Texto da Semana

Luis Carlos de Morais Junior e Eliane Colchete mostram poemas e textos ficcionais, ensaísticos ou de comentário sobre a sociedade e o mundo atual, e de todos os tempos. Aqui podemos ver trechos de livros já publicados ou inéditos, bem como obras em progresso, que eles estão escrevendo.

SONHOS LÚCIDOS DE UM BRASIL CONSTANTE

Temos um sonho, todos nós, mesmo os mais distraídos ou pretensamente descrentes: em um país que honre o seu povo, na sua faina diária de produzir cultura, seja esta material ou imaterial.

E o quanto estas palavras são encobrem um preconceito! A cultura simbólica é o prédio, é a roupa, a comida, o verso, a música, o jogo, as histórias, os pensamentos filosóficos e tudo mais que a gente conseguir inventar. Tudo isso é cultura, tudo isso é matéria, é a matéria de que somos feitos, como disse Shakespeare, sobre os sonhos.

Nós seres humanos somos feitos de pensamento e linguagem, e estas não se confundem, embora muitas vezes andem juntas. Temos a dimensão do pensamento que cria mundos, e a linguagem que os expressa; depois a faixa da vontade que os põe em prática, e a manualidade que os realiza; e ainda, o nível da sensação, que os percebe, e do sentimento, que os valora.

Veja bem: o sentimento está numa ponta, o pensamento na outra. Um sinaliza e constrói o outro, dependemos dessas nossas duas pontas que se encontram no mundo, como uma serpente que morde a própria cauda. Entre os dois extremos, construímos nosso mundo. Essa construção, no seu nível perceptivo, sensitivo e cognitivo, é a verdadeira natureza da memória.

Lobato escreveu que um país se faz com homens e livros. Eu diria que um país se faz com homens livres. E livres são aqueles, e só aqueles, que não carregam o peso do passado, mas sim a riqueza luminosa de tudo que já se viveu antes, seja como indivíduo, nação ou espécie.

Esse desdém que se perpetua em nosso país, ocupando o lugar de tantos cantores populares sublimes, compositores, escritores, artistas plásticos e construções da nossa identidade, como o lindo prédio da Estação da Leopoldina, ou o inesquecível (quem se lembra dele?) Palácio Monroe, que ficava ao lado do Passeio Público da Cidade do Rio de Janeiro, e que foi demolido para construir uma linha do metrô, nos anos 70. Por mais absurdas que as duas coisas possam parecer.

Esta falta de consideração, este desperdício de talentos e maravilhas, é parente daquele que faz com que a maioria dos nossos estudantes nunca tenha assistido ao filme Limite, ou que seu genial autor, Mário Peixoto, nunca mais tivesse conseguido filmar. Ou, ainda, e tão grave quanto, que seu romance cíclico em vários volumes não tenha vindo integralmente à luz.

Horácio exclamou: “Non fumum ex fulgore, sed ex fumo dare lucem”, não transformemos o fulgor em fumaça (desperdício), mas façamos que até a fumaça brilhe e nos ilumine (até aquilo que parece sem energia pode luzir, se lhe aplicarmos o trabalho e a vontade).

Esta sentença, cuja segunda oração é ostentada como inscrição na antiga fábrica de gás na Avenida Presidente Vargas, com amor e humor (como versejou Oswald de Andrade), alerta a todos os cidadãos de nossa cidade, que diante dela trafegam cotidianamente.

Mas quanta ironia! Quem pode entender o verso?

E dentre os que entendem, ou viram na internet a tradução, quantos o conseguem compreender?

Nosso povo, pelo costume do novo, pelo preconceito colonialista, pela questão cultural e educacional, e pelo vezo globalizante do descartável e do supérfluo, anda fazendo justamente o contrário, como na frase bíblica, atirando pérolas aos porcos.

É preciso e precioso lutar pela nossa memória, porque ela é o nosso presente, e o nosso futuro.

Somente reconhecendo nosso rosto em tudo que já edificamos, em tantas coisas talentosas que realizamos, e que são pedaços do gigantesco edifício que é o Brasil, poderemos continuar construindo.

Os prédios, bem tratados, ou abandonados, são todos pedaços de uma magnífica construção, que nossos avós fizeram, e da qual participamos, que continuamos construindo, e que é o nosso país.