MÁRIO, PIRATA

Existe um cineasta, nos primórdios do cinema brasileiro, que, totalmente alheio a Oswald de Andrade e suas pesquisas, mesmo assim devorou a vanguarda cinematográfica europeia e produziu nosso primeiro filme antropofágico, em 1929/30: Limite; seu nome é Mário Peixoto[1]. Depois disso ele nunca mais conseguiu filmar. Situação exasperante, para um diretor admirado por Einsenstein, Pudovkine e Orson Welles, e que só o Brasil poderia criar. Imagine-se a recepção que pode ter dado a este poema de luz totalmente experimental (com visões de partículas quânticas e de geometria fractal em suas desarvoradas e velozes folhagens e no mar de tempestade que é a própria história do filme) quando de seu lançamento em 1931. Em 1934, outro boicote: Mário Peixoto publica seu romance O inútil de cada um pela editora Schmidt; romance truncado e depois recolhido pelo pai do autor e pelo editor Augusto Frederico Schmidt, a conselho de Manuel Bandeira. Desiludido, isolado, casmurro, Mário Peixoto se isola na Ilha Grande-Abrahão, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, na Casa do Morcego, construída em 1629 pelo pirata espanhol João Lourenço; propriedade que o cineasta adquiriu e restaurou, e que depois foi destruída. Mário Peixoto não dava entrevistas, não recebia quase ninguém, nem se deixava fotografar ou filmar. Por ocasião do lançamento da nova versão de seu romance, em 1984, concedeu em uma pequena conversa com o repórter da tv Globo, na qual falou muito pouco e só deixou que sua sombra aparecesse para a câmera. Este relançamento seria a coroação de seu trabalho criador, tantas vezes e de tantos modos sabotado; não era mais o volume único original, e sim a retomada de toda sua vida e de tantos projetos, um balanço, um legado, uma espécie nova mas que nos traz à memória À la recherche du temps perdu, de Proust.

O romance é cinematótico de uma maneira toda especial, e cria imagens-cristais também; como a obra de Proust, trata eminentemente do tempo, e não da memória.

Para dar conta de Limite é necessário lançar mão da geometria fractal e da física do caos, bem como do conceito filosófico de autopoiese (Francisco Varela, retomado por Félix Guattari em Caosmose) e ainda do poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, de Mallarmé. Guattari entende a autopoiese como possibilidade para a criação do novo paradigma estético da caosmose[2]. Os seres vivos são considerados máquinas autopoéticas, pois se criam a si mesmos, se retroalimentam, em um movimento de negaentropia (Ouroboros). O universo é um sistema autopoético, que se gera a si mesmo, pela contínua criação de energia, como acontece nas supernovas e na síntese espontânea de hidrogênio (que é a pedra fundamental de toda a matéria, massa estelar que se converte em hélio pela fusão nuclear e nos outros átomos mais pesados pelas explosões das supernovas). Novo paradigma estético, a caosmose, não especificamente para a obra de arte só, ou sua crítica; um novo modo de fazer o que se convencionou chamar de ciências humanas, as sociais (meio externo), as psi (meio interno) e as da linguagem (ponte – na verdade todos os fenômenos são concomitantemente internos, externos e ponte, a língua, a mente e o socius) em uma nova e estética conjunção.

Francisco Varela caracteriza uma máquina como “o conjunto das inter-relações de seus componentes independentemente de seus próprios componentes”. A organização de uma máquina não tem, pois, nada a ver com sua materialidade. Ele distingue dois tipos de máquinas: as “alopoiéticas”, que produzem algo diferente delas mesmas, e as “autopoiéticas”, que engendram e especificam continuamente sua própria organização e seus próprios limites. Estas últimas realizam um processo incessante de substituição de seus componentes porque estão submetidas a perturbações externas que devem constantemente compensar. /…/

Parece-me, entretanto, que a autopoiese mereceria ser repensada em função de entidades evolutivas, coletivas e que mantem diversos tipos de relações de alteridades, ao invés de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas. Assim as instituições como as máquinas técnicas que, aparentemente, derivam da alopoiese, consideradas no quadro dos Agenciamentos maquínicos que elas constituem com os seres humanos, tornam-se autopoiéticas ipso facto. Considerar-se-á, então, a autopoiese sob o ângulo da ontogênese e da filogênese próprias a uma mecanosfera que se superpõe à biosfera.[3]

O caos que cria o cosmos, a multiplicidade, os processos de subjetivação no lugar de um sujeito puro e duro, tudo isto e mais permitindo ao teórico pensar a ética (ciência e arte do comportamento) ligada à estética (teoria da percepção e teoria da arte). Um ato, um desejo, uma perversão; uma greve, um voto, um movimento – são manifestações poéticas e políticas, sempre.

Por outro lado, Mallarmé em seu poema também instaurou um novo paradigma, não no sentido em que o fez Guattari (já que este está trabalhando com filosofia e ciência, enquanto o poeta trabalhava com a arte, que também é forma de pensamento). A cosmogonia mítica e cruel, numa mescla de teogonia, Bíblia e cabala por um lado, com filosofia ocidental, As Flores do Mal de Baudelaire e a semiótica da cidade contemporânea por outro, permitiram que Mallarmé não só libertasse a escrita da voz, como também colocasse a página em pé e multiplicasse suas dimensões, propondo para o seu futuro um novo conceito de poema e de obra de arte: mutável, interativo, virtual, aberto e transmutador. O texto de Mallarmé e a caosmose são utilizados para “ler” Limite e o livro de Mário Peixoto, outro cineasta/escritor antropofágico, que entendeu como ninguém o agenciamento maquínico cinematótico como algo que transcende a sala de projeção, e que fez rizomas por individuações de escritura, onde podemos perceber a presença obsessiva de algo que poderíamos chamar de “mallarmismo”; ele usa e abusa, recriando, o novo paradigma estético caosmótico que Mallarmé propôs em Um Lance de Dados, reelaborando, inclusive, a tensão homem/mar, a anti-síntese da sereia e a problemática da proliferação do naufrágio. No poema de Mallarmé, como na filosofia de Anaximandro, o limite (péras) e o que não tem limites (apeíron) se confrontam a tempo todo.

De Anaximandro restam três fragmentos:

  1. SIMPLÍCIO, Física, 24, 13.

(Em discurso direto:) …Princípio dos seres… ele disse (que era) o ilimitado… Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo.

  1. HIPÓLITO, Refutação, I, 6, 1.

Esta (a natureza do ilimitado, ele diz que) é sem idade e sem velhice.

  1. ARISTÓTELES, Física, III, 4, 203 b.

Imortal e imperecível (o ilimitado enquanto o divino).[4]

De Mallarmé temos alguns poemas, principalmente O Lance de Dados e Brinde (Salut), e um conto, Igitur, cujo tema é, a nosso ver, a tensão caosmótica péras/apeíron.

Leiamos Salut, na tradução de Augusto de Campos:

Brinde

 

Nada, esta espuma, virgem verso

A não designar mais que a copa;

Ao longe se afoga uma tropa

De sereias vária ao inverso.

 

Navegamos, ó meus fraternos

Amigos, eu já sobre a popa

Vós a proa em pompa que topa

A onda de raios e de invernos;

 

Uma embriaguez me faz arauto,

Sem medo ao jogo do mar alto,

Para erguer, de pé, este brinde

 

Solitude, recife, estrela

A não importa o que há no fim de

Um branco afã de nossa vela.[5]

A primeira coisa a chamar a atenção no texto é o imagismo difuso, que suspende imagens imprecisas diante de nós, sem que se vejam ao certo seus contornos, sem que componham um quadro lógico, ou uma sucessão coerente, mesmo que como ato-falho, num processo de livre-associação. Nada disto. Música? Sim. Mas apenas música? E dizer música, melodia, ritmo, não é dizer tudo; pois há aí um balé, uma dança marítima de ideias. Estranhas composições, num ritmo marítimo, como se de repente víssemos as coisas com olhos de peixe ou de sereia, e nos perturbasse a intelecção a difração e o movimento browniano da água.

No volume de História da Literatura Ocidental, dedicado ao “fin de siècle”, Otto Maria Carpeaux cita esta resposta de Mallarmé à Enquête sur l’evolution littéraire, de Jules Huret:

La contemplation des objets, l’image s’envolant de rêveries suscitées par eux, sont le chant; les Parnasiens, eux, prennent la chose entière et le montrent; par là, ils manquent de mystére… Nommer un objet, c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite du bonheur de deviner peu à peu; le suggérer, voilà le rêve.[6]

Há uma profunda coerência entre o campo semântico das imagens escolhidas pelo poeta e a sua proposta: sugerir no lugar de nomear, criar uma bruma que se evole das coisas. Mallarmé fala em contemplação dos objetos – é o que suscita os sonhos; contemplar, liberar a percepção do torno que os interesses práticos da vida social se tornam, e no qual o espírito vê reduzida sua visão, como uma lente de câmera focalizada em uma coisa só.

Espuma (da bebida, do mar), copa (e cálice, coupe no original, que remete a coup, como em un coup de dés), tropa de sereias se afogando – como borbulhas que se formam e somem no cálice, ou, a câmera faz um zoom na taça, e cem mililitros de champanhe viram um enorme ocenao com ondas nas quais se formam e se afogam sereias, figuras mitológicas, Afrodite. A espuma é nada, mas nada é esta espuma, da qual se formam imagens e imagens e imagens. Um poeta de pé, solidão, ilha deserta, recife, um homem brindando em meio à tempestade, à tempestade.

A figura da sereia reaparece em Um Lance de Dados, misteriosa porque inusitada, imprecisa, invertida. Era de se esperar que, como na Odisseia, fossem os homens quem, ao ouvir o canto da sereia, se lançassem ao mar e se afogassem. Em Le Livre a Venir, Maurice Blanchot diz que a escritura é um canto de sereia, inumano, encantamento mágico, longínquo. Entender o canto da sereia seria para Ulisses devir-Homero.

No entanto, aí se acusa a irrealização, pois Ulisses é medíocre, e usa de seus truques para ouvir as sereias e não cair no mar em busca do encantamento.

/…/ l’attitude d’Ulysse, cette surdité étennante de celui qui est sourd parce qu’il entend, suffit à comuniquer aux Sirènes um désespoir jusqu’ici réservé aux hommes et à faire d’elles, par ce désespoir, de belles filles réalles, une soule fois réelles et dignes de leur promesse, capables donc de disparaître dans la vérité et la profondeur de leur chant.[7]

As sereias são para Mallarmé o hieróglifo de limite entre o limite e o ilimitado, aquilo que, à Anaximandro, por aparecer mesmo é que se desfaz, peixe que se afoga no mar, do qual nasceu, que ele respira, de que é feito.

Em Igitur, a definição do poeta-navegador pescado, fisgado, pego na rede, o jovem fecha o grimório, livro de magia, e, descendo ao mundo de seus ancestrais, bebe o pharmacon, o veneno-remédio, pois, doravante, viver é escrever, e o naufrágio, o sereno apelo das sereias, é a condição.

Finalmente, só resta o ato na escuridão de sua seriedade, o vidro que se esvazia, a gota de nada que se bebe, um ato certamente impregnado de consciência mas que não é decisivo somente porque teria sido decidido, porque contém em si mesmo a espessura da decisão. Igitur termina, de um modo bastante mesquinho, o seu monólogo com as seguintes palavras: “Soou para mim a hora de partir”, onde se vê que resta tudo por fazer, que ele não avançou um passo na direção desse “portanto” que seu nome representa, dessa conclusão de si mesmo que ele queria arrancar de si mesmo pelo único fato de que, compreendendo-a, conhecendo-a em seu caráter fortuito, acredita então elevar-se à necessidade, anulá-la como acaso, ajustando-se exatamente à sua nulidade. Mas como Igitur conheceria o acaso? O acaso é essa noite que ele evitou, onde contemplou apenas a sua própria evidência e a sua constante certeza. O acaso é a morte, e os dados pelos quais se morre são lançados ao acaso, significam tão-só o movimento aleatório que recobre o acaso. É à Meia-Noite que “devem ser lançados os dados”? /…/[8]

Outro hieróglifo de Mallarmé: la Minuit. A hora mais escura, mais solitária, o ilimitado entre o ilimitado e o limite, o selvagem, onde e quando não se discerne nada. Entre a perda do dia que se foi e a esperança de um dia que virá, a hora mais inumana e fria, meia-noite; não mais noite, ainda não manhã. A hora de Mallarmé, assim como o Meio-Dia é a hora solar de Nietzsche, a hora da máxima força, do brilho supremo, a hora da libertação (construída a partir da Aurora, a hora do ouro, da transmutação). As duas são como as faces da moeda cuja coroa é virtual, a terceira via, a quarta dimensão.

Brinde e Igitur são clarins que anunciam Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso: o momento em que peras e apeíron, homem e sereia, espuma e coisas, barco e naufrágio, meia-noite e meio-dia – se confrontam. E que tempo é este? É aquele de virar e revirar a ampulheta, ler e reler o texto do poema, necessariamente não em linha reta.

A leitura linear é apenas uma entre infindáveis outras, por vício, costume ou preconceito é “a mais fácil”; pelo quanto limita a repetição e a diferença, e tenta abolir o acaso, é a mais pobre, reativa. Já não nos interessa se Mallarmé era um idealista, e sonhava com o número que abolisse o acaso, lamentando-se por não o encontrar. Nossa questão com o poema é de ordem física, Um Lance de Dados efetivamente devém uma máquina virtual de produzir variações, o livro das mutações do ocidente urbano e industrial, que não prevê nada ou quase nada, só um navegar, um encantamento de sereia, um naufrágio, e – a câmera faz um zoom out, e o que parecia o oceano eram moléculas, ou elétrons da sinapse de um pensamento, no preciso instante que você levou para pensar a frase “um lance de dados jamais abolirá o acaso” (uma frase qualquer, escolhida ao acaso, porém necessariamente esta, desde que pronunciada ou mesmo pensada, pois “todo pensamento emite um lance de dados”, e os dados já pensados tornam-se o dado da conjuntura no instante), no segundo ou fração que você levou para pensá-la houve toda uma anti-odisseia entre átomos e elétrons, posítrons e quarks, navegação, tempestade, sereia, encantamento de imagens, de partículas, de sons no aparelho fonador e no ar e no ouvido, bilhões de criações de universos e possibilidades a cada pequeno fonema, a cada pensamento. A inevitabilidade disto, mesmo que a lentíssima e sintática fala humana seja o velho paradigma da escritura e do pensamento (logocêntrico, como diz Derrida), não há como exorcizar a mente de todas os demônios dos quase-pensamentos, o que seria, infindáveis possibilidades alternativas que ocorrem concomitantemente ao aparecimento de uma forma, há espuma por toda parte, à volta da sereia.

Um Lance de Dados é um novo e revolucionário paradigma estético porque libertou o poema da linearidade e da referencialidade, da bidimensionalidade da página, que ganha várias profundidades (mais de três dimensões) pelos diferentes tipos empregados, pela agramaticalidade e pluralidade fragmentária das frases.

E o sonho de Mallarmé de escrever O Livro? Eis algo que parece, à primeira vista, um tolo idealismo.

Quando consideramos que uma das mais importantes bases ideológicas da nossa civilização é a Bíblia, que não se propõe como um livro mas como o livro, aí então o delírio de mallarmeano torna-se, se não dialético, pelo menos diabólico, titânico, prometeico, proteico, ou ciclópico.

Com suas bem espaçadas e temporalizadas onze páginas, o poema de Mallarmé não é o Livro, nem poderia ser; mas, de certa forma, é mais que isto, é um anti-livro, livre, que canta o canto da sereia para ser visto e ouvido, sentido, no qual podemos embarcar e naufragar, da capo, em suas voltas espirais, Un Coup de Dés sendo o sintagma que aparece ao pé da página 11, convidando a voltar à página 1.

Normalmente espera-se que o texto tenha uma voz privilegiada, que possa aparecer como narrador ou eu lírico, criando algum tipo de interioridade à escritura. Se aplicamos o conceito de autopoiese ao texto (considerado como máquina ou agenciamento maquínico filogenético ligado ao humano) ele se torna o seu próprio produtor, e não guarda dobras interiorizadas marcadas e pessoais. Podemos considerar que Un Coup de Dés = Signantia Quasi Coelum (poema de Haroldo de Campos que retoma o paradigma) não são sinais fechados e tramas prontas, obra encerrada, que preserva e transmite certo conhecimento ou opinião ou sentimento de um sujeito (via eu lírico, narrador ou herói épico).

São dois poemas que não são um, nem dois, nem três (un, um, de, dois, dès, vários, indeterminados, uns); são textos múltiplos, que recusam dicotomias e tricotomias, em benefício da quarta dimensão e do (orgasmo) múltiplo.

Por não se ter visto que os segmentos maquínicos eram autopoiéticos e ontogenéticos, procedeu-se ininterruptamente a reduções universalistas quanto ao Siginificante e quanto à racionalidade científica. As interfaces maquínicas são heterogenéticas; elas interpelam a alteridade dos pontos de vista que se pode ter sobre elas e, consequentemente, sobre os sistemas de metamodelização que permitem considerar, de um modo ou de outro, o caráter fundamentalmente inacessível de seus focos autopoiéticos. É preciso se afastar de uma referência única às máquinas tecnológicas, ampliar o conceito de máquina, para posicionar essa adjacência da máquina aos Universos de referência incorporais (máquina musical, máquina matemática…). As categorias de matamodelização propostas aqui – os Fluxos, os Phylum maquínicos, os Territórios existenciais, os Universos incorporais – só têm interesse porque estão em grupo de quatro e permitem que nos afastemos das descrições ternárias que sempre são rebatidas sobre um dualismo. O quarto termo vale por um enésimo termo, quer dizer, a abertura para a multiplicidade. O que distingue uma metamodelização de uma modelização é, assim, o fato de ela dispor de um termo organizador das aberturas possíveis para o virtual e para a processualidade criativa.[9]

Podemos então falar de metamodelização nestes poemas, abertos para a multiplicidade, o virtual e a processualidade criativa. Em Un Coup de Dés não há eu lírico ou narrador, só extererioridade. O agenciamento maquínico se dá a cada vez que cada um faça uma nova leitura, que será, além de externa, alienígena a um e a outro, virtualidade do texto, virtualidade também da subjetividade que ali se dá, que percorre o texto.

A caosmose e a autopoiese ressoam questões da física que nos chegam através da própria literatura, como por exemplo nas considerações de Severo Sarduy sobre Galáxias de Haroldo de Campos, que datam de 1972:

La outra teoria cosmológica actual, mucho más derridiana, considera que no hubo big bang, que no hay orignen, simplemente que a partir de nada se crea continuamente en el espacio el hidrógeno y a partir de allí todo sigue sucediendo. La única retombée textual possible de esto (y al fin entras en escena, después de este fatidioso exposé que espero no te haya exasperado) es tu libro de ensayos: galaxia en que no hay centro, ni siquiera por su ausencia, sino a cada linea una creación fonética autónoma a partir de nada. No se trata pues de un universo en expansión a partir de un big bang inicial, com en Circus, por ejemplo, sino de un universo en estabilidade a  creación autónoma constante, sin origen y a partir de nada, cuyo suporte funcional es la diferencia y cuyo motor la repetición.[10]

Galáxias lembra-nos outro hieróglifo de Um Lance de Dados, a Constelação, que figura no alto do céu sobre o mar pelo qual o Mestre navega. A Constelação e as Estrelas são como que faróis espirituais para o poeta-marinheiro, uma pista, uma guia, e também um consolo, um alento. Assim como o oceano duplica espelhando a imagem do céu, o céu e a sua cartografia celeste duplicam as rotas marítimas do poeta-marinheiro. Que este afunde, penetre na terra (em Igitur) ou no oceano (Un Coup de Dés), é mais um traço anti-épico do poema, que ainda uma vez duplica a trajetória do poeta épico. Na Divina Comédia, Dante é puxada como ferro pelo ímã, e vai subindo até o mais alto dos céus, sempre atraído pelas estrelas, palavra que sempre fecha o último verso de cada um dos cantos (Inferno: “e quindi uscimmo a riveder le stelle.”, Purgatório: “puro e disposto a salire alle stelle.”, Paraíso: “l’Amor che move il sole e l’altre stelle.”[11]).

O aristotelismo de Dante determina sua visão de um cosmos contínuo, plano à superfície, dobrado continuamente, constituindo o inferno, o purgatório e o paraíso; todos eles ligados, dentro e fora, como o anel de Moebius. Assim ele pode descer e depois ascender, e alcançar as estrelas e o céu empíreo.

Mallarmé faz o movimento de ascensão, e não ascende, e cai, e até o chão lhe falta. Investimento artificialista de Stéphane, não pode ser reduzido a fatores sócio-econômicos; se muitos outros criadores congêneres (mas não tão grandes) aparecem à época e depois, podemos atribuir uma causalidade mais forte à exemplaridade do poeta-usina, do que a fatores sociais (que podem ser levados em conta, porém não de forma determinante como o faz Carpeaux).

O simbolismo é a literatura dessa classe sem fundamento econômico na sociedade, algo assim como os intelectuais de 1800 que criaram o romantismo; o que contribui para explicar o aspecto neo-romântico do simbolismo. O reflexo daquela situação à margem da sociedade e das atividades “úteis” é o conceito da arte intencionalmente “inútil”, do “l’art pour l’art” – assim como a “torre de marfim” do parnasianismo. Mas a diferença é mais importante do que a analogia: os parnasianos também estavam excluídos da economia social, mas ainda ficavam com as comodidades da burguesia antiga.[12]

Quanto a Mallarmé, o crítico austro-brasileiro considera que se criou um mito em torno de sua figura, exaberbando inutilmente assim o hermetismo e a inacessibilidade de uma obra já por si só tão difícil, “sem calor humano”, que “parece antes exercício das capacidades poéticas a serviço de uma grande inteligência”, e cuja “dificuldade” seria apenas “prova de insuficiência intelectual dos leitores”[13]. E ainda:

/…/ Teria sido exagero interpretar a identificação do “logigue” e do “réel” na poesia de Mallarmé como filosofema hegeliano, exagero no sentido de atribuir a Mallarmé um sistema filosófico. Também parece frustrada a tentativa de Roulet, de descobrir em Un coup de dês jamais n’abolira le hasard um sistema do gnosticismo. Mas esses equívocos também servem para compreender melhor um evasionismo poético que não é fuga do mundo, mas antes arrogância prometéica, tentativa audaciosa de exorcizar o caos por fórmulas mágicas, criando-se, por meio da poesia, uma ordem, se bem imaginária, da qual o mundo caótico carece e precisa.[14]

Consegue ele exorcizar o caos? Para sorte sua, fracassa. Talvez a leitura de Mallarmé paranóico, que odeia o acaso, tenha muitos elementos corroboradores; porém, é uma interpretação triste, que nos mostra um poeta tolo. Teria ele a ingenuidade de querer exorcizar a física diabólica por meio do simbólico? Se a carne é triste, os livros são tediosos – mesmo assim o coração ainda ouve, entende e ama a canção dos “matelots”, o som que vem do mar, a viagem (“Brise Marine”[15]). O fumo, a espuma, a pura sensação – talvez um caminho alternativo para o prazer e a realização, para além do dia-bólico e do sim-bólico, o que junta e o que separa ao lançar.

Fantôme qu’à ce lieu son pur éclat assigne,

Il s’immobilise au songe froid de mépris

Que vêt parmi l’exil utile le Cygne.[16]

O Cygne alegorizado além de ser símbolo (fálico e do que mais se queira) é homófono de signe, signo, o que serviria para reforçar as leituras que atribuem a Mallarmé uma epopeia do puro significante, como faz Julia Kristeva[17].

No entanto, podemos propor uma outra interpretação, ousada, deste problemático soneto (“Le Vierge, le Vivace et le Bel Aujourd’hui”): todo o soneto trataria do mundo incorporal, de cruel neutralidade, frieza absoluta do lógico, porém de total realidade física, à estoicismo, que fala de duas naturezas do real, a dos corpos e a dos incorporais, ambos reais[18].

O poeta não estaria se referindo às coisas nem aos signos, e sim aos incorporais. O sintagma do fim do primeiro verso do último terceto – “éclat assigne” – seria a chave desta leitura. Sabendo-se que éclat se traduz em português por lasca, estilhaço, brilho intenso, clarão, estrondo; e que figuradamente é glória[19] e esplendor; e, ainda, que existe a expressão éclat de rire, que é gargalhada; recordando que o prefixo a, tanto em francês como em português, traduz negação; e tendo presente que Mallarmé foi um dos escritores que mais explorou a capacidade que sua língua tem de produzir trocadilhos e jogos fonéticos e de palavras (pois diferentes grupos de letras podem ter a mesma pronúncia), e que na própria palavra Cygne já acontece um destes jogos (cisne/signo), poderíamos propor a tradução alternativa: o clarão do assigno, ou: a glória do assignificante, ou ainda: a gargalhada daquilo que não significa.

Assim ficaria o verso (fazendo ainda um deslizamento da preposição à para o verbo avoir):

Fantasma que tem este lugar seu puro brilho assigno.

Ou ainda, como avoir lieu é “acontecer” (e o acontecimento é um dos incorporais da lógica do sentido):

Fantasma que acontece sua glória assignificante.

E ainda, para não fugir da tradição de ruptura da tridução que não (se) trai[20]:

Fantasma que tem neste lugar sua gargalhada que nada significa.

Assim como o acontecimento (encontro do corpo com o tempo), o lugar (encontro do corpo com o vazio) é também um incorporal na lógica dos estóicos.

O oriente tem o I Ching, o Livro das Mutações, e ocidente em o Tarô, o Livro de Thot, que não tem texto, só imagens[21], e que não vem enfeixado numa encadernação, se apresenta como um baralho, que tem a ordem das figuras sempre modificada, pela mão que embaralha e consulta.

Poderia-se procurar a relação entre os Arcanos Maiores do Tarô e as imagens de Mallarmé: o Mestre é o Mago, o naufrágio é a Torre, o Abismo é o Diabo (que separa), o “ancião contra as águas” o Eremita, as Núpcias a Lua, a Constelação a Estrela.

Não aprofundaremos aqui a comparação, que é um dos níveis de probabilidades do poema, uma das dimensões de montagem (encontrar citações de outros livros fundamentais para a nossa cultura, desde a Ilíada, a Odisseia e a Bíblia, até o Finnegans Wake de James Joyce, cuja relação com Un Coup de Dés foi apontada por Robert Greer Cohn e estudada por David Hayman em Joyce et Mallarmé, e por Augusto de Campos em “O Lance de Dados do Finnegans Wake”[22] – os dois livros são meta-jogos, seriíssimos e lúdicos) transdimensionais, espaciais e verbivocovisuais.

A estrela como signo e o signo como estrela é o leit-motiv de Signantia Quasi Coelum de Haroldo de Campos. O próprio título já sugere a relação entre signo e céu, separados pelo quase, espécie de cópula de uma proposição não aristotélica, onde não se atribui ao céu signância, e sim uma quase-correspondência, que os difere e aproxima, coloca aí um abismo e os relaciona, a é-quase b, Sócrates é-quase mortal, signância é-quase céu, não é céu, mas… o quê?

Graficamente Haroldo de Campos repete (ou melhor, quase-repete) a estrutura do poema de Mallarmé, o espaçamento se torna tão importante quanto as palavras soltas na página e os quase-versos.

No prefácio (“..nada ou quase uma arte”), Mallarmé demonstra estar totalmente consciente de muitas das mais revolucionárias implicações do poema:

/…/ O papel intervém cada vez que uma imagem, por si mesma, cessa ou recede, aceitando a sucessão de outras, e como aqui não se trata, à maneira de sempre, de traços sonoros regulares ou versos – antes, de subdivisões prismáticas da Ideia, o instante de aparecerem que dura o seu concurso, nalguma cenografia espiritual exata /…/[23]

Processo cinematográfico como é por ele apresentado, que também fala de música, harmonia, partitura, a partir de uma dimensão onde todas as artes (teatro, literatura, magia, poesia, música e o então inexistente cinema; pois o prefácio é da primeira edição do poema, que saiu na revista Cosmopolis, em maio de 1897) se encontram; diz ele ainda:

/…/ uma visão simultânea da página: esta agora servindo de unidade como alhures o Verso ou linha perfeita.[24]

Sobre a concordância gráfico-plástica, leiamos Mário Faustino:

O aspecto gráfico do poema. As dimensões (em todos os sentidos) dos caracteres. Uma escrita tridimensional em contraposição à comum, apenas bidimensional. Os conjuntos formados pelos caracteres: verdadeiros ideogramas verbivocovisuais. Um universo polidimensional, que choca o leitor de maneira quase-simultânea. Tudo isso, se não é completamente conseguido em “Un Coup de Dés”, pelo menos é nele formulado e resolvido até um ponto nunca antes sonhado e, depois, bem poucas vezes atingido (re. Cummings /sic/, Pound, etc.: soluções diferentes, com maior ou menor êxito e, sem dúvida, com objetivos nem sempre semelhantes).[25]

Os americanos (do sul ou do norte) apresentam uma bem maior aceitação em relação à experiência de Mallarmé: Pound, cummings, Robert Greer Cohn, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Mário Faustino, Mário Peixoto etc. E não é à toa. Há uma ânsia, um porvir do Novo Mundo que não é facilmente assimilável ou aceitável pelo homem ocidental. Se deste caldeirão saíram tantas antropofagias e antas, há ressonâncias mesmo na velha Europa, e assim surge um selvagem em Dublin ou Paris.

Diz ainda Mário Faustino:

“Un Coup de Dés”: Um poema sobre o Todo. “To pan”. Sintaxe oniconsciente, auto e hetero: uma sintaxe dentro de cada palavra, uma sintaxe entre as palavras, uma sintaxe na soma das palavras e em qualquer coisa para além dessa soma. Poema órfico-metafísico-epistemológico: o jogo, o drama, o mistério; o Azar, a morte, a pureza, o jogador, o mestre, o poema, o herói, o homem; as dualidades eternas: positivo-negativo; análise-síntese; stasiskinesis; circularidade-linearidade; unidade-multiplicidade; convexidade-concavidade; macho-fêmea; o eterno retorno; o princípio e o fim; o mito; Dédalo e Ícaro, Ulisses…[26]

Todo anti pressupõe uma aceitação, uma construção a partir daquilo, mas torcendo, alterando, mudando seu sentido.

A investigação do tempo a que Mallarmé procede em Um Lance de Dados e a que Campos faz em Sinância Quase Céu não são idênticas, talvez sejam até as mais diferentes possíveis entre si, porém trabalham o espaçamento, pólem de sons pela página (Mallarmé usa tipos diferentes, Haroldo não; já este coloca fotos de ramagens, folhas e ramos de ferro, em preto e branco, em amarelo e azul, se integrando ao texto; olhar através da página mallarmeana é olhar através da densa vegetação ao vento). Ambos são antipériplos, citando, implicitamente, a Odisseia (mais forte em Mallarmé) e a Divina Comédia (em Haroldo). Duas epopeias que trabalham com descrições de cronotopos específicos, o espaço mar de Homero que se redobra e produz o tempo que retém Ulisses, que o quer para si, que espessa e se encrespa, ou se alisa e se torna veloz, em bolsões etc. O tempo-espaço de Dante lembra um zigurate babilônico, engrenagens de parafusos que rodam, levando os seres para cada um dos três estádios sucessivos, largos na base, finos na ponta, sempre girando, perfurando, penetrando, em direção à purificação, contínuos, contíguos, correndo em espiral. Odisseus faz seu trajeto plano, o envergador do arco, que desenruga os obstáculos à sua passagem. Dante é o peregrino que sobe a montanha, é o homem fraco que desmaia, tem medo, foge e pragueja, mas tem uma estrela, Beatriz, e, mirando, ele sobe e sobe.

Em Mallarmé o naufrágio e a morte são peças fundamentais da busca, do aprendizado do tempo. Vejamos um trecho de Igitur:

/…/

Isso desde que eles abordaram este castelo durante um naufrágio sem dúvida – outro naufrágio de algum grandioso projeto.

Não assovieis porque falei da inanidade de vossa loucura! silêncio, nada dessa demência que quereis mostrar propositalmente. Pois bem! se vos é tão fácil retornar ao infinito para procurar o tempo – e vir a ser – será que as portas estão fechadas?

Só eu – só eu – vou conhecer o nada. Vós, volvereis ao vosso amálgama.

Profiro a palavra, para afundá-la de novo em sua inanidade.

Ele joga os dados, o lance se consuma, doze, o tempo (meia-noite) – quem criou (se) reencontra matéria, pedras, dados –

Então (do Absoluto seu espírito se formando pelo acaso absoluto desse feito) ele diz a toda essa desordem: certamente, aí está um ato – é seu dever proclamá-lo: esta loucura existe. Vós tivestes razão (ruído de loucura) de manifestá-la: não acreditais que eu vá novamente nos afundar no nada.[27]

A busca de Mallarmé é pelo tempo, ele o declara aqui; o “nada” que relaciona a uma certa noção de tempo eterno, e que opõe ao “amálgama” do resto dos homens, é a singularidade máxima, é a aventura, odisseia do pensamento, ao preço que for, morte, naufrágio, sofrimento, beber “a gota que falta ao mar”.

Vimos que em seus textos filosóficos Oswald de Andrade relaciona nossa sociedade com o poder patriarcal e a filosofia messiânica, que prega algum tipo de salvação, seja religiosa, social ou individual. A tudo isso OA opõe a filosofia da devoração (antropofagia), mais afim ao poder feminino que prega a alegria trágica no lugar da salvação, a vivência plena do aqui e agora (o tempo que Nietzsche chama de intempestivo e dos estóicos de Áion).

No ensaio Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira: o Homem Cordial, escrito em 1950, Oswald declara:

A angústia de Kierkegaard, o “cuidado” de Heiddeger, o sentimento do “naufrágio”, tanto em Mallarmé como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre, não são senão sinais de que volta a filosofia ao medo ancestral ante a vida que é devoração. Trata-se de uma concepção matriarcal do mundo sem Deus.[28]

E o que podemos dizer do tempo em Sinantia Quasi Coelum?

Antes do texto, uma epígrafe visual, uma página que se desdobra três vezes e explode em ramas vegetais entrecruzadas, em amarelo chocante. Depois a epígrafe verbal, de Novalis:

Das Paradies ist gleichsam uber die gaze Erde verstreut – und daher so unkentlich geworden.[29]

O paraíso está em toda a Terra, por isso mesmo incógnito.

Temos aí uma contraposição a Dante, o paraíso não está nas alturas, onde também julga vê-lo entre brumas Mallarmé, o paraíso está entre nós, aqui, sobre a Terra.

E, logo ao primeiro sintagma da primeira página (considerando a tão antiquada leitura linear):

Glande de cristal

desoculta

ramagem de signos

 

soa

 

o acorde do uni

verso

campana estimulada

rútilo

último

coere                cúpola radiosa

sim                                                            um sino[30]

Em que glande (extremidade do pênis ou do clitóris) nos remete ao físico, ao anatômico, ao sexual e à fusão andrógina, pois que tanto pode ser a extremidade do órgão masculino quanto do feminino; a “glande de cristal”, trazendo com o cristalino uma imagem inorgânica e cinematótica.

Outras sínteses como “ramagem de signos” no percurso do tempo ou das variáveis velocidades, ultrapassando o limite entre o vivo e o inanimado, e “o acorde do uni/verso”, `έν τò  πάν – um o todo -, o acorde (acordo) múltiplo emanado do verso um, do único verso, as “subdivisões prismáticas da ideia”.

Uma citação de Ulisses de James Joyce, que termina com a palavra yes, “sim o coração dela batia como louco e sim eu disse Sims”[31], segundo a tradução de Antônio Houaiss, que Augusto de Campos[32] propõe que deveria ter sido traduzido pelo singelo Sim[33]; o sim no poema de Haroldo aparece logo no primeira página.

À quarta página, semência, que remete a sema, signo e sêmen: “pó de luz”.

O poema é todo percorrido pela ideia de autopoiese (como também Galáxias), um universo que se gera sem parar; e todo duplicado, o mesmo amor pelos signos e pelas sementes, tudo em semência, em potência, poder de brotar.

Mallarmé’s Un Coup de Dés: an Exegesis, de Robert Greer Cohn, é o mais completo estudo sobre o poema de Mallarmé. Publicado em 1949, o livro foi extraído de uma tese de Doutorado em Filosofia na Universidade de Yale. Greer Cohn estuda a estrutura do poema, e levanta várias hipóteses fecundas, como a proximidade única entre este e Finnegans Wake, expansão do poema a partir da frase-título, a existência de um ideograma em cada página (que, aberta, verso e anverso, constitui a unidade constitutiva do poema, recortada pelo eixo horizontal da frase-título, e pelo eixo vertical da dobra das páginas, em torno da qual dançam, ou voam, ou nadam as palavras, ou sons, pois em Mallarmé, como observa Kristeva[34], os sons são as menores unidades formadoras e carregadas de sentido, formando novos significados latentes, para além do sentido léxico atual), ideograma este que cumpre ao leitor ser hábil para descobrir, o ritmo da vida surgindo no poema a partir do ritmo inorgânico do mar, a divisão por quatro a partir de um, recusando a tríade hegeliana e remetendo ao ciclo quaternário da história, segundo Vico e Joyce de Finnegans Wake. Greer Cohn mostra a humildade de reconhecer os limites da crítica, propondo que ela os atinja, use e ultrapasse:

Perhaps Mallarmé’s grave admission was right, perhaps Un Coup de Dés is as extravagante just as Finnegans Wake may be. But on the basis of the “past performances” of Mallarmé, as of Picasso or Joyce, we owe it to this genius to bring to his most demanding creation all the understanding of which our Age of Criticism is capable. If we do not, the future surely will and, than, who knows what it may judge of us?[35]

Podemos pensar que Um Lance de Dados é poema-tratado, o processo barroco (paradoxo, espiral) de relação entre o limitado e o ilimitado, tensão que produz pares ou dual-polaridade, dentro do esquema da multi-polaridade de que nos fala Greer Cohn:

Multi-polarity, of which dual-polarity constitutes a phase, is an epistemologial system based on paradox. In it a single relation involving paradox is regarded as on “dimension” of the armature of the system. For example, in the problem of identity, A = A, we are confronted with the fact that A must not be A for us to be able to set up the formula, and A must be A for the identity; result: a one-”dimensional” paradox. Why one-”dimensional”? Consider now the two phases of the paradox, the joining or synthesis phase (A = A) and the splitting or analysis phase (A ≠ A). In the analysis phase a distinction is implied, non-equality, which distinction involves, however slightly, a certain “preferentiality” or value judgemente when compared to the implication of the synthesis phase. This “preferential” distinction we are inclined to visualize as occuring on a vertical plane as opposed to the horizontal plane of equality. We now have: a vertical relationship A ≠ A and a horizontal, A = A. But the paradox obtaining at the first attack on the problem, the uni-”dimensional” one, is operative between the two “dimensions” now mysteriously generated so that we are inclined to collapse the “dimensions” through synthesis, reopen them through analysis. Since the paradox is, now, of a paradox, we can see the danger of an infinite regress, for every relationship can be returned-upon in the same way.An escape from de regress is supplied by nature in that as long as we are making a statement, or are even alive, there ipso facto an excess of analysis over synthesis, total synthesis being equivalent to death (as we hinted in our opening pages). The description of a paradox is a fixing of it, this fixing being permitted by the one-sided excess of analysis which splits things away from the rest of reality and allows us to name them. We may describe a dual-polar relationship, in the same way, by fixing it in a “cross” pattern (or a right-angle pattern). This is what we shall do in concection with Mallarmé’s Poem; but, even though the pattern is provisionally fixed, it carries the implications of paradox so that through its armature can pass realationships which would otherwise disconcert us.[36]

É o “misticismo” de Mallarmé que assombra sua obra mais bonita e hermética, Brinde, Igitur, Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso, isto, inominável, árreton, aquilo de que a poesia/pensamento de Mallarmé fala: o homem é horizontal limitado todo atravessado e inundado pelo vertical ilimitado, em alguma parte de si que é como se estivesse fora de si, pois imponderável[37].

Já citamos a ligação de vasos comunicantes entre Un Coup de Dés e Finnegans Wake (Robert Greer Cohn, David Hayman, Augusto de Campos), que se manifesta pelas aproximações seguintes: a estilística de sugestão; os elementos mallarméanos na obra de Joyce; despersonalização do artista; processos de composição como jogos de palavras; desordem sintática; associação de ideias; sistemas de dualismos, paradoxos e temas musicais; constelações de ideias subsidiárias visando à cosmogonia; concepção de obra circular (moto perpétuo em Mallarmé, leitura iniciável a qualquer ponto de Joyce); quarta dimensão acessível pela linguagem poética; espaço-tempo sintático-visual; o mito da criação e da queda do homem, e sua redenção pelo eterno retorno (cíclico ou aberto); citações disfarçadas de FW: MALMARRIEDAD, MAEROMOR, MOURNOMATES, MAMMAMANET, MANYOUMEANT, MALLAURAIS, MALLYMEDEARS, CULPO DE DIDO etc.[38]; caracterizando entre os dois a alotropia estilística: obras que se apresentam com propriedades externas diversas, mas que têm a mesma estrutura interna[39].

Outra obra que se aproxima de Um Lance de Dados é a de Mário Peixoto, pirata enigmático e sombrio, criador e mito do cinema nacional, por seu filme Limite.

Segundo Emil de Castro, na biografia de Mário José Breves Rodrigues Peixoto, Jogos de Armar “a certidão de nascimento desapareceu e a sua identidade foi adulterada, pois trazia o ano de 1918, quando, na verdade, ele nasceu em 25 de março de 1908; e não foi na Bélgica, como queria fazer crer, mas, quase com certeza, no Rio, talvez na Tijuca”[40].

Em Paris, Mário Peixoto viu, por acaso, andando na rua, na capa da 74ª edição da revista Vu, de 14 de agosto de 1929, a foto de André Kertesz (que está no site www.mariopeixoto.com), mostrando uma mulher de olhos arregalados, envolta por braços masculinos com algemas, o que o inspirou a escrever o roteiro de Limite, rascunhado naquela mesma noite, no hotel da cidade francesa. Realizado entre maio e outubro de 1930, tendo como locações arredores da cidade sul fluminense de Mangaratiba, onde também ficava a Fazenda Santa Justina, de seu tio Vitor Breves, irmão de sua mãe, que deu apoio financeiro e emprestou a fazenda e seus empregados para a realização do filme. A fazenda, que foi invadida por elementos do Movimento dos Sem Terra, pois é considerada improdutiva desde 1986[41], na época das filmagens produzia café e foi o QG da produção, e só aparece numa sequência das colunas da casa sede. O filme estreou numa sessão matutitna do cinema Capitólio, em 17 de maio de 1931, e sua restauração por Plínio Sussekind Rocha e seu aluno Saulo Pereira de Mello, (pois a película estava se deteriorando) iniciou-se nos anos 50, sendo concluíada somente nos anos 70.

Ele nunca mais conseguiu filmar, mas persistiu escrevendo roteiros, na esperança de realizá-los.

Logo depois que fez Limite, iniciou o filme Onde a terra acaba, cujo título foi aproveitado por Sérgio Machado (roteiro e direção), no documentário que lhe rendeu mais de dois anos de pesquisa, sobre a vida e obra de Mário Peixoto (2002, estúdio Videofilmes, distribuição Riofilme, Brasil, 75 minutos; produção de Maurício Andrade Ramos, fotografia: Antônio Luiz Mendes, desenho de produção: Raquel Freire Zangrandi, direção de arte: Cássio Amarante e Mônica Costa, edição: Isabelle Rathery). No filme o próprio Mário dá depoimentos, além de outros cineastas e amigos, e o narrador, o ator Matheus Nachtergaele, lê trechos de diários, entrevistas e cartas de Mário Peixoto. Há ainda cenas de Limite, Onde a terra acaba, e os dois makings of. A montagem do documentário segue o ritmo de Limite, o clima do clássico, que é recuperado, pelas filmagens de céu e mar e praia da região de Angra dos Reis, bem como pela trilha sonora de músicas clássicas impressionistas francesas. Onde a terra acaba ganhou o Prêmio Especial do Júri Mostra Documentários, no Festival da Gramado, recebeu uma indicação ao Grande Prêmio Cinema Brasil, na Categoria Melhor Documentário e uma indiação ao Prêmio Adoro Cinema 2002, na Categoria Melhor Pôster. Nas falas do filme, bem como nas citações do site sobre o autor e na carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, que leremos, a palavra “scenario” indica o que hoje se costuma chamar de roteiro (o texto original do “scenario” Limite foi publicado em 1996, pela editora Sette Letras).

Logo no início, as legendas:

Em 1930, com apenas 21 anos, Mário Peixoto realizou no Brasil um dos mais belos e inovadores filmes da história do cinema mudo.

Em 1998, críticos e cineastas apontaram Limite, seu primeiro filme, como a mais importante obra cinematográfica produzida no país.

Em 1992, Mário Peixoto morreu aos 84 anos, sem haver realizado um segundo filme.

A voz do narrador lê um texto de Mário Peixoto, que diz:

A realidade pra mim não tem consistência. Que se há de fazer? Não há dúvida que a vejo. Mas só. E se me refiro a ela, é num tom ou num pensamento em que a gente se refere a coisas que não constam nem impedem, porque não afetam.

A realidade pra mim não tem importância. Não me modifica. A imaginação sim. Substitui tudo, e convence. Aliás, é só o que existe pra mim. Vivo dela. Porque é verdadeiramente o que me faz vibrar. Crio e apago ao meu feitio, como um halo com um sopro.

Eu sofro de uma dor física. Mas isso não me impede que eu viva fora da realidade. Mas além do mais, ela é feia, barulhenta, desarmoniosa e nociva.

Depois, são lidos trechos do diário em inglês, que Mário escreveu quando estudava na Inglaterra, e que mostram sua inadequação, seu mal estar na Europa.

Cacá Diegues dá um depoimento, no qual declara que Limite mostra uma direção que o cinema poderia ter tomado, e não tomou. Nelson Pereira dos Santos diz que quando viu Limite o considerou o melhor filme brasileiro, e até hoje pensa assim.

Mário não se deixava filmar, fugia da publicidade e da cidade grande. Seus empregados do sítio do Morcego contam no filme que ele mentia para jornalistas e outros curiosos que iam procurá-lo, dizendo que ele não era Mário Peixoto. Seu biógrafo Emil de Castro, na entrevista citada (para Carlos Haag, Folha de São Paulo, http://www.limitude.hpg.ig.com.br/), fala que ele queria criar em torno de si uma aura de gênio, “grande mito da cultura” (ele seu filme), e não revelava ou falsificava dados da sua biografia, como no caso da certidão de nascimento falsa ou do suposto texto escrito por Einsenstein (Mário).

Ruy Solberg conseguiu produzir o único registro audiovisual sobre Mário, no curta O homem do Morcego, preto e branco, 35 mm, 20 min., realizado em 1980. É as cenas deste documentário que assistimos quando Mário fala tranquilo em Onde a terra acaba. E nos conta como teve a ideia de Limite, e como as coisas foram acontecendo, que ele e Brutus viram Braza dormida, de Mauro Humberto, e quiseram filmar algo, e Mário falou de seu manuscrito parisiense. Que procuraram Ademar Gonzaga, mas que este falou que “um cenário assim, só o seu autor poderá filmar”, o mesmo se dando com o próprio Humberto Mauro, que, no entanto, fez a ponte com eles e Edgar Brazil, o gênio da fotografia que, segundo o próprio Mário, tornou possível Limite, compreendendo as cristalinas imagens que Mário projetava em sua mente, trazendo pro Brasil o filme policromático que permitiu as nuances da película em preto e branco, e inventado e construindo equipamentos para poder fazer o filme.

Na década de 50 escreveu A Alma Segundo Salustre, roteiro para filme falado, que mostra poderosa unidade temática e estilística com Limite. Excepcionalmente, o texto foi editado pela Embrafilme, em 1983.

Em 1931, Mário Peixoto publica o livro de poemas Mundéu (reeditado em 1996 pela editora Sette Letras), para o qual Mário de Andrade escreveu no prefácio:

Os poemas, digamos legítimos, de Mário Peixoto se caracterizam especialmente pela rapidez. Tem-se a impressão de um jato violento, golfadas irreprimíveis. São poemas que nascem feitos, explosões duma unidade às vezes excelente, em que o movimento plástico das noções e das imagens é incomparável dentro da nossa poesia contemporânea.[42]

Ainda em 1931, Mário Peixoto 1931, publica, na revista Bazar, três contos e uma peça de teatro, que fazem parte de uma coletânea editada por Saulo Pereira de Mello em 2004, Seis contos e duas peças curtas, incluindo ainda material inédito sem datação, pela editora aeroplane, a mesma casa  que havia publicado, em 2002, Poemas de permeio com o mar, reunindo obras escritas entre 1930 e 1960.

Na linguagem poética de Mário Peixoto, que, se nos deixarmos prender em algumas de suas armadilhas, parece ser clara, as imagens sempre irão nos conduzir a um estado de torpor em que nosso olhar jamais estará mais claro – pelo contrário, teremos sempre a sensação de que o olhar torna-se cada vez mais turvo, por conta da confusão sensorial com que nos deparamos. O movimento das imagens se impõe, seus poemas nos ensinam, e não nos resta outra possibilidade a não ser aceitar e tentar acompanhar este movimento. Com os poemas, descobrimo-nos imersos em uma intrincada rede de imagens que, com imensa velocidade, quase sempre vertiginosa, parecem ser sempre as mesmas, ampliadas e repetidas. Saulo Pereira de Mello aponta a existência de uma imagem protéica que reaparece ao longo de Limite. Acreditamos que esta leitura evidencia a ocorrência de uma imagem essencial, que não se contenta com aparências e superfícies, assume diferentes formas e retorna com insistência, pois parece que esta imagem está sempre ao redor dos mesmos núcleos temáticos. Em função da organicidade que identificamos na obra de Mário Peixoto, podemos constatar que este fato não ocorre apenas no filme, mas também nos poemas e nos romances, com a particularidade de as imagens de cada um destes serem essencialmente as mesmas já que, apesar de as formas se distanciarem, possuem invariavelmente uma profunda coerência temática entre si. No entanto, suas imagens poéticas sempre revelam realidades que não parecem ser reais e verdadeiras, mas sim simulacros que não podem ser evitados e, por toda a obra, parece haver uma profunda coerência, pois as imagens evidenciam uma unidade temática que acaba por fornecer à sua obra a possibilidade de formar um todo orgânico – por isso referimo-nos à organicidade da obra.

Na obra literária de Mário Peixoto, a escrita jamais encobre as imagens, pelo contrário, sempre as revela. “Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar”, afirma Flusser, o que nos leva a pensar que, na obra de Mário Peixoto, permanece bastante clara a percepção desta contradição da palavra escrita, que a um tempo nos aproxima e nos distancia da realidade concreta. A linguagem, em sua obra, será sempre recriada, e aparece como construção – com todos os seus riscos e promessas.[43]

Em 1937, Manuel Bandeira pede em carta a interveção de Mário de Andrade, pois MP participou de um

/…/ concurso de cenários para filme de cujo júri você /Mário de Andrade/ faz parte. Chegou-lhe a ele a notícia de que o júri não quer levar o trabalho dele em consideração porque nas bases do concurso exigia-se um máximo de 53 páginas e ele escreveu mais de 100. O rapaz, que é um técnico em matéria de cinema, diz que não respeitou a exigência, porque o concurso era não de enredo, mas de cenário, e não é possível escrever um cenário, como isso deve ser feito e como ele aprendeu em Londres, em tão poucas páginas. O que o desola é não tanto o fato de não pegar o prêmio, mas de o seu trabalho não ser lido pelo júri: levou seis meses a trabalhar na coisa e tem grande confiança no que fez. Peço-lhe, pois, que se interesse por ele, no sentido de ver se consegue que os seus companheiros de júri leiam o que ele escreveu. /…/

/…/ O rapaz do Sono sobre a areia teve notícia que o trabalho foi afinal distribuído ao júri. /…/[44]

Além disso, MP publicou O Inútil de Cada Um, em 1934, em edição particular pela Tipografia São Benedicto, e em 1935, pela editora Alfredo Frederico Schmidt. O romance foi recolhido à época, e relançado em 1996, pela editora Sette Letras, na versão original.

Mário reescreveu o texto, que havia sido sabotado, censurado, romance original de 1935 nunca esteve no mercado livreiro, pois toda edição foi adquirida e queimada pelo pai do autor. Entre 1967, em Angra dos Reis e no Sítio do Morcego, e 1975, quando se instala no hotel Angra Tourismo, Mário reelbora a obra, agora com seis volumes.

Este relançamento seria a coroação de seu trabalho criador, tantas vezes e de tantos modos abortado; não era mais o volume único original, e sim a retomada de toda sua vida e de tantos projetos, um balanço, um legado, uma espécie nova mas que nos traz à memória À la Recherche du Temps Perdu, de Proust. 1984.

A obra se estende por seis volume: 1 – Itamar, 2 – Lins, 3 – Cádio, 4 – Hernani, 5 – Sonâmbulas Gelatinas num Aquário e 6 – O Esgrima das Profundezas.

A editora Record publicou o primeiro em 1984, por intervenção de Jorge Amado, com quem Mário havia trabalhado anteriormente num de seus projetos fílmicos. Os outros cinco volumes estão sendo preparados para edição pelo Arquivo Mário Peixoto (fundado por Walter Salles em 1996, o arquivo é gerenciado por Ayla e Saulo Pereira de Mello, abrange, entre outros, um imenso volume de livros, roteiros, correspondências, fitas de áudio e vídeo bem como material fotográfico e é aberto a pesquisadores, estudantes ou qualquer pessoa interessada em conhecer a vida e obra de Mário; o endereço é Praça Nossa Sra. Da Glória, 46, Glória, Rio de Janeiro, RJ, CEP: 22211-110).

Em “A Obra-mestra de Mário Peixoto”, apresentação da edição de 1984, Octavio de Faria diz:

Pensando bem – e sem um minuto de vacilação – quero afirmar bem alto: de todos os romances que foram escritos no Brasil, e desde o início dos inícios, nenhum deles assume a importância, o valor intrínseco de O Inútil de Cada Um, de Mário Peixoto.

Mário Peixoto, o de Limite, todos conhecem. Mesmo não figurando nos nossos dicionários, bibliográficos ou artísticos, ele é o inconfundível criador de Limite – a obra de cinema puro que entusiasmou cineastas como Einsenstein, Poudovkine, Orson Welles – o poeta de Mundéu que deliciou com seus ritmos próprios tanto Manuel Bandeira como Mário de Andrade, o poeta que tem pronto para impressão Poemas de Permeio com o Mar, que reputo uma das obras máximas da nossa poesia contemporânea.[45]

Mário filmou Limite aos vinte e um anos. No entanto, era já a obra de sua vida, que o marcaria para sempre com o estigma de gênio e de maldito, de hermético, aquele de quem não se fala, o autor do filmes que não se vê e não se entende.

Talvez tenha sido ele, tão jovem, aquele que no Brasil de sua época melhor entendeu e desenvolveu a proposta revolucionária radical que Mallarmé apresentou como novo paradigma estético no poema.

E de que forma é a proposta de Mallarmé retomada em Limite?

Já dissemos que há obras que são vasos comunicantes (se você colocar uma substância em apenas um dos vasos comunicantes, daqui a pouco os dois a terão por igual), para além da simples influência, como é entendida normalmente; em uma abordagem relativística (ou, por outro lado, quântica) do tempo ele foge em muitos sentidos ao que a experiência comum capta e entende, aparecendo como não linear, e avançando em ondas de radiação em várias direções, inclusive do passado, como na do futuro (que são duas das muitas possíveis, e que nós conhecemos).

Assim podemos pensar não só na influência de Mallarmé sobre Joyce ou Peixoto, mas também na dupla direção da troca, tráfego ou tráfico de ideias, ritmos, pensamentos, versos, durações etc., viajando de uma a outra, entendendo sob a luz da física quântica e da cibernética e da informática a questão da intertextualidade (ou transtextualidade).

Há muito de cinema profetizado já no poema de Mallarmé. Muito provavelmente ele é também uma sinfonia; mas talvez seja, pelas mesmas razões, muito mais ainda um filme invisível, ou visível na virtualidade; sua preocupação com a duração é cinematográfica; sua reprodução do pensamento se fazendo como ondas em movimentos aquáticos e marinhos é cinematótica.

Limite é cinema, é claro – cristalino, pura luz, pura visão, quase que ultrapassa o estatuto de visibilidade. Nas duas obras a mesma investigação; o limite e o ilimitado, e o humano no meio, limitado por todos os lados, de todas as maneiras, e no entanto trazendo o ilimitado no sonho, na percepção, no desejo e no pensamento.

É interessante que uma revista de vulgarização científica fantástica (na trilha de O Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier e O Tao da Física de Fritjof Capra) chame-se Limite, e tenha na capa do primeiro número, que saiu em 1993, a ilustração de uma caravela navegando pelo espaço entre a Terra e seu satélite. Em matéria publicada no número dois, “Natureza Artificial”, que está na seção denominada “Caos” (referência à ciência do Caos e ao livro Caos; a Criação de Uma Nova Ciência, de James Gleick, que também trata do assunto em “Uma Geometria da Natureza”) Rafael Monroe assim explica a geometria fractal:

Existe um tipo de objeto de artesanato vendido em barraquinhas de esquina que sempre desperta a curiosidade dos observadores. São duas placas de vidro seladas em formato de sanduíche, tendo como recheio uma fina camada contendo água e areia colorida. Para exibi-la o camelô sacode fortemente o conjunto e a água se turva completamente. Colocando então o objeto em repouso, a areia vai assentando e – surpresa – paisagens começam a se formar no quadro. Vemos montes, cordilheiras, vales, planícies… um pequeno mundo vai surgindo, uma cena nova a cada sacudida.

/…/

Benoit Mandelbrot, um gênio matemático de intuição admirável, começou a demonstrar há duas décadas que as formas naturais são criadas a partir de sistemas de equações extraordinariamente simples. Ele provou que repetindo estas formulações de forma interativa por milhares de vezes, era possível criar formas que simulavam as produzidas pela natureza.

Na publicação da primeira versão de suas ideias, em 1975, ele reuniu trabalhos esquecidos de matemáticos do passado à sua nova visão da gênese das formas naturais e criou a assim chamada Geometria dos fractais.

As figuras fractais têm a propriedade de produzir formas similares em qualquer escala. Poucos grãos de areia em um vidro mostram figuras que parecem muito as de cadeias de montanhas reais. A água de uma onda deixa na areia uma forma que lembra a de um litoral completo visto do alto de um morro. /…/[46]

O filme Limite é um ótimo exemplo, em arte, das teorias da física quântica e da geometria dos fractais. Ali o mar é o fundo de todos os ritmos e durações que ocorrem, como se, de maneira fractal, todo o movimento vital ou social das três pessoas no barco já tivesse a forma do movimento marítimo, como se toda sua vida fosse a preparação do momento em que, náufragos no pequeno bote à deriva, os três se encontram, ali presos, limitados pelo barco e pelo mar, sem ter para onde ou como ir.

Saulo Pereira de Mello, que trabalhou na recuperação do filme, praticamente destruído, preparou um livro em que reúne os fotogramas em sequência, e na proporção da duração dos takes, que é um valioso estudo do ritmo e montagem da película e da excepcional fotografia de Edgar Brazil. Saulo, pressentindo que o filme é uma cartografia de intensidades que trabalha com o tempo complexo, complicado, não linear, fez questão de deixar bem claro que o livro é um MAPA de Limite, não um roteiro, nem uma partitura, ou uma amostragem de fotogramas, e sim um MAPA, como se guardasse as coordenadas de um tesouro, ou de um local a que se pretende chegar.

Leiamos algumas observações extraídas o prefácio e da introdução:

Constantemente, a cena que se está vendo (absorto por ela) domina o desenvolvimento que ante nós se está desenrolando. Usando a terminologia de Bergson, poder-se-ia dizer que, a cada momento, o “devenir” do filme é rompido em sua continuidade, homogênea e perfeita, pelo “momento” artístico que quer parar e se fixar numa obra de arte autônoma. A cada instante, a cena tende a se tornar fim em  si, de tal modo o realizador conhece e admira o seu valor estético como parte, como unidade indecomponível.

/…/

Em torno de uma linha central, eixo de todo o filme, vejo inúmeros círculos, curvas que se repetem (mas que não se acentuam muito) respondendo umas às outras numa harmonia quase matemática. Tudo equilibrado, como que desenhado a compasso.

Esse eixo central não me parece ser, como se pode pensar à primeira vista, o barco em si, (o barco onde começa e acaba o filme e onde se reúnem os destinos separados de seus personagens). Parece-me, antes, residir no ritmo do barco (se a afirmação não parecer ser demais estranha… e vou tentar explicá-la).

Quando os personagens narram a vida que tiveram, ou ela nos é contada, sente-se, graças à rigorosa unidade de ritmo do filme, que o ritmo do barco foi como que transportado para a terra e continua presente em todas as eventuras que descreve.

/…/

Utilizar “Limite” como acesso às próprias raízes de obsessões do Ocidente é cumprir o destino para o qual, em última análise, foi gerado por sua cultura-útero. A sua visão é uma espécie de aventura profundamente humana, essencialmente fáustica, viva e sempre pessoal – embora comum a todos os homens ocidentais, com os sentidos alerta e ligados pela mesma obsessão do infinito. É uma viagem – viagem a uma terra incógnita onde existe um tesouro: a própria compreensão da natureza do Ocidente. Por isso este trabalho é um MAPA, uma carta planetária que, conscientemente vista, decifrada em seus símbolos, revelará o destino que conduz “Limite”.[47]

A fita começa com o letreiro Limite, com as letras se ampliando e distorcendo, como cera que derrete. Depois os créditos; fade out; negro; fade in: sol sobre monte com aves marinhas; fusão (sobreposição desta imagem a) Olga (mulher 1) com algemas, mãos com algemas só, fusão, close dos olhos, fusão, brilho do sol dançando na água do mar, fusão, olhos, fusão, close de Olga no barco. Três pessoas, num barco a remo, perdido no oceano: homem 1 (Raul Schnoor), mulher 1 (Olga Breno) e mulher 2 (Taciana Rei). Raul abatido, caído prà frente. Calmaria. Desânimo.

O mar, os remos inúteis, seus cabelos desgrenhados. E a repetição e a permanência disto tudo. Flash back: Olga presa, um homem de quem só se veem as mãos e os pés a ajuda a fugir. Grades vazias. Toda a cena da fuga é mostrada com os pés, os braços, objetos parciais. Novos ângulos, inusitados; o casario, árvores, ramagem (como a estrutura vegetal que volta e meia surge fotografada e pintada em Signantia Quasi Coelum). Em sua peregrinação de fugitiva o mesmo desconsolo que ela irá mostrar depois, no barco em alto mar. O mesmo sem saída. Olga costurando, closes dos utensílios de costura, estranhamento da roda da máquina, do carretel de linha etc., pela excessiva proximidade. A notícia de sua fuga, no jornal que ela lê. Casas, rua, roda de trem girando (como a roda da máquina de costura). Volta ao barco, à exaustão e ao desespero. Toda uma sequência de negativos danificada, que culmina em um trecho totalmente perdido: os estragos nos celulóide parecem fogo vivo, e ao mesmo tempo devir molecular, moléculas dançando como a água e o barco e quem nele está. Um intromissão quântica, ao acaso, e que fica estranhamente em harmonia com o movimento do filme.

Não vamos acompanhar cena a cena, pois, além do filme estar hoje restaurado, há o mapa organizado por Saulo; e “contar’ as imagens, além de não poder reproduzir a sensação única de vê-las em sua música e luz, diminui e cerceia o sentido. Fazemos apenas algumas anotações que podem ser sintomáticas, como no take 93, um garoto (de quem só se veem o peito, os braços e as pernas) avança para a câmera carregando um peixe na mão, pendurado pelo rabo. Logo depois, takes 95 e 96, cesta de peixes, de onde um é retirado.

No take 91 tínhamos visto uma guerra pulsante, sobre a areia. O limite, para o animal aquático na terra, para o homem no mar. A partir do take 98; o zoom no buraco que escorre água, uma espécie de bica, incrustada em uma coluna – mais um cruzamento de imagens inorgânico orgânico. O mesmo zoom se faz nove vezes, intercalado com outras imagens, como a do casario visto deitado, telhado, câmera corre sobre telhado. O ritmo frenético das tempestades e dos processos orgânicos nas pedras, nas telhas, nos ferros etc.

Depois vem a vez de Taciana. Homem bêbado na escada, olhares para alianças. Ela anda pela rua, encontra com outro homem, a câmera fica ao nível do chão, entre os dois, que parecem gigantes enquanto falam, ao alto o céu, o infinito entre eles. Taciana sobre uma pedra olha o mar. Câmera avança para ela: desespero. Como no barco, Taciana já parece que pensa em se afogar. Olga já está presa na cadeia ou a um trabalho sem sentido, e à condição de fugitiva. Cada um com prisões e limites sem fim, enquanto o tempo todo o olho desliza pelo infinito na praia, no mar, no céu, na arquitetura, na folhagem. Brutus anda pela rua, entra em um cinema, toca piano, enquanto na tela é projetada a película “Carlitos Encrencou a Zona”, com Charles Chaplin – um fugitivo (Carlitos) com uniforme de zebra, que cavou um buraco na terra para sair ao lado do guarda, tenta voltar pelo buraco; guarda o vê e tenta pegar, Carlitos negaceia o corpo, guarda cai. A prisão, a inutilidade da fuga, mesmo no filme dentro do filme, mesmo na comédia. Closes de bocas sem rostos que gargalham, contraponto do rosto de Edgar Brazil, fotógrafo de Limite, dormindo com um palito enfiado na boca.

Volta ao barco, desespero, vãs tentativas, não há nada a fazer. Olga tenta remar, desiste. Deita-se à borda do barco, bota as mãos na água. Mãos e pés, casal sem rosto anda pela praia, de mãos dadas. Pegadas. Casal ao longe, no capinzal. Vegetais, postes com fios de luz. Arcada de ruína, cacto sobre areia. Raul no barco, em desespero, fala. Vê que a água já toma o fundo do barco. Vegetais e postes, em positivo e em negativo da foto. Ruína da arcada. Mar. Homem (mãos, tronco, pernas) que deixa casa de mulher, beija-lhe a mão. Vegetação, passos. O homem, que já aparecera ao beijar a mão da mulher e é Raul, fumando, entra em um cemitério. Encontra Mário Peixoto sentado triste sobre um túmulo, a mão segurando uma aliança. Os dois se defrontam em cena expressionista, o excelente ator Mário diz a Raul (são as únicas três legendas de todo o filme, duplamente mudo para falar mais):

Você vem da casa da mulher que não é sua

supondo que ella seja minha como ésta foi sua

e se seu lhe disser que élla é morphética?…

Olhar terrível de Mário, fusão para o barco, a impotência, o tempo de espera. Volta flash back, Mário sai apressado do cemitério e Raul vai atrás dele, gritando pela mata, pergunta por ele para as pessoas. Câmera nervosa, panorâmicas rápidas, chicotes sobre a mata. Raul grita, e grita, e grita. Muitas vezes. Corre. Grita. Pergunta a mulher e a pescador. Continua andando. Até cair no chão, exausto, junto a uma cerca de arame farpado. Mar. Mata. Mão no chão. Duas cruzes. Redes, barcos, cabanas de pescadores. Cruz.

Raul compra passagem de trem. Close da engrenagem da roda do trem: parada, inicia movimento. Barco. Vazio. A lata de biscoito vazia. Raul vai pular ao mar, Taciana tenta impedi-lo, falam. Taciana o solta. Raul se joga. Taciana fica olhando da borda, os reflexos da água cintilam no seu rosto em close, take símbolo do filme. Raul não volta. Entra água no barco. Olga sempre sentada na proa, como uma esfinge, de costas para o barco e para Taciana, que a sacode; sendo repelida por Olga, Taciana cai no fundo do barco, prostrada, e Olga chora em desepero.

Tempestade no mar, num longo take, todo de movimentos de ondas e vetores de intensidade. Acabada a tempestade, encontramos Olga agarrada a um destroço, boiando no mar, os cabelos encharcados de água e sal, “Olga como uma alga”, ela mesma com algemas contra fundo negro, e agarrada a destroço boiando, brilhos, cintilações do mar, píncaro, a mesma imagem do início do filme, pássaros pousam no monte, céu vazio, píncaro vazio, fade out, negro.

O espectador sai transformado, em outro tempo, outra velocidade, rompidos seus limites, pelo menos por uns instantes.

A ilha do sonho, do delírio, do desejo e do naufrágio, ilha no ar, fantasma, em outra dimensão, é o cenário do filme de papel A Alma Segundo Salustre, que é assim apresentado por Arnaldo Jabor em “Nossa Fome Eterna”:

/…/ A Alma, Segundo Salustre é nosso sonho impossível. É a suprema saudade do amor que nunca tivemos, é a mulher impossível, é o mundo que se nos nega, é o pranto por tudo perdido, a metáfora ser palpável, é o desejo infinito e sagrado de que o mundo existisse, a esperança soluçante de salvar um universo platônico. Mário é um poeta que não se contenta com a metáfora, quer mais, mais, mais longe, quer filmar a essência, filmar o ar, e consegue; por isto, o filme fica em estado de roteiro, que é quando a câmera não surgiu ainda com seus ruídos e limites e o roteiro é a metáfora da metáfora, o plano de trabalho, a antecena, a esperança da imagem, a luz sem forma. A forma limita. /…/[48]

É a história de uma aprendizagem radical, total. César é o homem que vai aprender: a não falar, a ouvir a música e viajar, a ver, mais do que ouvir. Maduro, reencontra em sua ilha fantástica a infância de nada saber, de estar totalmente deslocado. Divide-se em dezenas de pessoas, como ossos seus que criassem vida, todos sem a falange do indicador da mão direita. Reencontra a sereia, a Mãe do Ouro, que não afoga seus amantes, mas tira-lhes a virgindade, tornando-os homens, e juntamente com isso tirando-lhes a força também, fazendo deles seus escravos, para o resto da vida[49]. A borboleta que se debate contra a vidraça, forçando, querendo ultrapassar os seus limites; as borboletas espetadas na coleção e as que voam às centenas, ao redor de seu barco falam da transmutação, da evolução, da possibilidade do ser vivo de ultrapassar os limites do conhecido, o vidro que prende mesmo que pareça que não está lá.

Quando César morre sua mão se completa da falange do indicador que lhe faltava, ao reabsorver todas as outras personalidades que dele saíram, completos agora. E uma onda congelada, o cinema que não traz mais o movimento, desde o início dos tempos: e a mão completa aponta para a onda, e ela explode, arrebenta na praia, funda a existência[50].

Em O Inútil de Cada Um, o anagrama, ou quase; limite – inútil. O fantasma da inutilidade ronda os personagens, que vivem suas vidas tão cheias e tão vazias, sem porquê.

A realidade para mim não tem consistência; o que é que se há de fazer…?! Eu constato e tal, mas absolutamente não tomo parte… É como se não fosse… Não há dúvida que eu a vejo, mas só. E se me refiro a ela – mas aquilo não me penetra – é num tom ou num pensamento em que a gente se refere às coisas que não constam nem impedem, porque não afetam.[51]

O capítulo cinco de Itamar, chamado “Hibernação”, conta a descida a um mundo passado (como em Igitur), uma outra dimensão, um castelo em ruína, cheio de monstros e fantasmas, morcegos, cobras e teias de aranha, onde o personagem vai buscar o livro, que se desconfia que seja este mesmo livro que se está lendo[52],  que é como uma penetração, sucessivas camadas da substância do tempo, como quem cava, camada após camada, cidades soterradas, memórias celulares e moleculares (e atômicos e subatômicas e…):

/…/ Mas o que eu quero salientar é visto de outro ângulo – onde o tempo propriamente assiste mas não penetra – se isso é possível.[53]

Escrever é um transe, um processo, que, tal como o seu filme, que nos força a mudar para outra velocidade mais rápida, e mais intensa, envolve o leitor no processo, do qual não sai ileso:

/…/ Escrevo por compulsão ou transe – e se com a insatisfação começar a correr muito, acabo por deteriorar o esquema – isto é quase sempre infalível![54]

O mistério e a máquina estão principalmente no recurso dos travessões, que fragmenta a obra inteira, estilhaçando as frases, redobrando os sentidos e fazendo brotar ideias dentro das ideias.

/…/ Esquecera aquilo tudo e agora me vinha à mente. Justo ali – e por quê – o que tinha a ver aquilo tudo com Lia – com as ruínas – e, sobremodo, revivendo tão nitidamente numa hora como aquela – naquele local sem ligação – veemente e dorido, invadindo-se com aquelas recordações soterradas, parecendo, além do mais, coisas de há séculos?[55]

Mallarmé, do coração do romantismo e do simbolismo envia como um farol um facho de luz que ainda serve como guia para os barcos dos poetas-marinheiros, não para a chegada ao porto, medíocre aspiração ulissiana, mas para o devir-Homero, no dizer de Blanchot, o encontro mais íntimo e amoroso com o mar, o naufrágio e o canto da sereia.

Um lance, entre um número absolutamente incontável de outros, tantos quantos grãos de areia há na praia, quantas estrelas lá no céu, um único lance, entre os muitos que pode o indivíduo, com os dados à disposição, fazer, fica sendo a sua jogada, neste caso, um lance de dados aparentemente (para críticos e público unilaterais) fracassado, torna-se vitorioso na medida em que inventa novos jogos, novas formas de fazer, novas mentalidades, ergo, novos mundos, novos egos e até, quem sabe, está inventando uma nova arte, que poderíamos chamar de nada, isto é, caos, ou, ainda, para não confundir o plano de imanência com os sistemas, caosmose, o limite fluido e translúcido, geleia, entre o real e as virtualidades.



[1] “Mário Peixoto ou Mário Breves Peixoto, seu nome completo, nasce em 25 de março de 1908 – na mesma data que David Lean, seu diretor favorito -, provavelmente na Bélgica onde seu pai, João Cornélio, frequentava um curso de química. É descendente de família rica: do comendador Joaquim José de Souza Breves, maior plantador de café do império e maior traficante de escravos, da parte da mãe, e de usineiros de açúcar, da parte do pai. Estuda no Colégio Santo Antônio Maria Zaccaria de 1917 até 1926 quando interrompe o curso para seguir para a Inglaterra. Permanece de outubro de 1926 a agosto de 1927 no Hopedene College, em Willingdon, próximo de Eastbourne, no Sussex. Na volta ao Brasil, é apresentado ao Brutus Pedreira, que o leva para o Teatro de Brinquedo. Conhece os irmãos Silvio e Raul Schnoor e a irmã Eva, bem como Adhemar Gozaga e Pedro Lima. Em 1928, é fundado o Chaplin Club, um circulo de amigos debatendo questões teóricas relacionadas ao cinema. Participa dele, entre outros, Octávio de Faria, amigo de infância de Mário Peixoto e seu interlocutor privilegiado. O Club publica entre 1928 e 1930 a revista O FAN. O desejo de informar-se mais sobre cinema e ver mais filmes faz Mário voltar à Europa em junho de 1929, quando visita junto com o pai Londres e Paris. Conforme Peixoto, a seguinte foto de André Kertesz na 74. edição da revista VUvisto por acaso num passeio pelas ruas de Paris, age como inspiração final para escrever na mesma noite o primeiro esboço para seu filme Limite. De volta ao Brasil, em outubro de 1929, Mário Peixoto continua em contato com a cena artística, provavelmente presencia as filmagem de Lábios sem beijos e de Saudade e possivelmente encontra pela primeira vez a atriz Carmen Santos e o cameraman Edgar Brazil. Apresenta o scenario de Limite aos diretores Gonzaga e Mauro, mas ambos opinam que o próprio Mario deveria realizar seu filme. Limite estreia em 17 de maio de 1931, no cinema Capitólio (Rio de Janeiro) mas não consegue distribuição comercial apesar dos esforços de Adhemar Gonzaga. No mesmo período, Mário inicia a filmagem de Onde A Terra Acaba, uma produção ambiciosa, financiada por Carmen Santos, também atriz principal do filme; mas devido ao rompimento entre Carmen Santos e Mário Peixoto, o filme é interrompido, e Limite permanece o único filme realizado. Entre os vários projetos inacabados, encontram-se títulos como Constância (1936) ou Maré baixa, também chamado Mormaço, da mesma época. Em 1937, a pedido de Carmen Santos, com quem tinha se reconciliado em 1934, Mário escreve o scenario de Tiradentes. Carmen não o usa e o texto desapareceu. Em 1938, Mário Peixoto tenta realizar Três contra o mundo. Em 1946, Mário Peixoto, junto com Carmen Santos e Afonto Campiglia, pensa em voltar a filmar Onde a terra acaba em versão falada. O projeto não teve seguimento. Possivelmente em 1947, adaptou-se em scenario o ABC de Castro Alves de Jorge Amado para Carmen Santos, mas o filme não foi realizado. O scenario ficou com Carmen e desapareceu. No ano seguinte, 1948, Rui Santos e Afonso Campiglia anunciam que vão produzir dois filmes: Sargaço de Mário Peixoto e Muiraquitã de Jonald, o crítico de cinema de A Noite, mas logo vem a notícia de que os dois filmes seriam substituídos por outro: Estrela Da Manhã, com scenario de Jorge Amado, fotografia de Rui Santos e direção de Jonald. O nome de Mário Peixoto desaparece dos noticiários, junto com Sargaço, e em 1952 Mário transforma o scenario do filme em A alma segundo Salustre, também não realizado. Junto com Saulo Pereira de Mello, escreve, em 1964, o scenario de Outuno/O jardim petrificado, vagamente baseado em Missa do Galo Machado de Assis. Em 1966, Mário fixa residência no Sítio do Morcego que tinha ganhado do pai já em 1938 decora a casa com antiguidades e trabalha na reescritura de um romance publicado em 1935: O inútil de cada um. Mário estende o curto livro original para um universo literário singular com traços autobiográficos de seis volumes e aproximadamente 2000 páginas. Trabalha nesta obra obcecadamente quase até o final de sua vida. Por enquanto, apenas o primeiro volume foi publicado (1984). Por problemas financeiros, é forçado a vender o sítio, se muda para o hotel Angra Turismo e vive os últimos tempos de sua vida num apartamento em Copacabana, também herdado do pai. Aqui, uma das ultimas fotos do Mário de 1991. Seu filme Limite vira marca referencial do cinema brasileiro. Em 1988, é escolhido, em inquérito nacional promovido pela Cinemateca Brasileira, o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Em outubro do mesmo ano, Mário Peixoto ganha um prêmio especial do Governo do Estado do Rio de Janeiro e em janeiro de 1989, uma bolsa da Fundação Vitae para concluir os volumes restantes de O inútil de cada um. Em 1991, com a situação econômica precária, adoece, mas é apoiado nesta fase difícil por Walter Salles. Mário Peixoto falece dia 2 de fevereiro de 1992 e é enterrado no cemitério São João Batista no Rio de Janeiro. Em 1995, no ano do centenário do cinema, Limite novamente é considerado o melhor filme brasileiro de todos os tempos em inquérito nacional promovido pela Folha de São Paulo.  Em 1996, Walter Salles funda o Arquivo Mário Peixoto na sua empresa videofilmes no Rio de Janeiro onde Saulo Pereira de Mello e sua esposa Ayla cuidam dos objetos e manuscritos originais de Mário Peixoto e editam publicações do cineasta/autor bem como textos críticos. Onde a terra acaba, o título de um dos filmes inacabados de Mário, também é o nome de um premiado documentário realizado por Sérgio Machado em 2002.

Referências bibliográficas:

Castro, Emil de. Jogos de armar. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000.

Estudos sobre Limite de Mário Peixoto. Laboratório de Investigação Audiovisual-LIA da Universidade Federal Fluminense; CD-ROM (2000).

Mello, Saulo Pereira de. Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

Mello, Saulo Pereira de. Mário Peixoto. Rio de Janeiro : Casa de Rui Barbosa, 1996.

Mello, Saulo Pereira de. Mário Peixoto – Escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: aeroplano, 2000.

Peixoto, Mario, O inútil de cada um. Rio de Janeiro : Record, 1984.

Peixoto, Mário. Limite. “scenario” original. Rio de Janeiro: Sette Letras. 1996.

Peixoto, Mário. O inútil de cada um. Rio de Janeiro : Sette Letras, 1996. (reedição da versão de 1931, 153p.)

Peixoto, Mário. Mundéu. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

Peixoto, Mario e Mello, Saulo Pereira de. Outono – O jardim petrificado (scenario). Rio de Janeiro: aeroplano, 2000.

Peixoto, Mário. Poemas de permeio com o mar. Aeroplano, 2002.

Peixoto, Mário. seis contos e duas peças curtas. Rio de Janeiro: aeroplano,2004”. Disponível em http://www.mariopeixoto.com/biografia.htm , acessado em 21/10/2012.

[2] GUATTARI, Félix. Caosmose; um novo paradigma estético, trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro, 34, 1992, passim, e principalmente “O Novo Paradigma Estético”, pp. 127-148.

[3] Idem, ibidem, pp. 51-52.

[4] ANAXIMANDRO DE MILETO. Fragmentos. Trad. José Cavalcanti de Souza et alii. 4 ed. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os Pensadores, 1978, p. 16.

[5] CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de e PIGNATARI, Décio. Mallarmé, São Paulo, Perspectiva, 1974, pp. 32-33.

[6] CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, 2 ed. Rio de Janeiro, Alhambra, 1978, v. VII, p. 1707.

[7] BLANCHOT, Maurice. Le Livre à Venir. Paris, Gallimard, 1959, p. 11.

[8] _______. O Espaço Literário, Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Rocco, 1987, pp. 113-114.

[9] GUATTARI, op. cit., p. 44.

[10] SARDUY, Severo, in CAMPOS, Haroldo de. Xadrez de Estrelas, São Paulo, Perspectiva, 1976. p. 251.

[11] ALIGHIERI, Dante. La Divina Comedia. 3 v. Millano, Eizzoli, 1949; v. 1, p. 190; v. 2, p. 193; v. 3, p. 207.

[12] CARPEAUX, Otto Maria, op. cit., pp. 1801-1802.

[13] Idem, ibidem, p. 1711-1712.

[14] Idem, ibidem, p. 1712.

[15] CAMPOS, Augusto et alii. Mallarmé, p. 44.

[16] Idem, ibidem, p. 62.

[17] KRISTEVA, Julia. “Alguns problemas de semiótica literária à propósito de um texto de Mallarmé: Un coup de dés”, in Ensaios de Semiótica Poética. São Paulo, Cultrix-Edusp, 1976, passim.

[18] V. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido, trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974.

[19] Cf. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p. 689:

Glória. /Do lat. gloria/ S. f. /…/ 10. Jogo de dados em que os parceiros devem percorrer uma faixa em espiral, dividida em casas, até alcançar a última e central, a glória; e em que ganha quem, vencendo todos os obstáculos, ali chegar primeiro; jogo-da-glória, oca. /…/.

[20] PIGNATARI, Décio. “Tridução de L’après-midi d’um faune de Mallarmé”, in CAMPOS, Augusto et alii. Mallarmé, p. 85 e ss. É óbvio que Décio tem novamente uma inspiração em PEIRCE, cuja semiótica é toda construída em tríades ou tricotomias; o qual, por sua vez, bebeu nas águas trinas da dialética de Hegel.

[21] Assim como originalmente o I Ching só tinha os sessenta e quatro hexagramas, Kwa, que depois ganharam as sentenças, Tuan, escritas pelo Rei Wen, e as explanações ou sentenças adicionais, de autoria de Tan, Duque de Chu, filho do Rei Wen. V. I Ching, o Livro das Mutações.  Rio de Janeiro, Renes, 1972, /sem indicação de autor/;, p. 14.

[22] GREER COHN, Robert. Mallarmé’s Un Coup de Dés: an exegesis. New Haven, Yale French Studis – Payne and Lane, 1949. CAMPOS, Augusto. “O Lance de Dados do Finnegans Wake” in CAMPOS, Augusto e Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo,. Perspectiva, 1971, pp. 117-121. HAYMAN, David. Joyce et Mallarmé. 2 v. Paris, Lettres Modernes, 11956.

[23] CAMPOS, Augusto et alii, op. cit., p. 151.

[24] Idem, ibidem, p. 151.

[25] FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência, São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 130.

[26] Idem, ibidem, p. 130.

[27] MALLARMÉ, Stéphane. Igitur ou A Loucura de Elbehnon, pp. 66-67.

[28] ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias, 2 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p. 144.

[29] CAMPOS, Haroldo de. Signantia Quasi Coelum, São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 25.

[30] Idem, ibidem, p. 28.

[31] JOYCE, James. Ulisses, trad. Antônio Houaiss. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 852.

[32] CAMPOS, Augusto e Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake, São Paulo, Perspetiva, 1971, p. 141.

[33] Antônio Houaiss me explicou, em debate na UERJ, que o segundo s do Sims representaria uma pequena sibilação produzida por Molly Bloom ao pegar no sono, e manteria o esquema cíclico de Ulisses, que inicia com a letra s e também com ela fecha, assim como a mesma frase termina e reinicia o Finnegans Wake.

[34] KRISTEVA, Julia, op. cit.,  principalmente pp. 254-5, “é evidente que essa ‘unidade’ mínima não pode ser o signo /…/” etc.

[35] GREER COHN, Robert, op. cit., p. 7.

[36] Idem, ibidem, pp. 14-15.

[37] V. CAMPOS, Geir. Pequeno Dicionário de Arte Poética, p. 158, “POESIA PURA”:

Em oposição aos valores retóricos e oratórios do Romantismo, insurgiram-se os adeptos de uma chamada POESIA PURA, proclamando o primado da MÚSICA na composição poética e relegando a segundo ou último plano o elemento lógico, a ideia enfim. Para A. C. Bradley, em seu estudo Poetry for Poetry’s Sake, “o grau de pureza de um poema há de ser avaliado na medida em que se torna impossível obter o mesmo efeito poético através de qualquer outra forma verbal que não seja exatamente a dele” e por isso mesmo: “a identidade entre forme e fundo só se encontra quando a poesia corresponde à ideia, numa realização poética pura ou quase pura.”Para o Abade Henri Brémond, que aproxima a poesia da prece mística em seu livro La Poésie Purê, “a poesia pura é inefável, cosistindo naquele extraordinário poder que transforma em coisas poéticas os elementos impuros ou prosaicos”(que se podem referir em PROSA: pensamentos, imagens, sensações, etc.). Outro estudioso, Robert de Souza, em Um Dêbat sur la Poésie, tenta resumir o pensamento do Abade Brémond em seis itens: “1) Todo poema deve suas características poéticas essenciais a uma espécie de realidade unificadora e misteriosa; 2) não basta, mas é necessário, ler poeticamente um poema, para captar-lhe o sentido, uma vez que existe certo encantamento obscuro e independente do significado das palavras; 3) poesia não se pode reduzir a discurso prosaico, pois constitui um meio de expressão que ultrapassa as formas comuns da prosa; 4) poesia é uma espécie de música e ao mesmo tempo não é apenas música, pois age como uma espécie de condutor de corrente pelo qual se transmite a natureza íntima da alma; 5) é a incantação que proporciona a comunicação inconscientedo estado de alma em que se encontra o poeta até o momento em que se manifesta por ideias e sentimentos, momento esse que se revive confusamente lendo o poema; 6) a poesia é uma espécie de magia mística semelhante ao estado de oração.”

[38] Podemos ver nas variações do nome MIRAMAR que se encontram em O Perfeito Cozinheiro um eco ou sincronicidade desta prática, OA também ligando sua fatura a Mallarmé.

[39] Cf. CAMPOS, Augusto e Haroldo de, op. cit., pp. 117-121.

[41] V. Jornal O Globo, Segundo Caderno, p1, domingo, 15 de agosto de 2004.

[42] Ibidem.

[43] revista de cultura # 17 – fortaleza, são paulo – outubro de 2001 “

Mapas inexistentes, caminhos incertos: a obra poética de Mário Peixoto” Constança Hertz http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag17hertz.htm

[44] Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org., introdução e notas Marcos Antonio de Moraes. São Paulo, Edusp/IEB, 2001, cartas de Manuel Bandeira 13/11/1937 e 30/11/1937, pp. 640-641.

[45] FARIA, Octavio de. “A Obra-mestra de Mário Peixoto”, in O Inútil de Cada Um, V. 1: Itamar. Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 7.

[46] MONROE, Rafael. “Natureza Artificial’, in Limite n° 2.. São Paulo, Nova Sampa Diretrix, 1993.

[47] MELLO, Saulo Pereira de, in PEIXOTO, Mário, Limite, fotogramas, texto de Saulo Pereira de Mello, Rio de Janeiro, FUNARTE, pp. 16-17, 18 e 37.

[48] JABOR, Arnaldo. “Nossa Fome Eterna”, in PEIXOTO, Mário. A Alma, Segundo Salustre; roteiro de Mário Peixoto. Rio de Janeiro, EMBRAFILME-DAC, 1983, p. 2. Não concordo com Jabor, sua posição me parece por demais platônica e niilista, o melhor seria que Peixoto pudesse filmar, ele saberia fazer a câmera ultrapassar seus limites, como soube fazer em seu único filme.

[49] PEIXOTO, Mário. A Alma, Segundo Salustre, pp. 20-25.

[50] Idem, ibidem, 92-94.

[51] PEIXOTO, Mário. O Inútil de Cada Um. V. 1 Itamar, p. 178.

[52] Idem, ibidem, pp. 59-101.

[53] Idem, ibidem, p. 199.

[54] Idem, ibidem, p. 179.

[55] Idem, ibidem, p. 157.

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