador como o maior contista de todos os tempos, é também um pensamento sobre a revolução soviética, de seus primórdios até o fim, com a Perestroika. É assim que os personagens discutem a política russa e soviética desde Lênin, passando por Stalin, Crushov, Brejeniev, até chegar a Gorbatchev. Há até mesmo o carismático ex-padre curandeiro Corcunda, que nos faz lembrar Rasputin, assim como o frágil Alcobaça traz algo do filho doentio do último czar Alexandre.

Além das citações implícitas e explícitas ao cinema e à literatura, Rubem Fonseca cita sua própria obra, por exemplo, quando o personagem se pergunta o que sobrou de Babel; referindo-se a um cachorro, fala:

Só restara dele a minha memória e uma coleira – nada. E o que restara de Bábel? Palavras, como a coleira do meu cão – nada?

Outra referência é uma verdadeira homenagem a Guimarães Rosa, nascido na cidade pela qual passa o ônibus do personagem, “um lugar onde nascem pessoas importantes”, “Cordisburgo só poderia me alegrar” .

É como ler vários livros muito compactados e rápidos, aglomerados num só livro.

Um deles é sobre a literatura, Fonseca não fala de cinema, fala sobre a escrita e a ficção, a qual, para ser bem compreendida hoje em dia, precisa ser comparada com, iluminada por e diferenciada do cinema (ver, por exemplo, as discussões com Gurian, em que este representa a literatura, enquanto o narrador fala pelo cinema):

“Puchkin dizia que precisão e brevidade são as principais qualidades da prosa. /…/ O cinema não tem os mesmos recursos metafóricos e polissêmicos da literatura. O cinema é reducionista, simplificador, raso. O cinema não é nada.”
/…/

Gurian achava impossível o cinema criar na mente do espectador uma interação complexa, profunda e permanente de signos e símbolos, conceitos e emoções como a que a literatura estabelecia com o leitor.

Há a inquietante questão dos religiosos que exploram a fé do povo, mostrada por José, o irmão do protagonista, que vai ficando cada vez mais rico com sua pregação, e compra um canal de tv e quer ser político, talvez até presidente.

José sabia vender. Deixara de estudar, ainda menino, para vender coisas. Fora camelô, vendendo bugigangas contrabandeadas, depois vendera enciclopédias de porta em porta, depois carros usados, agora vendia a salvação das almas.

O próprio narrador vai relativizar o conceito que tem do irmão;

/…/ Evidentemente os empresários da cultura de massa só pensam em lucro. Mas não é essa a melhor maneira de produzir qualquer coisa? Batatas, computadores, cerveja, livros? E quem é que não pensa em lucro?

Todos são cruéis, sob a camada falsa da aparência, como o brilho do diamante verdadeiro; como na cena em que o médico quer obrigar o personagem a urinar na frente da enfermeira, e mostra sua impaciência e brutalidade, com seu olhar rancoroso, ameaçando colocar uma sonda .

O irmão José traz a dupla ironia de seu nome, pois é realmente irmão do narrador, e o personagem bíblico foi traído pelos irmãos e se salvou por saber interpretar sonhos, e o problema do protagonista está todo entremeado com seus sonhos surrealistas, e o segredo do roubo do diamante é revelado pelo sonho do amigo, que ele não perdoa por roubar, assim como não perdoa ao irmão, mas com a maior facilidade do mundo justifica o seu próprio roubo das pedras preciosas e do manuscrito.

Os dólares jorram na vida dos dois personagens, sem que eles deem muita importância para isso, tal é a sua fartura. O narrador chega a rasgar dólares num restaurante, para convencer a namorada a viajar – e Rubem Fonseca mostra que ele mesmo o fez, quando nos conta que as cédulas estadunidenses são muito resistentes e difíceis de rasgar, o que ele só pode ter averiguado tendo-o feito ele mesmo, brincando de mesclar ficção e realidade, e razão e loucura, glosando o mote que diz que só um louco é que rasga dinheiro.

O único valor do personagem que é aceito, ou pelo menos noticiado, por todos, é ter filmado A guerra santa, baseado em Os sertões, de Euclides da Cunha. E aí, mais uma vez, o personagem aparece como um ladrão, um aproveitador. Sua quase namorada Liliana acusa-o de ignorância salvadora:

“Mas sabe por que A Guerra Santa deu certo? Primeiro porque o Euclides da Cunha escreveu a história e o personagem central era Antonio Conselheiro, não era merda nenhum de Bábel. Conselheiro nunca leu Maupassant. Cagava para Maupassant.”

“Eu escrevi o roteiro.”

“E a segunda razão do sucesso do seu filme pode ser explicada pela mesma palavra que Orson Welles usou ao explicar como teria conseguido as inovações cinemáticas de Citizen Kane: ignorância. Você não sabia nada de cinema, quando fez aquele filme. Foi salvo pela própria ignorância.”

Outra camada desse livro, além dos saberes que agencia, Bábel, a política, as pedras preciosas, o cinema, é aquela que fala da artificialidade das coisas, na nossa realidade e sociedade atuais. O livro começa assim, com tudo girando, se desfazendo, o protagonista caindo num abismo, por causa da pseudo-síndrome de Menière, mais uma aula que nos dá. Note-se que nem a sua doença é verdadeira, é uma síndrome falsa, como o pseudônimo de Bábel. E o livro fecha com o personagem confundindo as jóias verdadeiras, causa de tantas atrocidades, com os vidros coloridos do costureiro, que se fantasiava com temas megalomaníacos, como sói acontecer, e nesse ano teria uma fortuna oculta em sua pretensa falsa fantasia de luxo. Depois ele se agarra a um poste de ferro como se fosse uma árvore, e reitera a frase título, que citara no início, atribuída por Shakespeare ao sonho, e pelo herói do livro a tudo. É apenas quando ele explica à intelectual alemã Veronika a sua pseudo-síndrome que faz sentido o nome da primeira parte do livro, “A linfa do labirinto” (p. 120). A segunda se chama “Manuscrito”, a terceira “O diamante Florentino”.
“/…/ Mas a rigor não existe essa coisa chamada documentário, tudo é montagem, tudo, no cinema, é fictício, de uma forma ou de outra.”

O balé dos mendigos, que vai ser o filme que vai levá-lo a conhecer Ruth, a bailarina e coreógrafa por quem se apaixona, é outra ideia de transdução, da arte intersemiótica de Rubem Fonseca, uma sugestão que pode ser balé, filme, happening etc, além de ser engraçada, de participar desse humor fino que permeia sua obra.

As brincadeiras são muito reveladoras, como na entrevista:

“Qual o seu sonho de consumo?”, ela perguntou.

“Acreditar em Deus”, eu disse.

“Isso mudaria alguma coisa?”

“Talvez o meu estilo. Minha linguagem é assindética, cheia de elipses de conjunção. A fé tornaria meu estilo hiperbólico, polissindético.”

O nome de seu contista preferido, pelo qual vive tantas aventuras, é também um signo da contemporaneidade, pois nos faz lembrar da torre de Babel, quando a diversidade das línguas foi criada, e os homens passaram a não conseguir mais se entender uns aos outros. Os personagens de Rubem Fonseca vivem o tempo todo num mundo babélico.

Em 1989, quando da queda do muro de Berlim, a rede Manchete de televisão, do Rio de Janeiro, mandou um repórter entrevistar transeuntes que comemoravam nas ruas da capital alemã, para o programa Documento Especial. Entre eles havia um brasileiro, que deu ao repórter o nome de Zé Rubem, ao lado de uma linda loura, que falava português com perfeição e mentiu ser brasileira também. Os dois falaram alguma coisa sobre o acontecimento histórico, e o repórter foi adiante, sem perceber que entrevistara Rubem Fonseca. Quem seria aquela mulher ao seu lado? Veronika?

Na cena em que o narrador está preso pelos contrabandistas de jóias, numa fazenda próxima a Diamantina, de propriedade de Alcobaça, ele conta que gostava de observar e lidar com aranhas e escorpiões, quando criança. Na narrativa, encarcerado, ele de novo se distrai admirando insetos e ratos, assim como Johannes Abrecht, protagonista de “O Besouro Dourado” de Bruno Frank, que, na cela se identifica com um besouro, no qual deposita todo seu afeto .

Há ainda, nesta passagem, bem como no ambiente de irrealidade de todo o livro, algo do instigante Assis Brasil de Os que bebem com os cães. Um professor de literatura preso como um animal inferior, humanocentrismo, numa estreita cela, esquecido de quem era, o que fazia e por que está ali. Luta para recobrar a memória, espezinhado, aviltado no âmago de seu ser, deixa de ser homem.
Torna-se um ser semiconsciente, vivendo de impulsos, claro-escuro, fome-caldo nojento, sede/sujeira-água, fazendo amizade com os ratinhos felizes, dos quais não entende ainda a língua, como o cineasta de Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos de Rubem Fonseca se distrai admirando insetos e ratos.

No pátio onde os semiconscientes tomam banho, bebem água e lavam os trapos num instante único, os guardas armados, um céu azul que talvez seja um toldo pintado. A caverna de Platão é a ditadura. E a memória é sensacional em muitos sentidos, mais de cinco; o professor de literatura perde a forma. Liberdade é escrever com todo o coração a palavra qualquer, mãe, mulher, liberdade, homens, qualquer grito serve, levantem a cabeça!, a lei está escrita no coração, com o sangue nos pulsos se esfrangalhando no muro áspero, é tocar a superfície com sua luz, ato permitido e tolerado e até incentivado tacitamente, pelos guardas, impávidos robôs.

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