Deleuze a literatura – parte 3

Podemos estabelecer as seguintes relações, como uma linha de implicações, que pode nos orientar de maneira sinótica: o imanente na ontologia implica em nômade na política, pensamento na noologia, univocidade na lógica e gótico na arte. Já ao transcendente metafísico ligam-se, em política, o estado, em gnoseologia, o conhecimento, em lógica, a analogia e, em arte, o orgânico (orgânico ou clássico ao par de inorgânico ou gótico, como duas alternativas da obra de arte, são conceitos tomados a Wörringer):

Imanente -> nômade -> pensamento -> univocidade -> gótico
Transcendente -> estado -> conhecimento -> analogia -> orgânico.

Dentro de cada uma das artes nas quais Deleuze mais se deteve, temos o seguinte rebatimento do problema: uma literatura maior versus uma literatura menor, a pintura figurativa que vai ser ultrapassada pela pintura figural, a imagem-movimento do cinema de ação e a imagem-tempo do cinema de vidente, e o estriado e o liso em música (os segundos conceitos sempre agenciados ao pensamento nômade; estriado e liso sendo hauridos da obra teórica do músico Pierre Boulez, ganham uma dimensão muito maior, ontológica, política e ética, além de estética, no pensamento de Deleuze e Guattari).

No caso da literatura, há duas grandes questões, que estão presentes nos livros sobre Franz Kafka e sobre Marcel Proust, respectivamente: a questão da literatura menor como desterritorialização do saber literário previamente dado (à maneira do pintor Francis Bacon, que diz sentir a necessidade de, antes de começar a pintar, limpar a tela em branco de todos os clichês da pintura que a preenchem devido ao nosso adestramento social, gnoseológico e perceptivo), em uma prática que é ao mesmo tempo poética e política, ética e estética; e a questão dos “mundos possíveis” de Proust, como uma etapa seguinte conquistada pela desterritorialização da escritura, mas que ainda vai exigir do escritor um aprendizado longo, através da observação dos sinais e da criação de uma teoria semiótica própria (signos mundanos, sensíveis, do amor e da arte) e que vai nos levar à expressão dos mundos possíveis de um autor.

Este processo em duas fases vai nos abrir toda uma nova teoria da literatura, e assim vão ser lidos ou relidos muitos autores importantes, Masoch, Zola, Michel Tournier, D. H. Lawrence, Thomas de Quincey etc., não propriamente como produtores de pensamentos filosóficos, mas sim como pensadores do plano de composição, que permitem o conhecimento de sinais que vão ser entendidos pelo crítico como uma clínica, a sintomatologia de diferentes modos de expressão e de diversos estados, intensidades e forças.

“Centauro filosófico” é expressão cunhada por Jaeger para designar Empédocles como filósofo híbrido de razão filosófica e representação mítica . Em nosso caso, Deleuze também nos aparece como um filósofo híbrido, Proteu e Ciclope, Centauro ou Sátiro, como ele mesmo o afirma dos sofistas . E isto não só porque funde a visão das três formas de pensamento, arte, ciência e filosofia, como produz também um novo híbrido, herdeiro que é de Nietzsche e Bergson, entre o campo empírico e o transcendental, para lá dos conceitos estanques de matéria e energia.

É preciso estudar a estética deleuziana como meio de penetração na sua ontologia e na sua epistemologia; mostrar que no pensamento de Deleuze estética tem uma dupla face, modo de vida e forma de apreender, para além da questão restrita da arte, ao mesmo tempo que afirma a arte em todos os momentos, como forma de vida e forma de conhecimento, segundo uma inspiração nietzscheana; e ampliar a leitura desse importante pensador, que faz de seu pensamento um campo de variações das questões que o pensamento coloca à vida e que a vida coloca ao pensamento.

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