Noel Rosa e a Cidade – Parte 4

O que é uma água-viva? É uma água viva – isto é, um biós que muda e devém com a água, no seu ritmo e variações. Há uma ilusão cognitiva, que se torna perceptiva no homem, e que o leva a ver fixidez no vivo, enquanto este é puro fluir, pura mutação, no sentido em Tales de Mileto disse (ao inaugurar o ocidente e a filosofia) que tudo era água, ou Heráclito de Éfeso afirmando que tudo é “fogo eterno vivo” .

A nossa necessidade de domínio físico sobre outros seres vivos (da mesma ou de outra espécie), nossa necessidade animal de poder reconhecer neles perigo ou interesse, nosso utilitarismo, em suma, recusa a “essência” fluente das coisas, a essência do devir, permita-se o paradoxo.

Como descreve Bergson em Introdução à Metafísica, observar de um ponto de vista um movimento relativo a algo que se move ou não é um saber parcial, imperfeito; porém, penetrar na essência do movimento mesmo, é um saber absoluto, perfeito .

Portanto, permita-se o paradoxo – que é a potencializaçào do pensamento, onde o que é não é e o que não é é.

O paradoxo não é um mero artifício lógico, nem um truque de linguagem, ele é a própria forma da vida, o tempo liberado dos recortes humanos, das fitas que o ser humano tem feito através da história.

Errância versus essência.

É o tempo puro, de que fala Bergson, o tempo complicado, em estado de caos, ou melhor, de caosmos. Se eu passo a conhecer alguém a partir de um determinado momento, no tempo puro eu não o conheço (no passado), já o conheço (no presente) e o conheço há tempo (no futuro) – tudo isto simultaneamente.

Ou o exemplo de Alice, personagem de Lewis Carroll agenciado por Deleuze à lógica estóica : no instante em que ela cresce ela se torna maior e menor ao mesmo tempo; maior do que era antes, menor do que se torna.

A cidade, por maior que ela seja, é para os homens uma aldeia medieval, onde eles encontram suas hierarquias, suas ordens, seu bom senso e seu senso comum (cada um faz um recorte de aldeia dentro da cidade, conhece o número de pessoas correspondente ao que seria seu círculo em uma tribo ou cidade do interior).

A poesia, às vezes, aparece, trazendo o redemoinho do desconhecido para dentro da cidade – de um lado a abstração reguladora da multidão (robótica, que se move e pensa igual), de outro o tumulto da multiplicidade (fluxos tubilhonares, movimentos aberrantes, errância de partículas).

Há um germe de caos no malandro criado por Noel, que, sentado em uma cena cotidiana e automática de bar, paralisa o garçom e interrompe o sistema, com a simultaneidade dos pedidos absurdos e intermináveis, e sem, na verdade, estar pedindo quase nada, sem pagar, sem querer ir embora, sem pressa.

Seu garçom faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta um tinteiro um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas um isqueiro e um cinzeiro
Telefone ao menos uma vez
Para 344333
E ordene ao Seu Osório
Que me mande um guarda-chuva aqui pro nosso “escritório”
Seu garçom me empreste algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa do cabide ali em frente

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