SONHOS LÚCIDOS DE UM BRASIL CONSTANTE

Temos um sonho, todos nós, mesmo os mais distraídos ou pretensamente descrentes: em um país que honre o seu povo, na sua faina diária de produzir cultura, seja esta material ou imaterial.

E o quanto estas palavras são encobrem um preconceito! A cultura simbólica é o prédio, é a roupa, a comida, o verso, a música, o jogo, as histórias, os pensamentos filosóficos e tudo mais que a gente conseguir inventar. Tudo isso é cultura, tudo isso é matéria, é a matéria de que somos feitos, como disse Shakespeare, sobre os sonhos.

Nós seres humanos somos feitos de pensamento e linguagem, e estas não se confundem, embora muitas vezes andem juntas. Temos a dimensão do pensamento que cria mundos, e a linguagem que os expressa; depois a faixa da vontade que os põe em prática, e a manualidade que os realiza; e ainda, o nível da sensação, que os percebe, e do sentimento, que os valora.

Veja bem: o sentimento está numa ponta, o pensamento na outra. Um sinaliza e constrói o outro, dependemos dessas nossas duas pontas que se encontram no mundo, como uma serpente que morde a própria cauda. Entre os dois extremos, construímos nosso mundo. Essa construção, no seu nível perceptivo, sensitivo e cognitivo, é a verdadeira natureza da memória.

Lobato escreveu que um país se faz com homens e livros. Eu diria que um país se faz com homens livres. E livres são aqueles, e só aqueles, que não carregam o peso do passado, mas sim a riqueza luminosa de tudo que já se viveu antes, seja como indivíduo, nação ou espécie.

Esse desdém que se perpetua em nosso país, ocupando o lugar de tantos cantores populares sublimes, compositores, escritores, artistas plásticos e construções da nossa identidade, como o lindo prédio da Estação da Leopoldina, ou o inesquecível (quem se lembra dele?) Palácio Monroe, que ficava ao lado do Passeio Público da Cidade do Rio de Janeiro, e que foi demolido para construir uma linha do metrô, nos anos 70. Por mais absurdas que as duas coisas possam parecer.

Esta falta de consideração, este desperdício de talentos e maravilhas, é parente daquele que faz com que a maioria dos nossos estudantes nunca tenha assistido ao filme Limite, ou que seu genial autor, Mário Peixoto, nunca mais tivesse conseguido filmar. Ou, ainda, e tão grave quanto, que seu romance cíclico em vários volumes não tenha vindo integralmente à luz.

Horácio exclamou: “Non fumum ex fulgore, sed ex fumo dare lucem”, não transformemos o fulgor em fumaça (desperdício), mas façamos que até a fumaça brilhe e nos ilumine (até aquilo que parece sem energia pode luzir, se lhe aplicarmos o trabalho e a vontade).

Esta sentença, cuja segunda oração é ostentada como inscrição na antiga fábrica de gás na Avenida Presidente Vargas, com amor e humor (como versejou Oswald de Andrade), alerta a todos os cidadãos de nossa cidade, que diante dela trafegam cotidianamente.

Mas quanta ironia! Quem pode entender o verso?

E dentre os que entendem, ou viram na internet a tradução, quantos o conseguem compreender?

Nosso povo, pelo costume do novo, pelo preconceito colonialista, pela questão cultural e educacional, e pelo vezo globalizante do descartável e do supérfluo, anda fazendo justamente o contrário, como na frase bíblica, atirando pérolas aos porcos.

É preciso e precioso lutar pela nossa memória, porque ela é o nosso presente, e o nosso futuro.

Somente reconhecendo nosso rosto em tudo que já edificamos, em tantas coisas talentosas que realizamos, e que são pedaços do gigantesco edifício que é o Brasil, poderemos continuar construindo.

Os prédios, bem tratados, ou abandonados, são todos pedaços de uma magnífica construção, que nossos avós fizeram, e da qual participamos, que continuamos construindo, e que é o nosso país.

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