Noel Rosa e a Cidade – Parte 1

Luis Carlos de Morais Jr
O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação
(Noel Rosa)

A afirmação de um espaço nosso em Noel Rosa nos remete a um espaço de tempo, muito mais do que a uma nação ou bairro. E se é a uma cidade que ele se refere, esta é sinônimo do século XX, não se limita por latitudes e longitudes geográficas. Poder-se-ia falar em coordenadas espaciais de intensidade. Letras para sambas, poesia popular, os poemas de Noel têm muito mais do que se pensaria normalmente à primeira vista ou audição.

Sua obra, que começa a se fazer ouvir no rádio a partir de 1929, foi precursora da “bossa” da década de 30, que misturava o samba dos morros cariocas com elementos poéticos e melódicos dos bairros de classe média do Rio de Janeiro , algo que seria radicalizado com a “bossa-nova” que surgiu na década de 50, fundindo elementos clássicos, jazzísticos, ritmos brasileiros e poesia de qualidade.
Noel vinha de classe média e trazia uma enorme sofisticação para as letras (e para o modo de cantar, Noel Rosa enquanto cantor e Mário Reis, além de Orlando Silva, são os precursores e mestres de João Gilberto) da época (verdadeiros poemas modernistas foram por ele escritos, por exemplo, “São Coisas Nossas”: “E o bonde que parece uma carroça/Coisa nossa/Muito nossa”, que pode ser comparada com “Pobre Alimária” de Oswald de Andrade, via leitura de “A Carroça, o Bonde e o Poeta Modernista” de Roberto Schwarz ), fez parceria com Vadico, que trazia elementos melódicos e harmônicos inovadores, com Ismael Silva (do morro do Estácio), com Cartola (da favela de Mangueira, onde, aliás, Heitor Villa-Lobos desenvolveu com Cartola um projeto de coral infantil, cujos ensaios eram frequentados por Noel) e com Lamartine Babo, entre outros.

Sua poesia está na linha limite sobre o trilho que divide dois países ambos chamados Brasil, um virtual país potente e rico, um imaginário país do jeitinho, da malandragem e da cordialidade. Entre os dois, sobre o fio da navalha, um equilibrista que é poeta, malandro, brasileiro, que não é nada disso, é só um homem comum. E que, de comum, só tem, é claro, o nome.

Um tom coloquial sempre presente, a paródia, mesmo que muito disfaraçada (como da melodia do Hino Nacional em “Com que roupa?”), a mistura de gêneros, humoristicamente parodiados, como a aula de medicina em “Coração”, carta em “Cordiais saudações”, conversa de botequim na canção de mesmo nome etc. Imita poeticamente a fala de um “Gago apaixonado”. Visita o humor com muita altivez e perseverança, sempre extrapolando, indo para a crítica e o lírico com a mesma força e com o mesmo movimento, quer dizer, no mesmo verso, na mesma frase.

É sabido que Noel não fazia a menor questão de disfarçar os elementos biográficos de suas músicas, como a paixão avassaladora e não correspondida por Ceci, o seu amor aos bairros da Penha e de Vila Isabel e todas as suas inadequações, tão citadas nas letras (como a fraqueza física, em “Tarzã, o filho do alfaiate”).

E ele fez isso de uma forma inovadora, com traços modernistas, rindo sempre de si mesmo, tanto quanto ria dos outros, afirmando a vida e a forma como a vida se dá para ele.
O modernismo (ou contemporaneidade ou pós-modernismo ) das letras dos sambas de Noel traz um urbanismo humorístico e anti-humanístico, e faz uma utopia em negativo sobre a cidade brasílica: arquitetura de cristal do tempo.

Sem ódio, sem rancor, sem paixões tristes , cantar com serenidade sentimentos sutis, esquivos, finos, erradios como pássaros, plumas, bolhas de sabão.

A cidade de Noel não é a dura e pesada cidade das fábricas, dos dias chapados de luz, dos carros metálicos e dos concretos edifícios.

A cidade de Noel é outra: é a cidade fantasma que surge mágica como duplo nas brumas invisíveis da megalópolis, que é um rio de vagas sensações, de vagabundos filosóficos e finas zombarias.
Pelo menos um desses homens ao ouvir o apito da fábrica não se levanta para ir trabalhar, mas senta-se à mesa de um bar, e escreve uma canção.

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