Noel Rosa e a Cidade – Parte 8

Não se pode saber até que ponte este irregular e evadido estudante de medicina estava a par das mais novas produções da poesia de sua época no país e no mundo. Se fez “flores do mal” em aquarela, talvez porque tropicais, não é simbolista, nem parnasiano, como tantos outros letristas de seu tempo. Por exemplo, “Quem Dá Mais?” é de 1932. “Cinzas”, de Cândido das Neves, é de 1937 (compare-se ainda com “Cor de Cinza”).

Muitas outras canções mostrariam o mesmo ecletismo de elementos românticos e parnasianos em quase todos os autores contemporâneos, assim como se pode notar no citado Cândido (Vicente Celestino, Orestes Barbosa, Catulo da Paixão Cearense etc.).

Além das temáticas da marginalização já mostradas, o duplo sentido, o uso do coloquial, as piadas, a malícia e o humor, Noel inventa recursos a cada letra, criando uma expressividade toda própria, explorando aspectos do canto, do ritmo, da fonação; como em “O Gago Apaixonado”.

Ou ainda outras invenções originalíssimas, como o “sambas epistolar” “Cordiais Saudações”:

Estimo que este mal-traçado samba
Em estilo rude na intimidade
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
Junto dos teus confio em Deus
Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje sinto saudade
Daqueles dez mil réis que eu te emprestei
Beijinhos no cachorrinho
Muitos abraços no passarinho
E um chute na empregada
Porque já se acabou o meu carinho
A vida cá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu
O meu coração vive amargurado
Pois minha sogra ainda não morreu
Sem mais para acabar
Um grande abraço queira aceitar
De alguém que está com fome
Atrás de algum convite pra jantar
Espero que notes bem
Estou agora sem um vintém
Podendo manda-me algum
Rio, 7 de setembro de 31
(Responde que eu pago o selo)

Ou o “samba anatômico” “Coração”, uma espécie de exorcismo das aulas de anatomia, que transmutadas em poesia recriam a linguagem científica, produzindo um saber que não é anatômico e nem a medicina pode abranger, mas que é um saber real, uma gaia ciência de afetos (e fazem lembrar do famoso verso de Maiakovski):

Coração de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro

Não tenho, no corpo do texto, me referido a parceiros porque estamos tratando das letras, e, quando havia parceria, evidentemente o trabalho com as letras ficava por conta de Noel.
Exceção é esta hilariante resposta que Noel dá na segunda estrofe à provocação da letra e da música de Sílvio Caldas, que está na primeira estrofe:

Eu tenho uma cabrocha
Que mora no Rocha
E não relaxa
Sei que ela joga no bicho
Que dança maxixe
E que dá muita bolacha

Eu tenho um filho macho
Com cara de tacho
Que além disso é coxo
Ele me faz de capacho
Qualquer dia eu racho
Esse carneiro mocho

A crítica e a autocrítica, na encruzilhada econômica, dão oportunidade a Noel de criar outro samba único, o inventivo “Com que Roupa?”, em que o eu lírico declara:
Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar

Leave a comment