O CENTAURO FILOSÓFICO

A arte consiste em libertar a vida que os homens aprisionaram.

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Somos todos moléculas, uma rede molecular

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A literatura é uma grande saúde

(Gilles Deleuze)

A obra de Gilles Deleuze – uma filosofia experimental, constituída de partes móveis e cambiáveis, com diferentes inter-determinações – é intrigante pela sua complexidade e pelos diferentes devires que faz, não só pela abrangência de um pensador duplo de historiador da filosofia que vai trabalhar com tantos outros filósofos, como pelas diversas e potentes ligações que produz com a arte e a ciência, além de delimitar toda uma lógica em coerência com suas ontologia e política, e conseguir o mais constante agenciamento de um filósofo com outro, a tal ponto que não podemos discernir, nas obras a quatro mãos, e até nas produções singulares, até onde vai a influência de um sobre o outro.

A partir de uma nova imagem do pensamento, dentro de um padrão estético que entende a vida como criação e o pensamento como a possibilidade desta criação, a potencialização máxima da vida, surge uma nova forma de abordar o conhecimento, há aí uma epistemologia, uma política e uma estética.

O próprio conhecimento não é tido mais como natural, mas é uma construção, que procura entender o mundo e as produções humanas como dados que podem e devem ser salvos de maneira reativa. A ele Deleuze opõe o pensamento, que aparece aqui enquanto agenciamento do humano com o devir, as diferenças, mesmo para lá do humano, no campo animal, tecnológico, cibernético, molecular, inorgânico.

A estética ganha uma dimensão fundamental, na medida em que a relação da vida com a arte se torna o próprio diferencial da imagem do pensamento, dentro de uma perspectiva nietzscheana de compreensão da relação entre arte e vida.

Sendo assim, a obra artística ganha estatuto de maneira de pensar e de produção de modo de viver, já que Deleuze entende a relação arte, vida e pensamento à maneira de Friedrich Nietzsche:

\…\ Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar um outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até o fim do que a vida pode, um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida. \…\ Em outras palavras, a vida ultrapassa os limites que o conhecimento lhe fixa, mas o pensamento ultrapassa os limites que a vida lhe fixa. O pensamento deixa de ser uma ratio, a vida deixa de ser uma reação. O pensador exprime assim a bela afinidade entre pensamento e vida: a vida fazendo do pensamento algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo. Essa afinidade em geral, em Nietzsche, não aparece apenas como o segredo pré-socrático por excelência, mas também como a essência da arte.[1]

Podemos ver aqui a nova relação que se apresenta para o pensador entre vida e arte.

Ao invés de ser tomada como dimensão específica dentro de um todo do pensamento filosófico de determinado autor, a estética é constitutiva do próprio pensamento, atuando como paradigma ela mesma na filosofia de Gilles Deleuze.

É assumida assim uma diferença não numérica, mas qualitativa entre arte-vida-pensamento, na qual a valoração da arte se estabelece como diferencial dos valores que engendram a vida e engajam o pensamento.

Ao mesmo tempo, preserva-se o que à arte é essencial, no estabelecimento desta valoração: o plano de composição artístico é o campo da imanência dos perceptos e dos afetos, lá onde se joga o lance de dados da criação.

A diferença entre pensamento e conhecimento se faz presente na arte e implica em diversos processos de subjetivação. Nenhum dos dois é entendido como previamente dado, como “natural”. Não há uma instância “sujeito”, nem uma outra “objeto”, assim como a verdade não pode ser produzida pela adequação perfeita entre o discurso do sujeito e o fato objetal.

Esta estrutura de produção de verdade é ela mesma produzida, criada em certos momentos específicos, em certos lugares do mapa da história dos homens. Há vários regimes de signos que produzem subjetivações diferentes: um regime significante, ligado a uma semiótica do estado; uma semiótica pré-significante, ligada aos nômades caçadores; uma semiótica contra-significante (aritmética e numérica), ligada aos nômades guerreiros e pastores etc.

Exemplos de conhecimento, ligado ao estado, podem ser encontrados na psicanálise e nos postulados da linguística saussureana. Estas são, entre tantas outras práticas, aparelhos de captura montados pelo estado para se apropriar das semióticas das populações a serem dominadas. As tribos sem estado têm uma escrita espacial, corporal e pictórica – entendendo-se que escrita é todo sinal produzido sobre uma superfície e que pode ser compreendido por algum outro indivíduo da espécie. Quando o estado surge como centro de poder que subjuga as tribos, o que ele faz é apropriar-se de seus fluxos: mulheres, mercadorias e palavras.

A soberania se impõe pelo controle dos fluxos. As águas, a terra, os ventos – tudo tem que ser controlado pelos funcionários do estado. Inventam-se uma matemática, uma agrimensura e uma geometria para a normatização dos fluxos.

A semiótica escrita e a semiótica oral também vão ser apropriadas, quem sabe escrever, a quem é dado o direito de falar. Quando surge, a linguística adota o modelo estatal de linguagem; a escrita fica subsumida à linearidade da fala, as dicotomias reproduzindo esquemas metafísicos e etnocêntricos.

As ciências psi também podem aparecer apropriadas pelas forças do estado, constituindo-se em saberes de dominação, de produção de subjetividades medrosas, culpadas, ressentidas. A esse saber, Gilles Deleuze e Félix Guattari opõem em sua obra O Anti-Édipo (Capitalismo e Esquizofrenia I) a esquizoanálise, que trabalha com o “inconsciente maquínico”, que é uma usina geradora, e não mais uma cena de teatro (a repetição da cena do Édipo). O inconsciente maquínico e o “corpo sem órgãos” são conceitos que vão pensar o vivo como potência e produção.

Ao conhecimento como dominação se opõe o pensamento enquanto criação, que está ligado ao poder, entendido como potência que quer ser vontade (o conceito de “vontade de potência” de Nietzsche). Na nova imagem do pensamento, o poder é afirmação e necessidade.

Assim se produz uma outra matemática, uma outra ciência, uma outra linguística. De um lado, funcionários do estado e aparelhos de captura. De outro, pensadores nômades e máquinas de guerra.

O nomadismo é o lugar para onde migrou o pensamento filosófico que se liga às diferenças puras, às essências neutras, às espécies especialíssimas, à indiscernibilidade e à haecceidade. O pensamento é o lugar para onde migrou o nomadismo, quando as estepes e desertos foram dominados pelos homens do estado. O agenciamento entre os dois se dá em diferentes dimensões, descontinuadamente em platôs que se ligam em um rizoma, que é a nova imagem do pensamento: qualquer parte de um rizoma pode se ligar a qualquer outra parte, criando as continuidades mais inesperadas, sem programações prévias.

Já o conhecimento (saber de estado) adota o modelo da árvore e da hierarquia das ciências, e, ainda, da hierarquia dentro das ciências: um eixo principal, do qual saem eixos secundários que também se subdividem, tudo remetendo à mesma unidade.

O pensamento nômade envolve a concepção de tempo puro, rompendo com a tradição clássica. Deleuze, trabalhando com as três sínteses temporais diferenciadas (passado-presente-futuro), reverte a noção de linearidade kantiana do tempo, como forma de sucessão.

Investigação sobre o tempo puro, como “eterno retorno” (outro conceito tomado a Nietzsche) e “forma vazia” (Deleuze vai mostrar, no livro sobre a filosofia de Kant e no artigo intitulado “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir o pensamento de Kant”, que é este filósofo quem vai inaugurar a concepção de tempo como “forma vazia”). Liberação do tempo, opondo-se à noção aristotélica de tempo como “número do movimento”. O tempo não subordinado ao movimento, mas subordinando-o ele mesmo, como movimento aberrante, em uma física de intensidades. O corpo sem órgão e os devires intensos são modos de conhecimento para o pensamento nômade.

Vamos encontrar em O que é a Filosofia?, também em colaboração com Félix Guattari, a ideia de três planos independentes, que vão dar conta do pensamento:

  1. Plano de referência: é o plano da ciência, tem como escopo entender o mundo referencial, e como instrumentos os functivos, as funções matemáticas.
  2. Plano de composição: é o plano da arte; visa à criação e à experimentação, antes que à simples referenciação, e tem como instrumentos os afetos e os perceptos, que são os elementos constituintes da percepção e do sentimento. Na obra de arte eles aparecem libertos da psicologia e da existência do sujeito. Aí se inaugura a possibilidade de uma experimentação absolutamente nova, não marcada pela percepção interessada. São espécies de “vivências” virtuais, mundos possíveis que o artista atualiza, isto é, torna presentes. O virtual é real, o atual também é real. São dois tipos de realidade. Mas o artista torna possíveis estas vivências paralelas, que não são oriundas da experiência, e sim da experimentação.
  3. Plano de imanência: é o plano da filosofia, que trabalha com a construção de conceitos, que são os seus instrumentos. Os conceitos são assinados e topológicos; é o plano da filosofia, que reclama a imanência do pensamento, a sua ontologia.

Podemos estabelecer as seguintes relações, como uma linha de implicações, que pode nos orientar de maneira sinótica: o imanente na ontologia implica em nômade na política, pensamento na noologia, univocidade na lógica e gótico na arte. Já ao transcendente metafísico ligam-se, em política, o estado, em gnoseologia, o conhecimento, em lógica, a analogia e, em arte, o orgânico (orgânico ou clássico ao par de inorgânico ou gótico, como duas alternativas da obra de arte, são conceitos tomados a Wörringer):

 

Imanente            nômade              pensamento              univocidade          gótico

Transcendente          estado           conhecimento           analogia              orgânico   .

 

Dentro de cada uma das artes nas quais Deleuze mais se deteve, temos o seguinte rebatimento do problema: uma literatura maior versus uma literatura menor, a pintura figurativa que vai ser ultrapassada pela pintura figural, a imagem-movimento do cinema de ação e a imagem-tempo do cinema de vidente, e o estriado e o liso em música (os segundos conceitos sempre agenciados ao pensamento nômade; estriado e liso sendo hauridos da obra teórica do músico Pierre Boulez, ganham uma dimensão muito maior, ontológica, política e ética, além de estética, no pensamento de Deleuze e Guattari).

No caso da literatura, há duas grandes questões, que estão presentes nos livros sobre Franz Kafka e sobre Marcel Proust, respectivamente: a questão da literatura menor como desterritorialização do saber literário previamente dado (à maneira do pintor Francis Bacon, que diz sentir a necessidade de, antes de começar a pintar, limpar a tela em branco de todos os clichês da pintura que a preenchem devido ao nosso adestramento social, gnoseológico e perceptivo), em uma prática que é ao mesmo tempo poética e política, ética e estética; e a questão dos “mundos possíveis” de Proust, como uma etapa seguinte conquistada pela desterritorialização da escritura, mas que ainda vai exigir do escritor um aprendizado longo, através da observação dos sinais e da criação de uma teoria semiótica própria (signos mundanos, sensíveis, do amor e da arte) e que vai nos levar à expressão dos mundos possíveis de um autor.

Este processo em duas fases vai nos abrir toda uma nova teoria da literatura, e assim vão ser lidos ou relidos muitos autores importantes, Masoch, Zola, Michel Tournier, D. H. Lawrence, Thomas de Quincey etc., não propriamente como produtores de pensamentos filosóficos, mas sim como pensadores do plano de composição, que permitem o conhecimento de sinais que vão ser entendidos pelo crítico como uma clínica, a sintomatologia de diferentes modos de expressão e de diversos estados, intensidades e forças.

“Centauro filosófico” é expressão cunhada por Jaeger para designar Empédocles como filósofo híbrido de razão filosófica e representação mítica[2]. Em nosso caso, Deleuze também nos aparece como um filósofo híbrido, Proteu e Ciclope, Centauro ou Sátiro, como ele mesmo o afirma dos sofistas[3]. E isto não só porque funde a visão das três formas de pensamento, arte, ciência e filosofia, como produz também um novo híbrido, herdeiro que é de Nietzsche e Bergson, entre o campo empírico e o transcendental, para lá dos conceitos estanques de matéria e energia.

É preciso estudar a estética deleuziana como meio de penetração na sua ontologia e na sua epistemologia; mostrar que no pensamento de Deleuze estética tem uma dupla face, modo de vida e forma de apreender, para além da questão restrita da arte, ao mesmo tempo que afirma a arte em todos os momentos, como forma de vida e forma de conhecimento, segundo uma inspiração nietzscheana; e ampliar a leitura desse importante pensador, que faz de seu pensamento um campo de variações das questões que o pensamento coloca à vida e que a vida coloca ao pensamento.

A filosofia nômade de Gilles Deleuze pede a criação de um método próprio, diferente do método genealógico ou genético e do método estrutural (o genético é histórico, tempo histórico, o problema tem uma linha de evolução; o estrutural é o tempo lógico, apresenta os conceitos, o sistema, a estrutura do problema). Como observa Jean-Clet Martin:

As multiplicidades só se deixam pensar na condição de empreender uma travessia conforme um itinerário que faria crescer suas dimensões. Cada multiplicidade designa o lugar de uma pragmática singular, onde se compenetram semióticas complexas conforme um efeito de fundo que Deleuze eleva ao estado de uma potência plástica, a potência do falso. Toda multiplicidade deve se conceber sob a forma de uma coexistência capaz de impor a simultaneidade das dimensões das quais ela se compõe. Sob este ponto de vista os elementos de uma multiplicidade não param de modificar suas relações, passando pela totalidade aberta das dimensões de uma variedade. Cada termo entra assim em uma série de variações, tornando-se outro ao mesmo tempo que variam as dimensões sobre as quais nós os pré-estabelecemos. Podem-se construir várias multiplicidades. Evidentemente, não dispomos de um método geral para um tal problema. Cada dimensão das notas blocos comporta suas próprias regras de repartição. Eis porque a distribuição dos pontos sobre uma multiplicidade vai depender da seção considerada. A mudança da região se acompanha inevitavelmente de uma mutação de ordens métricas, topológicas, intensivas, capazes de entrecruzar uma dimensão. Variação então é o melhor nome para uma metamorfose desta natureza.[4]

Sob esta perspectiva a metodologia impõe-se como um descentramento produtor de superposições, entrelaçamentos de conceitos e problemas em uma multiplicidade que se compõe diretamente na pluralidade dos campos de saber (arte, ciência, filosofia), na singularidade de cada tema, na variação contínua que ele sofre através de suas temporalidades, autores, usos e práticas, modulação topológica segundo a localização por vizinhança, e não por determinação pontual. E situa-se a alteridade na variedade do sentido que tomam os problemas e as questões a partir do devir em que incorrem, ao invés de definir os itens de um suposto conteúdo de saber elaborado de uma vez para sempre.

Como Deleuze e Guattari já trabalham com uma outra concepção do ser, que se pensa a partir da diferença, e que é quando se pensa, uma ontologia da diferença, o eu fica desmascarado como unidade social, quer dizer, como produto das relações de poder que unificam o pensamento e as vivências em um todo que se pretende falsamente homogêneo.

Assim a princípio poderia se pensar numa liberação total da psicologia, estudo dos processos mentais, da psicanálise, que seria toda construída sobre a ficção do eu triangulado com um id (ça, isto) natural e um superego social; tudo é social, o triângulo é implantado na criança junto com outros, pai, mãe e filho, santíssima trindade.

Mas Deleuze e Guattari não abandonam a análise, é um processo muito interessante e eficaz para ser desprezado; a questão torna-se mais utilizar essa prática numa perspectiva da ontologia diferencial, ao invés de apenas lutar contra, como se quisesse extinguir a prática. Na verdade é uma luta e uma extinção, no entanto o corpo institucional pode ser tomado pelas novas forças e formas de pensamento, que venham de fora, no lugar de servir ao estado e às estruturas sociais contemporâneas.

Como Deleuze e Guattari não acreditam na fechadura do sujeito, na sua anterioridade, eles começam a sua análise pelo estudo da infância dos povos, quer dizer, pelas relações sociais que se perdem na história dos tempos, nas quais vemos sempre a luta entre bárbaros, selvagens e civilizados, uma nova trilogia, não mais interiorizada, mas exterior ao sujeito, não mais constituída com ele, mas antes dele, fora dele, independente dele, mesmo que ele não seja alheio a ela. Isto é, há um sujeito para cada modo desses, ou mais.



[1] _______. Nietzsche e a filosofia, trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias, Rio de Janeiro, Rio, 1976, p. 83.

[2] JAEGER, Werner. Paideia; a Formação do Homem Grego, p. 345: “/…/ Empédocles de Agrigento é um centauro filosófico. Na sua alma biforme convivem em rara união a física jônica dos elementos e a religião da salvação órfica. Por via mística conduz o Homem, criatura irredimida, joguete do eterno devir das coisas, através do desditoso caminho que percorre o círculo dos elementos a que o destino o vinculou, para a existência pura, originária e divina da alma.”

[3] DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição, trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1988.,p. 212; Lógica do Sentido,  p. 261, apêndice I.1, “Platão e o Simulacro”.

[4] MARTIN, Jean-Clet. Variations, la philosophie de Gilles Deleuze, Rais, Payot & Rivages, 1993, p. 11.

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