O manicômio de Oswald de Andrade

Capítulo do livro O Olho do Ciclope e os novos antropófagos. Antropofagia cinematótica na Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Quártica, 2009.
Luis Carlos de Morais Junior

E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então tudo acabou se fazendo a vida real. E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada.
Mário de Andrade

Tudo o que foi dito e pensado sobre a obra de Oswald de Andrade deve agora ser repensado em relação a outras obras que, não sendo de Oswald de Andrade, são ainda, de certa forma, presenças de Oswald de Andrade na arte brasileira, através do século, para além dos oswaldianos e da literatura.
Se ele mesmo não se conteve em ser literário e criou textos que são cinema, que são música, que são balé (e fez um traço de união com a liberdade da dança de Isadora Duncan); se ele aproximou tanto sua produção do popular, do jornalístico e do audiovisual (cinema & televisão  & antes da televisão), e não pelo caminho familiar de facilitar ou vulgarizar no mau sentido o que escreveu, e sim no caminho inverso ou reverso (de reversão) de sofisticar (de sofística) a um tal nível que seus textos tornam-se pluridimensionais, e podem ser lidos/vistos/ouvidos/bailados etc., como brincadeiras de crianças, piadas maliciosas para adultos ou isto tudo e muito mais.

A literatura de Oswald de Andrade faz uma magia (totalmente falsa, artificialista, armada, mago artificial, mas muito funcional) estranha: quem a frui e nela flui, e/ou critica, revela mais de si mesmo (até onde ele vai, os limites de seus limites) e de seu mundo (seu grau de abertura de lente, e o que ela foca, tudo que há ali de polestético, por afirmação ou negação) do que da literatura dobrada de Oswald de Andrade . Ela assim se torna polivalente, e pode ser fruída por vários meios e com vários fins, nunca conformados ou reacionários, porém. Biscoitos finos para as massas, o que também quer dizer que elas (pessoas ou meios de comunicação) podem ser, e na arte-pensamento oswaldiana são, massas para biscoitos finos.

Dois filmes de Júlio Bressane são privilegiados programas que nos dão acesso ao complexo mundo de questões e problemas de Oswald de Andrade.
Tabu (1984) realiza o encontro virtual entre o escritor modernista Oswald de Andrade (interpretado pelo comediante popular Colé) e o compositor Lamartine Babo (interpretado pelo cantor e compositor popular Caetano Veloso). Desde o acontecimento da Tropicália, no final da década de 60, passando pelos artigos enviados de Londres ao jornal O Pasquim e pelo disco Araçá Azul (que produziu ao voltar do exílio), até a sofisticação sempre crescente de suas canções (e arranjos), o filme por ele dirigido O Cinema Falado (1986) e o lançamento na década de 90 de sua autobiografia artística Verdade Tropical, acostumamo-nos a ver a figura de Caetano Veloso como um intelectual (escrevia crítica de cinema antes de ficar famoso, fala sobre filosofia, estética e política, é amigo do escritor-filósofo-compositor Jorge Mautner e admirado pelos poetas Campos, entre outros). Estranho problema, compositor popular e intelectual. Há um quiasma no filme, quando Oswald de Andrade é interpretado por um comediante do teatro de revista e dos filmes de chanchada e Lamartine Babo, que fazia canções ao gosto popular, por um compositor-intelectual. E há a virtualidade desses encontros, que, se não aconteceram na Semana de Arte Moderna e com os modernistas da Semana, ocorreram a partir da Bossa Nova, em momentos específicos como na obra do antropofágico Caetano Veloso, nos filmes de Glauber Rocha, na poesia concreta, como “Soneterapia” e “Soneterapia 2”, que é um soneto bric-à-brac, onde cada verso ímpar vem de um poeta brasileiro, e cada verso par vem de um trecho de alguma canção antiga da MPB, que, inclusive, é declamado e cantado, cada verso de canção com sua melodia original, pelo poeta Augusto de Campos em seu cd Poesia é Risco .

Qual a relação entre Oswald de Andrade e Lamartine Babo, para que um encontro que nunca houve entre os dois mereça todo um filme?

Dona Poloca  E eu Seu Abelardo? Sou personagem de quem?

Abelardo I  A senhora é colaboração, Castilho e Lamartine… Babo! (Cantarolando.) Aí! Hein! Pensa que eu não sei?

Por que as películas se intitulam Tabu e O mandarim?

Qual a importância de um cantor de “voz pequena” na época do grande canto do rádio brasileiro, Mario Reis? Para quê colocar cantores atuais, verdadeiros totens da mpb, mas que não são nem pretendem ser atores, para fazer os papéis de grandes compositores do passado (e cantando “amadoristicamente”, como se fossem novatos, ou estivessem encabulados e/ou emocionados)? Onde se encontram tantos artistas, de tão diferentes momentos e lugares do cenário musical?

Como aproximá-los?

Poderíamos dizer que o cinema é a arte dos encontros, a arte das montagens, das superposições, das conexões: a e b e c e e…
/…/ O lado ficção do cinema sempre me foi menos respeitável: eu era facilmente mau caráter nas minhas imaginações por esse campo. Meus argumentos eram bolados para fazer emocionar mentindo e eu sabia disso. Era “social”. Eu tinha muito medo de não ter ninguém comigo, eu queria impressionar facilmente as pessoas tais como eram, mesmo sem me sentir identificado com elas. E isso era totalmente realizado nos sonhos de argumentos cinematográficos. Ao contrário do cinema “real” que eu fazia na solidão. Aqui estava meu gosto e nada mais: assoviando, eu me deixava levar pela luz que aparecia no fim do canudo de papel ou entre os dedos. Cores discretas, folhas tenras, sardas, cabelos voando levemente. Tudo era panorâmica e travelling e música. Estradas. Não havia corte propriamente, senão alguns “escurecimentos” lentos conseguidos com o fechar dos olhos.

O mandarim (1995) conta/canta a biografia de Mario Reis, através de muitos encontros poético-musicais com Carmen Miranda, Sinhô, Villa-Lobos, Noel Rosa, Tom Jobim e Caetano Veloso (ele mesmo). Dois acontecimentos chamam aí a atenção: a presença constante de Oswald de Andrade e sua antropofagia e o modernismo brasileiro, em relação íntima com a música popular, sim a atual também, mas, principalmente, aquela pré-bossa nova, anos 20, 30 e 40; a convivência, os encontros, um tempo poético que permite fazer Tom Jobim parceiro de Noel Rosa, e Caetano Veloso se apresentar ao jovem Mario Reis, gabando-se, ele, Caetano, como um desconhecido iniciante, um rapazinho que o cinqüentão cantor parece mesmo ser na tela, gabando-se de ter composto junto com Sinhô. Dois problemas estético-ontológicos: a presença dos compositores, poetas e cantores da MPB e de Oswald de Andrade parece fantástica, eles estão vivos o tempo todo, se encontrando em corpo, em sexo, nus, brincando, confraternizando; o extravagante relato dos dois filmes, tão cinematótico, oswaldiano, fragmentário, intensivo: as situações são imagens geradoras que têm uma duração na tela, onde ficam se pondo e repondo, até que sejam substituídas por outras situações-emblemas biográficos.

E o bio de biográfico tem que ser entendido de uma maneira muito especial: traduzir bios por música, por canto, melodia e harmonia, às vezes dissonante, encontros mágicos, inquietadores, fazer falar e/ou cantar; e graphos por imagem luz, imagem tempo, imagem música, ou até mesmo, por música: biografia  música de música. O humor é fino e transparente como o tecido que (não) cobre o corpo de Dedé, quando ela dança (semi-)nua em Tabu.

Bressane conjuga o totem libertário de Oswald (contra todos os tabus) e que é o menor e o maior poema de todos os tempos:
amor

humor
Quando Tom Jobim (não representado, mas atualizado por Edu Lobo) declara que vai cantar uma canção que compôs com Noel Rosa, temos aí, além de uma declaração artificialista de amor transversal (Jobim declara seu amor por Noel Rosa na pele de Edu, que assim declara seu amor por Jobim e vices-versas), a brincadeira com a não interpretação dos personagens, a transparência que não nos permite deixar de ver no papel de Noel Rosa seu ardoroso seguidor, Chico Buarque, que compôs “realmente” (melhor dizer atualmente, em relação à realidade virtual, pois as duas são reais) aquela canção com Edu Lobo.

O mesmo se dá, quando Caetano Veloso diz com orgulho que já compôs com Sinhô, revivido por seu amigo e parceiro à enésima potência, Gilberto Gil. Os oxímoros, as situações paradoxais, ou mesmo as simplesmente estranhas, são a devoração das técnicas cinematográficas em nível de argumento, de história  que, é claro, deixa assim de ser história, ou argumento.

É disto que se trata: há uma arte de escrever textos, que costuma produzir narrativas, lírica ou drama. Há uma arte de representar na frente de uma platéia, de fingir que se é um personagem vivendo uma outra vida, ou dançar, nos dois casos usando o próprio corpo, para criar sentido, significado, distração ou o que se queira.

E apareceu o cinema: não há atores nem bailarinos atuando à frente dos espectadores, mas há imagens que parecem o mundo, coisas, paisagens, atores etc. Há uma tela branca que é como uma enorme folha de papel, e sobre ela vai-se escrever algo. Uma história? Um poema? A princípio, por analogia com a literatura, que está sempre a escrever histórias e poemas, pareceria que ao cinema estava destinado adaptá-los. Perdia-se todo o ritual mágico, sagrado e transcendental do teatro, conforme apontado por Artaud, que não podia ser recuperado na sala escura e na tela grande, bidimensional e branca, como uma folha de papel. Imagens fotografadas e projetadas em série sobre ela se assemelham muito a uma escrita, pictográfica talvez, mas sempre escrita. E até mesmo, no início da história do cinema, textos e diálogos escritos em alfabeto latino (no caso do ocidente, e em cirílico, arábico, hebraico, devanagari, hiragana, katagana, kanji, ideogramas, etc, conforme a variação geográfica  pois os filmes eram mudos)  com todo o logocentrismo.

O advento da trilha sonora o que fez foi sofisticar o processo, que hoje ainda corre o risco de outras perigosas analogias, como com a televisão, com o vídeo e com o computador  isto sem se falar nos aparelhos de realidade virtual. Porém, é claro que o cinema não é televisão; há mesmo uma verdadeira guerra de imagens e produções entre o cinema e a televisão (que toma público, realizadores, filmes e dinheiro do cinema, e amesquinha suas imagens, domestica-as, pulveriza-as  Kurosawa, Fellini ou Glauber em vídeo ou programados pelas emissoras de tv são uma triste humilhação, sórdida vingança de uma enorme massa conjuntiva e adiposa do capitalismo, que não tolera o grandioso diferencial, apenas o grande estúpido, redundante  como um estádio, um shopping ou um “telão” de vídeo ou muitas telinhas cobrindo uma parede  podemos lembrar ainda da teoria de McLuhan dos meios frios e quentes segundo a qual haveria uma total diferença de natureza estética entre o vídeo e o cinema, o que não permitiria a verdadeira fruição do cinema na televisão, segundo entendemos).

O cinema não é tv. O cinema não é teatro.

Mas  é preciso fugir de um perigo maior: o cinema não é literatura.

Muitos ótimos cineastas não entenderam isto totalmente. Oswald de Andrade entendeu. E realizou a humilde e orgulhosa tarefa de um escritor que escreveu, não para cinema, e sim realmente cinema, criando um híbrido de duas artes, ou, se se quiser, mostrando um potencial que a própria escritura já trazia e já se sabia trazer, de poder se libertar da página, da bidimensionalidade, da tela pequena, da linearidade da linguagem falada, da escrita alfabética e do logocentrismo ocidental; liberar o singular (sem universal), o plural (sem unidade), o diferencial, o inumano. Algo que nos fala do tempo para além dos nossos conceitos a priori de tempo e de espaço, o tempo puro. A potência criadora do paradoxo para além de uma lógica e uma razão que não são as únicas nem as mais racionais ou mais eficazes, mas que são as mais mesquinhas, as que falam mais alto ao homem funcional, regido pelo senso comum e pelo bom senso, acorrentado às necessidades orgânico-mercantis.

Ontem, hoje, amanhã. Afinal, onde e quando entra esta cena?

Glauber Rocha fez seu filme A Idade da Terra em rolos sem numeração, o que acarretaria que a cada exibição haveria uma nova montagem, ao sabor do acaso ou do humor do projetista. A Embrafilme os numerou por conta própria, cristalizando assim o seu acaso e o seu humor como o único sentido da projeção daquele filme, contrariando a vontade do autor/diretor.

Imagine-se um ser que só vivesse em uma dimensão, linha reta. Tudo para ele teria um único sentido. Já um ser que vivesse em duas dimensões, altura e largura, como a folha de papel ou a tela de cinema de muitos escritores e cineastas, ele só teria um limitado campo de ação, de combinações e movimentos. Em três dimensões, altura, largura e profundidade, já temos uma situação mais próxima de nossa experiência humana, mais confortadora para nós. Poderíamos fazer uma relação contingente e arbitrária, apenas como um recurso ilustrativo, na qual a primeira dimensão se relaciona ao instinto, a segunda ao sentimento e a terceira à razão. É aí que param muitas obras de arte, aquelas mais caras à mentalidade comum. Poderíamos pensar (como fazem os matemáticos) em outras dimensões, para além da quarta, incluindo intuição etc.

É assim que deve ser entendida a arte antropofágica de Oswald de Andrade e de Júlio Bressane.

Quando o pintor Di Cavalcanti faleceu, Glauber Rocha fez um curta-metragem sobre seu enterro, Di (1977). O filme jogava imagens do velório, do enterro, dos amigos, numa velocidade de vertigem, misturadas a takes relâmpagos dos festivos e modernistas quadros do pintor, tudo ao som de marchinhas de carnaval, principalmente “O teu cabelo não nega” de Lamartine Babo e Irmãos Valença, canto de amor humorístico e ambíguo à mulata que sempre serviu ao pintor de musa.

O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata quero o teu amor

O filme foi proibido, por se considerar que ele desrespeitaria a memória do pintor. A dimensão da homenagem não havia sido compreendida, pois ultrapassava de muito a gaiola bi-dimensional instinto-emoção-recognição.

Porém é com tal intensidade, e com transcendentes movimentos de ultrapassamento de limites, que Oswald fez seu encontro impossível/possível literatura/cinema. Assim como foi rompendo a barreira da velocidade do som que os tropicalistas (lato sensu) de Lamartine Babo a Caetano Veloso e Jorge Mautner criaram todo um cinema transcendental de músicas e letras. Foi ainda desrespeitando o limite einsteiniano da velocidade da luz que o cinema einsensteiniano de Mário Peixoto criou o seu Limite, borda de decolagem para Glauber Rocha e Júlio Bressane.

Os outros antropófagos não são necessariamente criadores influenciados por Oswald de Andrade. O pensamento antropofágico é uma latência de nossa cultura, uma força subterrânea, underground e, no entanto, explodindo em gêiseres aqui e ali, comum a toda a população (mesmo enquanto desejo) nesta festa única, o carnaval brasileiro.

Mesmo Gregório de Matos, poeta barroco brasileiro seiscentista vivido por Caetano Veloso no filme Os sermões – a história de Antonio Vieira (1989) de Julio Bressane, é um marco importante da antropofagia cinematótica.

A antropofagia é marginal em nossa cultura, mesmo sendo a alma e o corpo desta. Raramente consegue se manifestar, devido a tantas perseguições e barragens que sofre. Por outro lado não se deve pensar que tudo o que é contestador e tem qualidade seja antropofágico; no entanto, a recíproca é verdadeira.

Eventualmente há influência de OA, consciente ou acidental. Porém o que interessa não é isso: importa-nos muito mais onde explodem os gêiseres da antropofagia, onde o riverrun subterrâneo encontra terreno fraco/forte o bastante, para lhe permitir a eclosão.
Riverão Sussurana e os Roteiros do Terceyro Mundo, livros e antes de tudo filmes, e depois de tudo filmes de filmes, filmes de papel tirados dos filmes de luz, Riverão um romance roseano que também é cinema e também é antropofágico, ligando-se manifestamente ao Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, numa encruzilhada pós-Macunaíma. O autor dos livros e filmes é Glauber Rocha antropófago que comeu Joyce (e a vanguarda) no seu Riverão brasileiro tomado da palavra-rio riverrun (que faz o ciclo do fim e recomeço eternos da recirculação de Finnegans Wake), comeu Rosa, e escreveu seu romance em prosa roseana, comeu o cinema de ação (especialmente o faroeste) e o neo-realismo e reinventou o cinema, sem o dinheiro nem o suporte técnico-industrial do assim chamado “primeiro” mundo.

Rocha é oswaldiano, por isto se coloca (e responde) ao dilema de base de Oswald de Andrade (que só aparentemente é apenas um trocadilho);
Tupi, or not tupi that is the question.

Glauber entendeu e atendeu. Radicalizando ainda mais a força radical da antropofagia, com sua estética da fome, “fome de forma” , fome de deglutir o cinema norte-americano e europeu e intentar um cinema seu, que ninguém pode nem deve imitar nem seguir porque os antropófagos são sempre tribos nômades e singulares, não há entre eles seguidores.

 Estou  prossegue Oswald  profundamente abatido, desiludido, porque meu chamado não teve resposta. O movimento de 1922 que iniciamos tão bem com Mário de Andrade sofreu um retrocesso com a literatura linear e primária do Nordeste. Evidentemente, o Brasil letrado (pouco letrado) estava muito mais preparado para receber o romance de cordel dos srs. José Lins do Rego e Graciliano Ramos do que as altas cogitações estéticas da Semana de Arte Moderna de 22.

Observemos que:

1 – OA é sempre polêmico (até na velhice, cheio de combatividade), e ataca seus alvos topologicamente, visando às forças que quer criticar muito mais do que às pessoas ou obras in totum.

2 – OA acertou no alvo, ao criticar a linearidade das produções “naturalistas” desses autores, que, como a grande maioria, não perceberam as novas questões estéticas (em todos os sentidos) da humanidade, coisa que Glauber e mesmo Mário de Andrade (“Prefácio Interessantíssimo”) perceberam (e que a crítica de inspiração sociológica vigente no Brasil do século XX faz força para escamotear).

3 – OA cita dois nomes e uma corrente da literatura para falar de algo a que eles pertenciam mas que ia muito mais além, e que incluía a poesia bem-comportada e espiritualizada da época, e a crítica pretensiosa e equivocada daqueles que Oswald mesmo apelidaria de “chato-boys” (jovens ligados à USP, seguidores de Mário de Andrade, reuniram-se na revista Clima a partir de maio de 1941 ); tudo isso, a superação da corrente regionalista e da pretensa tensão entre forma e fundo, e principalmente a questão da invenção permanente da linguagem e do pensamento estão presentes no reversor Guimarães Rosa.

4 – A compreensão e a ação que se propunha no Brasil, com a arte posterior ao modernismo (décadas de 30 a 50, ainda não era o pós-modernismo e disto estavam fora a bossa-nova e a poesia concreta), e a política da época, eram um retrocesso “anta” em relação à contemporaneidade de suas propostas.

5 – Ironicamente, o nordeste, em especial a Bahia, ofereceram ao país a poesia cinematótica de Gregório de Matos, o cinema mais sintonizado com a proposta oswaldiana, que é o de Glauber Rocha, e a música popular tropicalista, que dá continuidade em todos os sentidos ao texto de OA, principalmente no compositor e poeta Caetano Veloso;

6 – e ainda com ironia, no caso do diretor e do cantor, Oswald não os chegou a conhecer.

Glauber disse: presente.

Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

Esta questão mereceria um estudo mais profundo, e aqui vai apenas a indicação. Devemos dizer ainda que os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Der Leone has Sept Cabeças e Cabeças Cortadas são filmes de crítica ao messianismo, entendido de uma forma muito parecida com o de OA; já seu romance Riverão Sussuarana, e os filmes Barravento e A Idade da Terra, se bem que ainda tragam a crítica, são especialmente antropofágicos. Talvez a continuidade da obra de Glauber fosse cada vez menos crítica e mais afirmativa, se bem que estas duas instâncias nunca vêm totalmente separadas, inclusive em sua obra.

Ainda sobre Rocha, alguns comentários colhidos no especial Glauberianas da tv canal Brasil:

Glauber era o maior inimido do lugar comum. Estava sempre dizendo, se desdizendo e se redizendo, experimentando as verdades.
(Cacá Diegues)
Glauber atingiu como eu o nível mais alto da humanidade, o palhaço, que sabe rir de si mesmo e nunca perde o rebolado.
(José Celso Martinez Corrêa)
Glauber vive o tempo todo na clave épica.
(Luis Eduardo Soares, antropólogo)

Caetano Veloso disse: “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas” ; Oswald de Andrade critica a “macumba para turistas” que outros modernistas quiseram fazer. A geração regionalista de 30 pareceu a Oswald um retrocesso tacanho e tamanho, diante mesmo da idéia de identidade nacional que ele propunha e via se desenvolver na prática.

Vejamos um caso exemplar: segundo Teresa Cristina Montero Ferreira, Clarice Lispector reflete o panorama cultural europeu por ter nascido na Ucrânia e vindo ao Brasil com um ano e poucos meses de idade . Apoiando-se em teóricos como Nelson Vieira, Júlio Diniz e Alexandrino Severino, Teresa pensa que Clarice tinha identidade cultural russa, que se refletia em seus romances existencialistas, com influência de Proust e Joyce, pois se fosse escrever dentro de uma perspectiva brasileira, ela, Clarice Lispector, que se criara em Pernambuco, realizaria algum tipo de literatura regionalista, coisa de que seus textos não poderiam estar mais distantes. Esquecem eles que: um ucraniano judeu jamais se aceitaria como russo, e a tradição filosófica e literária do século XX (Sartre, Proust) é tão acessível a um brasileiro letrado quanto a um europeu; que a literatura brasileira não se resume e nunca se resumiu a folclorismos e regionalismos; e que havia à época mesmo em que a romancista floresceu muitos outros escritores e poetas que traziam questões existenciais e filosóficas em suas obras, deixando totalmente de lado as problemáticas político-regionalistas (tão bem tratadas em Raquel de Queiroz, Gracialiano Ramos, José Américo de Alemikda e José Lins do Rego, por exemplo; Érico Veríssimo não pode ser considerado regionalista e já traz questões mais universais em seus livros; Jorge Amado tem uma vertente de fantástico e de alegoria que o alça além do gênero): Carlos Drummond de Andrade, Jorge Lima, Murilo Mendes, Cornélio Penna, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles e Lúcio Cardoso, para citar alguns que lhe estão próximos no tempo; devemos ainda notar que, cronologicamente, Clarice Lispector não pertence à geração de 30, e está inserida na de 45 (prosa impressionista e poesia espiritualista).

A exigência de que o “subdesenvolvimento” não possa produzir “vanguarda” (“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, Maiakovski), a camisa-de-força de um realismo regionalista (o país entendido como região, sem status nacional) só pode vir de pessoas totalmente ébrias pela oligofrenia neocolonialista, no caso de eles pertencerem ao auto-nomeado “primeiro mundo”, ou de uma submissão vergonhosa e tacanha. A mesma luta por uma alforria estética da consciência do país se deu na música, na rotulação clássica e popular, rótulos que, pela própria experiência de açambarcamento de técnicas e recursos (guitarra elética, sintetizador, bateria, instrumentos de percussão, sopro, jazz, atonalidade, orquestra sinfônica, música incidental, instrumentos inventados etc.), se desfazem e confundem cada vez mais.

Poderíamos também considerar antropofágico o enigma gaúcho, precursor brasileiro do teatro do absurdo: Qorpo-Santo (1829-1883). Sobre ele escreveu Décio Pignatari:

O teatro de Qorpo-Santo é anti-teatro, ou melhor, meta-teatro. Se lembra Ionesco, lembrará também AntoninArtaud. Algumas marcações suas são do tipo Erik Satie. Por exemplo: (Entra um criado, passados alguns minutos: terminadas as gargalhadas que sem dúvida devem desenvolver-se por algum tempo). E este: (…e passa a derramar lágrimas, com os braços nos ombros dela, por espaço de 5 minutos).

Sua linguagem é “pop”: labora num vocabulário restrito, popular, e tendo como referente-repertório o teatro de costumes de seu tempo. E suas comédias são abertas e leves, são um convite à encenação inteligente.

/…/
Depois de Sousândrade, no Maranhão; depois de Kilkerry, na Bahia  Qorpo-Santo, no Rio Grande do Sul.
Qorpo-Santo foi perseguido, considerado louco e internado em um manicômio. Sua obra foi totalmente apagada da memória artística e cultural do país, até o seu descobrimento por Guilhermino Cesar, que, em 1969, edita a antologia As Relações Naturais e Outras Comédias, e em 1980 publica Teatro Completo, pelo Serviço Nacional de Teatro.

Hélcio Pereira da Silva escreveu o interessante ensaio Qorpo-Santo Universo do Absurdo, que teve péssima edição (sob o ponto de vista ecdótico) feita pelo Colégio Pedro II, toda cheia de gralhas, frases fora do lugar e nenhuma crase. Mesmo assim é um livro que vale a pena, e merece ser (melhor) reeditado (como tanta coisa em nosso país). Ao contrário de Guilhermino César, H. Pereira da Silva não aceita a acusação de loucura feita ao teatrólogo gaúcho, devida ao rancor da sociedade interiorana que não compreendia suas inovações, à perseguição de um juiz (que preferiu o diagnóstico de “monomania” de um médico de província aos laudos dos maiores psiquiatras à época da capital e da corte, entre eles o laureado Torres Homem) e aos interesses de familiares em alienarem o autor de seus bens (por ele conquistados com tino comercial e sua profissão de professor!).

H. Pereira da Silva encontra ainda em livro de Ernani Fornari (O Incrível Padre Landell de Moura) um padre-cientista, companheiro de Qorpo-Santo na incompreensão dos gaúchos do século dezenove, o inventor Landell de Moura, que foi chamado de louco, demonólogo, feiticeiro, bruxo, herege etc., e teve sua casa invadida e seus equipamentos e invenções destruídos por religiosos, pois inventou, antes de Marconi, o telégrafo sem fio, o telefone sem fio, o transmissor de ondas e a televisão (o livro de Fornari reproduz cadernos de Landell de Moura).

A liga destes dois injustiçados da invenção fala da imagem em movimento no pensamento e na física ótica, na transmissão de imagens pelo espaço, que seria um dia a televisão, inimiga e por vezes aliada do cinema, e que percorreu como circuito integrado as suas mentalidades (numa alternância ôntica entre o mental e o metal), assim como a idéia do vôo estava presente desde as caravelas (e do “Holandês Voador”, afiliado a Maurício de Nassau que fez um boi de verdade voar para provar que o Brasil era possível) até o 14 Bis.

Toda uma documentação fidedigna ilustra o texto que nos dá conta de um mago da futura Cibernética. Mas inventor brasileiro, ao que parece, desde o “Aeróstato” de Bartolomeu Gusmão, em 1709, passando por Santos Dumont, ainda não foi levado a sério como os irmãos Wright, Thomas Edson ou Gram Bell…/sic/

Outras “relações naturais” são estabelecidas, com autores do teatro do absurdo europeu como Alfred Jarry, Eugene Ionesco, Boris Vian, Robert Pinget, Manuel de Petrolo, Harold Pinter, Jean Tardieu, Amos Kenan, L. Arthur Kopit, Frederick Norman Simpson, Günter Grass, Wolfgang Hildesheiner, Arthur Adamov, Edward Albee, Fernando Arrabal e o com o “marginal” Jean Genet.

A antropofagia de Qorpo-Santo está em sua negação do estado quando ele mais parece reivindicá-lo e defendê-lo, bem como na cinematótica da língua que inventa para compor suas peças, muito além de mera reforma ortográfica ou concisão vocabular anti-romântica, temos na imagem da mulher que não bota dois vestidos e na cabeça que não veste dois chapéus a explicitação de um pensamento, a cosmovisão de um gênio que fabricou sua própria lógica semelhante à dos estóicos e de Lewis Carroll (como mostra Gilles Deleuze em Lógica do Sentido), tendo aí sido afiada (por ele que tantas cenas resolve com armas brancas e atores se embolando em lutas generalizadas) a “navalha de Qorpo-Santo”, verdadeiro “blade runner” antropófago (ele que tanto se preocupava com os aspectos mágicos e medicinais da comida e das “relações naturais” entre estas e os encontros e acontecimentos). Urge a publicação completa e integral dos volumes encontrados de Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade, sua única obra conhecida até agora (das quais as peças foram destacadas). Em “Hoje sou um; e amanhã outro” o corpo é como um reino, defendido pela essência ou rei, enquanto que seu povo são as várias consciências que o habitam e que passam por ele, mudando de casa a cada dia e a cada instante. A idéia anti-subjetiva de um eu plural montado de vários eus, um eu coletivo e mutante. O nome escolhido diz respeito a uma experiência mística que o teria levado além da terra e da matéria não só em espírito mas em corpo também, sentindo-se ele um corpo de luz, totalmente espiritualizado, numa negação bergsoniana da dualidade hilemórfica e numa antecipação da visão quântica de um universo todo constituído de campos de força em diferentes velocidades (o anti-cemitério, ou campo santo, desenhado no volume de Ensiqlopédia como comemoração de sua ascensão em corpo vivo, que não pode mais morrer, e vai se tornar então um Qorpo Santo).

A montagem de O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Correa, em 1967, foi um acontecimento único para a dimensionalização da importância fulcral que a obra e o pensamento de Oswald de Andrade tiveram/teriam/tinham/têm/terão no quadro poeteorético de nossa Terra. Aludimos já aos duplos de OA, mas deixamos de propósito para citar José Celso Martinez Correa neste capítulo, que trata dos “outros antropófagos”. José Celso é um duplo de Oswald de Andrade, com muita honra, o que não elide o fato de que ele tem uma forte e importante personalidade e presença artística. José Celso é uma espécie de medium privilegiado de OA, e, até hoje, o indiscutível melhor leitor e encenador de seu teatro.

Tudo isto lhe dá autoridade para escrever um manifesto de Oswald (ou um longo poema-manifesto onde considera a peça A Morta como o manifesto de Oswald para os anos 90, assim como O Rei da Vela o fora nos anos 60) por ocasião da comemoração de seu (de Oswald) centenário (que vira “sem ter nada” para Celso) de nascimento em 1990, quando então (e antes e depois) fez-se tanto esforço para transformar (baixa metamorfose, baixa antropofagia ou canibalismo) a Antropofagia em alguma espécie de “anta” ou de inócuo “verdeamarelismo” macunaímico. Seu poema é uma importante sugestão-fragmento de leitura da peça Pela mesma ocasião o encenador ainda nos deu um depoimento “Em torno de ‘Três tempos de Oswald’”, onde diz:

Entretanto, vejo na hora atual a comemoração do centenário de nascimento de Oswald de Andrade com mais cem anos de tentativa de assassiná-lo. Pelo menos, tudo que tive oportunidade de ver em São Paulo leva-me a essa conclusão. Centenário sem ter nada de Oswald.

Certa vez, assisti a um espetáculo sobre a vida dele, em que nem tive vontade de dar um berro: simplesmente saí. Pensei assim: se eu ficar aqui estou comprometido com tudo isso aí, então eu vou embora. Constatei e aqui repito que existe uma oficialização, uma castração do que o autor tem de mais forte e de uma não-imersão no que há de mais importante na sua obra. Oswald “diet”, “light”.

Da força que corresponde a Zé Celso e Glauber, tão importante quanto eles e a bossa-nova para o futuro da cultura brasileira, desde o tropicalismo, mesmo que Caetano declare no seu Verdade tropical não saber onde colocar ou que valor dar a sua obra, mas considerando o impacto mitológico do homem do que do livro, que é todo uma massa de delírio de significações da tensão América do Sul e do Norte, re-ecoando e re-coando Joaquim de Sousa Andrade, também pela cara veleidade de construir a epopéia mitológica do novo mundo, é PanAmérica de José Agrippino de Paula.

Quando do seu lançamento Mário Schenberg escreveu:

Em PanAmérica, o seu segundo livro, José Agrippino de Paula se afirma como uma das personalidades mais poderosas e significativas da nova geração de escritores brasileiros. Venceu a timidez e o provincianismo, que até agora tanto têm restringido os horizontes da nossa criação literária e artística, via de regra tão bem-comportada e afastada desse mundo vertiginoso e fantástico até hoje. /…/

Não precisamos insistir na relação entre PanAmérica e o cinema, perfazendo mais um agenciamento cinematótico da antropofagia brasileira, como o eminente físico einsteiniano intuiu. Hoje, 2003, convém repensar as propostas de panamericanismo, que desde a independência da América Espanhola é pensada e agida por figuras como Simón Bolívar e San Martín.

A década de 60, com continuidade pela de 70, mostra um crescimento da conscientização sobre o problema, acionada pela Revolução Cubana, e sua vitória na expulsão dos americanos da Baía dos Porcos e sua continuidade (com mais sucesso civilizatório que todas as outras nações latino americanas) apesar do bloqueio econômico que lhe foi imposto pelos Estados Unidos, e obedecido pelo resto da América.

Logo depois que José Agrippino de Paulo publicou a sua inquietante epopéia, em 1968, Gilberto Gil e Capinam compõem, “Soy loco por ti América”, que comenta através de metáforas e alusões a morte de Che Guevara, pois a ditadura militar e sua censura não permitiriam a referência direta ao fato. O recurso mais bonito que conseguiram criar foi o uso do “portunhol”, a mistura das duas línguas, que acontece em tantas regiões fronteiriças. Em 1978, Chico Buarque e Milton Nascimento gravaram no álbum de Milton e convidados Clube da Esquina 2, a “Canción por la unidad de Latino América”, composição de Chico Buarque e do cubano Pablo Milanez, cuja letra também mistura com grande expressividade espanhol com português.

A visão revolucionária da canção que Chico Buarque e Pablo Milanez escreveram parece ingênua, perto da fervente e explosiva alegoria da epopéia de José Agrippino de Paula. Não posso nos furtar de citar aqui o artigo de Evelina Hoisel, pois ele responde às inquietações de muitos leitores sobre o valor dessa obra (a começar pelo leitor que vos fala, desde Veloso):

/…/ Meu primeiro contato com o texto de PanAmérica — e também com José Agrippino — há 25 anos, foi extremamente surpreendente e provocativo. Sua narrativa estilhaçava de maneira aberrante, hiperbólica e precursora os parâmetros que se tinha para definir e ler um texto literário ou, mais amplamente, para avaliar uma produção artística. A diferença já era visível desde a formatação do próprio objeto livro, pois a primeira edição de PanAmérica (Tridente/RJ, 1967) era impressa em papel pardo, tipo havana, com a utilização de um tipo de letra redonda e serifada, em negrito, o que acentuava o caráter lúdico e visual da narrativa e apelava para outras formas de relação com o leitor, a partir de um pacto de ‘‘curtição’’, terminologia muito difundida pela geração 60, que deslocava a postura séria e bem comportada da tradição literária estabelecida. PanAmérica inaugurou com entusiasmo uma vertente na literatura que assinala a ascensão da cultura e o questionamento do artístico e do literário.

Explicitando melhor: na literatura (brasileira), PanAmérica, de maneira precursora, anuncia o processo de democratização do literário e da arte, apropriando-se de um material até então considerado pouco adequado para a construção artística: os temas e ícones dos mass media, os objetos da sociedade de consumo e da indústria cultural. Estes aspectos não são apenas citados, mas incorporados à narrativa, constituindo sua própria substância, rompendo as dicotomias até então instituídas entre alta/baixa literatura, literatura erudita/literatura popular, literatura/paraliteratura, estético/não estético.

Temos, então, um texto que não se constrói seguindo os padrões tradicionais da representação, mas se configura como um simulacro: cópia de cópia. Não é a realidade imediata que lhe fornece o seu conteúdo (as relações e os sentimentos humanos, os conflitos íntimos dos personagens, que não comparecem ao texto), mas uma realidade secundária — a imagem de um ídolo de massa, um clichê que aparece repetidas vezes nos meios de comunicação, o vasto repertório de ícones e marcas da publicidade, a tecnologia da produção cinematográfica, das histórias em quadrinhos ou da publicidade./…/
Podemos dizer que a integração americana não é uma resposta às nossas angústias continentais, nem uma solução para os estertores do capitalismo tardio, que parece gerar o mais inóspito caos, que José já captava nos anos sessenta.

Podemos fazer da América o solo de uma revolução permanente, e da continuidade desse solo, a nossa sinfonia, ou melhor, a nossa polifonia racial, para trazer para o genético o conceito literário de Mikhail Bakhtin.

O desejo que eu tenho é que José Agrippino de Paula faça/fizesse uma continuação infinita, o prazer sem fim que seria ler o volume dois, três, quatro, cinco e assim sempre em frente, pois corro o risco de mentir se disse/se/não disser que PanAmérica é o melhor livro que já se escreveu e se leu nessa nossa pequena e suburbana, militarizada e tacanha, literatura brasileira.

Outro grande panamericano foi Sousândrade, cuja poesia é precursora dos recursos cinematóticos (re)criados por OA, com o correlato inseparável de praticar antropofagia, que, no caso do poeta maranhense se expressa em seus recursos estilísticos, em seu modo de fazer, e, principalmente, nas questões sociais, políticas e econômicas desenvolvidas na melhor realizada epopéia brasileira: O Guesa, poema que propõe a integração americana e analisa, utilizando recursos que só voltariam a aparecer na literatura brasileira com a poesia de Oswald de Andrade (e posteriormente dos concretistas), no episódio denominado, pelos Campos, “O Inferno de Wall Street” (especialmente, mas não só ali), que irrompe em meio aos heróicos (com subtônica na sexta) decassílabos épicos, modificando a prosódia e incorporando aos versos o ritmo da megalópole, do trânsito, do mercado, da bolsa de valores, da indústria e do jornal – atirando bruscamente a epopéia na contemporaneidade.

Bebe à taberna às sombras da muralha,
Malsólida talvez, de Jericó,
Defesa contra o Índio – E s’escangalha
De Wall-Street ao ruir toda New York:
* * *
(O Guesa, tendo atravessado as Antilhas, crê-se livre dos
Xeques e penetra em New-York-Stock-Exchage; a Voz dos desertos:)
– Orfeu, Dante, Æneas, ao inferno
Desceram; o Inca há de subir…
= Ogni sp’ranza lasciate
Che entrate…
– Swedenborg, há mundo porvir?

Sousândrade não produz um “herói sem nenhum caráter”, pois o Guesa foge de um destino injusto, para fazer por seu périplo o seu próprio caminho, a sua epopéia pessoal que é a coletividade de um mundo alternativo. Foge para o leste e depois para o norte, porém o poema é a narrativa do deslocamento da civilização para o oeste, da Europa rumo à América, onde vai fundir a sua maior jóia, a sua gema transmutada, o Pomo das Hespérides. Não podemos esquecer que na bandeira do Estado do Maranhão, desenhada por Sousândrade, as três cores: branco, negro e vermelho, se representam as três raças formadoras do homem brasileiro, também são as três colorações sucessivas da obra alquímica.

O Guesa de Sousândrade, Miramar de Serafim de Oswald de Andrade e Macunaíma de Mário de Andrade formam uma “trilogia” antropofágica trans-pessoal e trans-temporal. O fato de OA ter indicado Macunaíma e Cobra Norato de Raul BOPP em sua “bibliotequinha antropofágica” não significa que ele recusasse as suas próprias obras como representantes do pensamento ontológico selvagem, e sim que isto era óbvio, tudo que ele fazia era antropofagia, e também alguma coisa de outros criadores, essa era e é uma linha de força do pensamento e da sociedade brasileira que transcende a obra de um exclusivo (mesmo que tido pelo seu) criador.

Em um país “naturalmente” tão rico e artificialmente tão pobre como o nosso, a música popular ganhou uma dimensão única de penetração social e importância.

É claro que sua influência deve-se aos meios de comunicação de massas (no caso, o rádio e a tv) que veiculam MPB e outros tipos de diversão. Porém é a música que dá acesso ao povo à poesia e até a algum tipo de reflexão com certo sabor filosófico. Um exemplo da importância da MPB para nossa cultura (importância normalmente ignorada, ou pretensamente ignorada, por muitos pensadores): um disco pode veicular poemas para milhões de ouvintes, um fragmento do poema Galáxias de Haroldo de Campos ou o poema “Pulsar” de Augusto de Campos cantados por Caetano Veloso (nos lps originais Circuladô e Velô, respectivamente) atinge um número n vezes maior de fruidores do que os livros destes poetas. O acesso à literatura e à filosofia de muitos jovens no Brasil é feito pelas canções de Caetano, Mautner (que cita filósofos e poetas europeus entre os versos de suas canções), Raul Seixas etc.
Todo cordelista canta (ou dá para um cantador cantar) os seus poemas. Vários poetas se tornam (ou querem se tornar) letristas.

Foi no dia 7 de setembro de 1922, no mesmo ano de Semana de Arte Moderna, que, como parte das comemorações pelo centenário da independência do Brasil, se realizou a primeira transmissão oficial de rádio do país. A partir de então, o rádio passou a fazer parte de nosso meio cultural.
O Tropicalismo (com todos seus participantes, inclusive com a inspiração plástica da instalação de Hélio Oiticica) é um momento fundador de retomada e irradiação da estética antropofágica para a massa consumidora de rádio e tv. Seriam inúmeras as aproximações possíveis entre as duas obras. Na canção que foi o hino do tropicalismo, intitulada justamente “Tropicália”, de inspiração visual como visuais são sempre os fragmentos verbais de Oswald, e que traz as mesmas antíteses insolúveis de atraso e progresso, de modernidade e arcaísmo. Há, como nota Augusto de Campos , um claro sabor de poesia pau-brasil na fala do baterista Disceu, casual, que antecede a canção:

“Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes, escreveu uma carta ao rei: tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce, e”, numa referência ao técnico de som Rogério Caos que comandava a mesa de gravação, “o Gaos da época gravou!”
que, como em “História do Brasil”, toma um trecho da carta de Caminha, recortado do texto original e apresentado como um novo texto em si, mudando de sentido, ganhando conotações humorísticas, ou até mesmo revelando o sentido que a historiografia oficial soterrou com as interpretações tradicionais. A frase “e o Gaos da época gravou” surge inesperadamente, jogando o ouvinte na contemporaneidade da canção que ele vai ouvir e que trata de “caminhões”, “aviões”, e de um “monumento de papel crepom e prata” inaugurado no “planalto central do país” (e o fato de os versos serem uma fala espontânea e quase que inconsciente do baterista, que nem sabia do que tratava a canção, e de ter sido utilizada como abertura ao acaso, são outros traços oswaldianos, de obra em processo e trans-pessoal, presentes no trabalho de Caetano).

O Tropicalismo foi rico em imagens cinematóticas, além de Caetano e Tom Zé, e chegando até artistas que não se ligaram ao movimento, ou o negaram, como Raul Seixas, e que no entanto recebe sua influência (principalmente em Grão Ordem Cavernista Apresenta Sessão das Dez).
Onde o Olhar não Mira, do grupo Bendegó , é de 1976 (traz na capa a marca que o meteorito tem, com sua imagem em relevo, seu nome e a data de sua queda, 1888, tão significativa por ser a da abolição da escravatura dos africanos negros no Brasil). Esta banda já tinha acompanhado Caetano Veloso em seu show do ano de 1975, e também tocara na faixa “Canto do Povo de um lugar” do lp Jóia de Caetano, do mesmo ano, o mesmo lp no qual o compositor baiano inclui letras concretas (“Guá”, “Pelos Olhos”, “Asa”, “Gravidade”), grava “Help” dos Beatles e “Na Asa do Vento” de Luiz Vieira e João do Vale, compõe “Lua, Lua, Lua”, inspirada no canto e na dança de uma tribo africana, e faz parceria com a Banda de Pífaros de Caruaru (“Pipoca Moderna”) e com Oswald de Andrade (“Escapulário”), além de posar para foto de capa com a esposa e o filho, todos nus (que a censura fez modificar para o desenho de três pássaros voejando juntos, feito pelo próprio Caetano) e de escrever ele esta letra “pau-brasil” da canção “Jóia”:

Beira de mar beira de mar
Beira de maré na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Num momento de grande amor
De grande amor
Copacabana Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca coca-cola na boca
Num momento de puro amor
De puro amor

Bendegó (Vermelho, teclados; Zeca, violões, cavaquinho e percussão; Capenga, baixo, violão, bandolim e percussão; Hely, bateria, percussão; Gereba, violões e voz) foi um dos importantes grupos da MPAB, juntamente com os Novos Baianos e o grupo virtual Os Doces Bárbaros (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa). Pena que o projeto não tenha tido continuidade e seus integrantes tenham partido para carreiras solo ou para integrar outras bandas (como o tecladista Vermelho que fez parte do conjunto 14 Bis com Flávio Venturini). Bendegó concorreu para a fundição do MPAB posterior, mesmo não tendo obtido grande divulgação, sua mistura de música nordestina e rock progressivo teve grande influência e responsabilidade pela elevação do nível mental de nossa música. Vejamos a letra que mostra a fusão antropofágica do elemento da tradição (e até do atraso) com os elementos mais sofisticados (em dimensão crítica e também construtiva) é “Dom Tapanatara”:

Fui brincar com a minha sombra
Surgiu uma outra maior e bem branca
Entre as duas eu me agachei
E com o velho índio eu conversei
Ele me disse que veio da lua
Ô velho índio qualé a tua?

Nos seus olhos de tocha de poça
Nada uma moça que namora o sol

Subimos juntos o Dedo de Deus
Ele catou um cogum e comeu
E apontando para o litoral
Disse: isso tudo tá cheirando mal
Tentei contar histórias do meu céu
Ele me disse: tire esse véu

Lá na taba sem tapa sem tara
Se vê Deus na cara e a lágrima é mel

No início dos anos 80, surge uma nova geração da MPAB, sintetizando de forma mais antropofágica o rock, algo além da simples transposição da forma estrangeira, uma nova fusão internacionalista, com características únicas no mundo (como música brasileira), elementos de bossa nova, tropicalismo, samba & outros ritmos afro-brasileiros, que se superpõem facilmente aos ritmos afro-americanos da música pop: desde Jorge Ben Jor e da Jovem Guarda, passando pelos grupos progressivos dos anos 70, até o novo rock brasileiro dos 80, o reggae, o rap e o funk.

Júlio Barroso e seu grupo Gang 90 e Absurdetes foram um dos precursores da maioridade do rock brasileiro, trazendo uma nova elegância, com artefatos plásticos tropicais em estilo pop art. Júlio Barroso fala em “Cinema Olho”, na sua poeteoria, que já mostra a intuição da antropofagia cinematótica .

Perdidos na selva, mas que tremenda aventura
Você até jura, nunca senti tamanha emoção
Meu uniforme brim cáqui, não resistiu ao ataque
De suas unhas vermelhas, meu bem você
Rasgou meu coração

Eu e minha gata
Rolando na relva
Rolava de tudo
Num covil de piratas pirados
Perdidos na selva

Orango tango de tanga no tango
Tigresa em pele botando a mesa
Papagaios, bem-te-vis e araras
Revoando flores, folhas e varas
Ah, que calor tropical
Mas que folhagem maneira
É sururu carnaval
Deu febre na flores inteira
Quando o avião deu a pane
Eu já previa tudinho
Me Tarzan you Jane
Incendiando mundos neste matinho

Outro compositor e cantor que produz sempre o cinema olho presente na sua música e na sua letra é Walter Franco.
Eis uma canção de Franco que vai se construindo enquanto se canta, como a “Cabeça” do mesmo autor, e “Júlia/Moreno”, de Caetano Veloso . Ao transcrever a canção como o faço, não proponho caligrama, o peixe/olho/flecha que se vislumbra é casual e necessário :

Iara eu
Iara eu te amo
Iara eu te amo muito
Iara eu te amo muito mais
Iara eu te amo muito mais agora
Iara eu te amo muito mais agora é tarde
Iara eu te amo muito mais agora é tarde eu vou
Iara eu te amo muito mais agora é tarde eu vou dormir
Iara eu te amo muito mais agora é tarde eu vou
Iara eu te amo mudo mais agora é tarde
Iara eu te amo muito mais agora
Iara eu te amo muito mais
Iara eu te amo muito
Iara eu te amo
Iara eu

A virada do Terceiro Milênio mostrou a chegada de muitos novos membros da alegre tribo da MPAB, os quais merecem capítulos especiais em algum outro lugar, e aqui especial menção: Cássia Eller, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Ana Carolina, Paulinho Moska, Jorge Vecilo, Chico César, Chico Science, Ed Motta, Max de Castro e Wilson Simoninha (filhos de Wilson Simonal) e o gênio poeta compositor cantor performer encarnação pós-moderna de Baudelaire e Augusto dos Anjos, Rogério Skylab, cujo nome denota a política transnacional em sua afirmação tecnológica (e catastrófica) e o laboratório celeste que é o seu pensamento, pois, como ele mesmo afirma, o que ele faz é a idéia, a letra, a música e todas as outras estruturas vêm depois. Ainda ficou faltando falar de fundamentais pensadores brasileiros que utilizaram a MPAB como forma de expressão, Gilberto Gil, Jards Macalé, Zé Ramalho, Luiz Melodia, Paulinho da Viola, Carlota, Alceu Valença, Belchior, Ednardo, Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, Passoca, Emílio Sampaio, Hermeto Paschoal, Beto Guedes e tantos outros macumbeiros ilustres.

No confronto entre dois povos de culturas diferentes e desniveladas, o mais fraco é assimilado ou destruído. Foi o que supostamente aconteceu na América, quando os europeus aqui chegaram, e encontraram milhões de índios, centenas de culturas diferenciadas, que foram varridas da face do planeta, tendo os estudiosos de correr, para tentar preservar alguns dos elementos simbólicos de algumas dessas culturas. Haveria uma europeização da América, e o elemento índio teria sido totalmente neutralizado, absorvido, dele só restando uma parte colorida de nossa herança genética, e uns poucos topônimos, além de um ou outro étimo. Algo parecido teria ocorrido com a cultura negra, reduzida a inócuas influências folclóricas e gastronômicas. Mas é bem outra a verdade que a experiência prática do Brasil nos mostra. Se dos europeus herdamos a cultura, o pensamento, dos ameríndios nós herdamos a cultura e o pensamento, e dos negros também foi o pensamento e a cultura que nós herdamos. Subversiva, proibida, vilipendiada e odiada, a cultura, ou melhor, as culturas de tantos povos ameríndios que já viviam aqui, quando os europeus chegaram, bem como as tantas culturas de todos os povos africanos que foram arrancados de seus continentes e deportados para a América, onde teriam de servir de combustível barato que movia o mega-latifúndio de extração que éramos para o europeu; estas realidades étnicas subvaloradas teriam tudo para desaparecer, como normalmente se pensa, mas o que aconteceu foi bem diferente. Isto não significa é claro que houve no Brasil a preservação do que os índios e os negros tinham como realidade de mundo, e menos ainda que tenha havido uma interação amena e pacífica entre eles. A questão racial, os problemas de aceitação e convívio entre as diferentes etnias são ainda hoje uma charada sem solução, e mascarar estas questões só serve para acirrá-las. Há “racismo” econômico, e de várias formas, o negro e as muitas variantes visíveis de mestiço no Brasil têm muito mais dificuldade para ser aceitos nas altas rodas, ou para encontrar oportunidades para “subir na vida”. Por outro lado, os brancos que são tão pobres quanto a maioria negra sofrem o racismo dos dois lados: são considerados, como dizem Gilberto Gil e Caetano Veloso, “quase pretos de tão pobres” pelos ricos, e um “estranho no ninho” pelos mestiços pobres . Tudo funciona como se houvesse uma superioridade da raça européia tacitamente aceita por todos, tanto os seus descendentes quanto os que não o são, ou pelo menos não são só seus descendentes. Outra coisa espantosa é que um mestiço é tão negro (ou índio ou negro e índio) quanto branco, e no entanto ele vai ser sempre considerado um não branco, logo sendo perfilado entre os pretos.

A atriz Lucélia Santos já faz parte de A Escrava Isaura, de seu mito, de seu mitema para contribuir ao pensamento brasileiro, desde que novela por ela estrelada, baseada no romance romântico de Bernardo Guimarães (um dos melhores poetas românticos), tornou-se um sucesso mundial, levando mais de nossa cultura ao conhecimento de muitos outros países em todo mundo, até na China, onde a novela é muitas vezes reprisada e a atriz é especialmente querida. No carnaval de 2002 a escola de samba Unidos da Tijuca homenageia a língua portuguesa, falada em todos os continentes, e um dos destaques é a atriz, que com seu sucesso em A Escrava Isaura, ajudou a propagar nosso idioma. Mas Lucélia é branca , assim como a clássica personagem de Bernardo Guimarães, a mais famosa escrava negra, ao lado de Iracema (do romance de José de Alencar), que é o mitema mais famoso da mulher indígena. A mais famosa escrava negra é branca, num país onde só houve escravidão dos negros e (a tentativa malsucedida de escravização) dos índios. E a atriz ajuda a compor essa peça no imaginário nacional a partir da feitura da novela (assim como a sensualidade da mulher brasileira mestiça é composta antes de tudo pelas próprias mulheres mestiças, mas também, em parte, por mitólogos, como o pintor Di Cavalcante, o músico Dorival Caymmi e o escritor Jorge Amado, e até, de novo, pela novela, que vai, a partir das obras desses artistas, plasmar a imagem midiática de uma Gabriela, por exemplo, sempre com a colaboração de uma atriz genial que “recebe” a personagem, nesse caso Sonia Braga). Se formos ser rigorosos Lucélia é mestiça também, como quase todos os brasileiros. Será esse o segredo da verossimilhança de sua representação da escrava Isaura? Ou será que a escravidão no Brasil se abstrai, se torna um sofrimento nacional, independente de tom da pele, e que pode ser entendido por todos, que foi vivenciado por todos, e que pode ser por qualquer elemento (negro, índio, branco ou mestiço das mais variadas proporções) apresentado e denunciado?

Oswald de Andrade refere a importância histórica da deglutição do Bispo Sardinha pelos caetés, no dia 16 de junho de 1556. É o salto quântico, a cambalhota do pensamento , a superação de uma aparente aporia. De um lado a cruz da religião, de outro a espada dos governos dos estados europeus. E no meio de tudo o índio, com a sofisticação de n culturas singulares, sendo desmontadas, pulverizadas, dispersas, sedimentadas, aplainadas. Já consideramos como a antropologia surge como a resposta euroariana e estatal à antropofagia. No entanto podemos ver, a partir do século XX, um retorno da antropofagia dentro da antropologia, revertendo e carnavalizando, antídoto do antídoto, uma antropologia antropofágica? Você sabia? Como
/…/ conseqüência da ação contra o bispo, os indígenas foram extintos em cinco anos de batalhas determinadas pelo governo português e apoiados pela igreja. Historiadores definem como “guerra santa” as investidas contra os índios.

Com o massacre, as terras dos nativos, descritos como canibais, guerreiros e fortes, passaram para as mãos dos estrangeiros.

Dois séculos depois da morte do bispo Sardinha, 3000 hectares foram doados à igreja pelo capitão Pedro Leite Sampaio, em nome de Nossa Senhora da Conceição, a padroeira de Coruripe.

Foi nesse momento que se formou o centro urbano de Coruripe, e fazendas de cana-de-açúcar foram instaladas. Tanto nos terrenos urbanos quanto nos sítinos, aos quais a igreja ainda mantém a propriedade, seus ocupantes pagam taxas legais à diocese.

Os “impostos” são o laudêmio e o foro, cobrados também, mas com valores diferentes, de ocupantes de terras devolutas da União. Segundo a igreja de Coruripe, a cobrança dessas taxas acontece em outras cidades do país que se formaram nas propriedades dela.

Darcy Ribeiro é um dos mais ilustres nomes; viveu entre indígenas muitos anos, fez estudos científicos e romances sobre eles, mas despiu a vestimenta ocidental do estudioso que guarda um distanciamento crítico e que se pretende isento, neutro. Darcy abraçou a causa, indianizou seu corpo (mais do que branqueou seu “corpus”) e deu à literatura brasileira um novo estatuto para a questão do índio, como se pela primeira vez este falasse de dentro do texto.

Pierre Clastres é um antropólogo francês que prova que os índios não só conhecem a possibilidade do estado, como fazem uma verdadeira guerra permanente contra sua implantação entre eles, passando o conceito de “sociedade sem estado” a “sociedade contra o estado” ., e se torna uma outra pessoa, muito melhor, a partir da vivência totalmente integrada com os índios guayaki – vivendo com eles na tribo, falando sua língua, comendo sua comida, participando de seus rituais etc .

Darcy é latino-americano, representando nas ciências humanas a voz da diferença, que trazem por nascimento, a força de sua origem cultural se agencia com o que eles encontram na cultura indígena, e eles o devoram, assimilam, produzindo de dentro da antropologia a volta antropofágica que com ela se tentou fazer calar.

Outro artista revevante é Flávio de Carvalho, oswaldiano confesso, que fazia experiências performáticas do visual e do cognitivo social, como quando se vestiu de mulher e andou pelas ruas do centro de São Paulo, e quase é linchado; em 1956 desfila pelo centro de São Paulo com seu traje de verão para homens, blusa bufante, saiote e meias arrastão.

Em 1999, por ocasião do centenário de nascimento do pintor, o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) no Rio de Janeiro e a FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) em São Paulo fizeram uma exposição de Flávio de Carvalho, para a qual a presidente do Conselho de Curadores da FAAP, Celita Procópio de Carvalho, escreveu os seguintes comentários:

Nos campo das perfomances visuais é preciso falar de Flávio de Carvalho, fluminense de Barra Mansa, nascido em 1899 e formado engenheiro na Inglaterra, que retornou ao Brasil exatamente em 1922, onde se entusiasmou com as propostas de Oswald de Andrade, com que conviveu, tornando-se arquiteto, escultor, autor de teatro e performer antropofágico (em 1931 atravessa na contramão e de boné uma procissão de Corpus Christi). Criador incansável, vanguardista convicto, soube captar o sentido profundo daquele momento em que a sedução das idéias se aliava ao gosto da ação. No alvorecer dos anos 30 e durante toda a sua longa vida, vamos encontrá-lo em múltiplos cenários, ora erguendo a voz em congressos de arquitetura para defender as teses antropofágicas, que viriam a virar pelo avesso as concepções de arte e de inserção do Brasil no mundo, ora participando do Salão Revolucionário no Rio de Janeiro, ora unindo-se aos pioneiros que fundaram o Clube dos Artistas Modernos.

Primeiro “performer” brasileiro, criou ainda o Teatro da Experiência e, como desdobramento, levou ao palco, de maneira inovadora, a sua peça O bailado do deus morto, que será remontada no Teatro FAAP. De espírito inquieto e determinado a recriar paradigmas, foi mais do que um artista. Foi uma personalidade extraordinária, de imaginação e energia invulgar. Montou cenários e figurinos para bailes de Carnaval, participou de bienais e foi autor de uma arquitetura futurista. /…/. Para Flávio de Carvalho, a complexa escala da dimensão humana era como luz da chama. É exatamente o que transpira dos retratos que fez de intelectuais, artistas e nus femininos.

Quero apenas fazer a relação antropofágica que existe entre esses acontecimentos, e outros haveria; o importante é mostrar a consistência de uma luta, de um pensamento e de uma cultura, com todas as suas implicações, que se fez herdeira, ao par dos fatores euroarianos, do complexo e arrojado pensamento que se manifesta preferencialmente na arte, na festa e no carnaval – e que é toda uma concepção sobre a existência e o mundo, toda uma ética para o indivíduo e a coletividade, uma proposta bem definida e arrojada para a sociedade atual. A dessemelhança entre os artistas e pensadores antropofágicos aponta para a pluralidade dos Brasis. É dessa diversidade, e das múltiplas e complexas imbricações que fazem, que emana o vigor cinematótico que passa, contra o coro dos contentes, pelos circuitos de nossa sociedade e cultura.

São diversas também as táticas para tentar fazer calar o pensamento antropofágico. Aliada a elas, ainda existe a absurda crença de que a arte e a literatura estão além do real, são inócuas, pura fantasia e diversão. Ora, os antropófagos nos mostram que é nelas que está o germe do real, ou melhor, da pluralidade de realidades que se fazem sem parar. A favor ou contra – tudo. E que o fiel da balança é a capacidade de afirmação da vida que cada texto (ou filme ou canção etc.) traz. Daí sairão subjetividades culpadas ou livres, escravas ou criadoras. As obras dos autores aqui considerados (entre tantos outros que se poderiam chamar) são verdadeiros aceleradores de partículas – e as partículas que eles aceleram são o próprio pensamento/real. As indicações feitas neste capítulo não são exaustivas ou cronológicas, uma Enciclopédia do Ciclope ou Tratado Geral da Antropofagia Brasileira. Muitas pesquisas podem ser desenvolvidas a respeito do tema, procurando na literatura, na poesia, na música, nas artes visuais, no teatro, no cinema, na ciência e na filosofia (e ainda alhures) pelos devires da antropofagia cinematótica.

Não se trata de filiações, tradições ou influências, já estamos cansados destas coisas. E, como já foi dito, a antropofagia é uma prática estética e política de um pensamento imanentista criado pelas populações americanas no intempestivo, bem como a brasileira – não no sentido europeu moderno de nação, e sim inação, fronteiras de sensibilidade, não fazer, graus da temperatura informacional do mundo, não ação, latitudes e longitudes geoestéticas (implicando em geopolítica e etologia da ética), resultados das experiências realizadas dentro de um continental laboratório de miscigenação de corpos e pensamentos, que aqui ocorreram e ocorrem. A antropofagia é necessariamente coletiva, se faz por uma pluralidade de vozes e é sempre de maneira polifônica que ela se apresenta. Mesmo assim ela tem suas assinaturas: Gregório de Matos Guerra, Sousândrade, Qorpo Santo, Kilkerry, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade… são alguns antropófagos ilustres, bem conhecidos de todos. O que pretendemos foi mostrar que existe um pensamento revolucionário e inovador que se expressa através da antropofagia, e que, se ela não é criação exclusiva de Oswald de Andrade, foi ele, até agora, o seu mais aguerrido e vivaz tradutor.

E é claro que muitos outros (Brasis) se inventarão.

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