Tópicos que caracterizam a arte-pensamento de Jorge Mautner
Excerto do livro Proteu ou: a arte das transmutações; leituras, audições e visões da obra de Jorge Mautner. 1ª ed: Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2004. 2ª ed.: Rio de Janeiro: Litteris, 2011.
Luis Carlos de Morais Junior
Tópicos que caracterizam a arte-pensamento de Jorge Mautner (sem prioridade lógica ou cronológica, são aspectos sempre presentes, que convivem o tempo todo em seu arte-pensar):
– A identificação entre o fazer e o pensar, que redunda da identidade entre “natural” e “artificial”; o ser humano, cônscio de que não há uma “natureza” prévia das coisas e de si mesmo, torna-se “demiurgo” ele também, e pode realizar/fazer sua “poiésis”, sua arte, não mais como cópia ou simulacro, e não mais necessitando colocar ali mímesis ou verossimilhaça; a arte torna-se pensar porque se produz como um arte-fício (ficção da arte, fruto da vontade).
– A não-delimitação de qualquer espécie, gênero, número, grau etc. Assim o “poeta” (no sentido amplo e abrangente daquele que faz o artifício) está sempre pronto a experimentar novas formas de arte, e tal conceito tem uma enorme abrangência, bem como a realizar novas experiências em campos já conhecidos ou ainda ignorados, e a inventar. Assim faz textos (poesia, ensaio, ficção, tudo ao mesmo tempo) E faz música E toca E canta E faz teatro E pinta E desenha E faz cinema E… Sempre tem o que dizer, seja em uma conversa casual, seja em um livro, o espírito pede mais um E mais um E mais um E mais um E mais um E… (Esta vontade acoplada ao modo de viver e ao pensamento está expresso na canção a “Matemática do Desejo”: “Na matemática/Diz!/Do meu desejo/Eu sempre quero mais um mais um mais um beijo…”).
– Corolário do tópico anterior: JM tem sua própria versão do “verbivocovisual”, que muitos vão rotular com as palavras da moda multimídia e performer; no entanto tais rótulos não signficam nada, hoje em dia qualquer artista faz (é forçado a fazer) utilização da multiplicidade simultânea de meios de comunicação, como exigência técnica e da mentalidade de nosso status social e técnico. JM faz canções tão visuais que são filmes , escreve quando canta em seus shows e para a música e fica falando como conferências minimalistas no meio das canções, faz de seu corpo o “cavalo” de inúmeras interpretações, e escritas ideogrâmicas corporais também (vejam o símbolo do kaos fazendo tai chi em Fundamentos do Kaos) etc. (isto é, E outras coisas mesmo).
– Diálogo privilegiado com a pensamento ocidental, seja em um livro de ensaios (Panfletos da Nova Era, Volume 1, Fundamentos do Kaos), seja em um livro de ensaios poéticos (Fragmentos de Sabonete), seja em um livro ensaios ficção (A Floresta Verde Esmeralda), seja em um romance (Deus da Chuva e da Morte, Kaos, Narciso em Tarde Cinza, Sexo do Crepúsculo), seja em um livro de poemas (Poesias de Amor e de Morte), seja em um livro de contos (Miséria Dourada), seja nos filmes (que dirigiu, roteirizou ou nos quais trabalhou como ator), seja nas canções, seja nas palestras, seja nas aulas, seja nos shows, seja nas conversas comuns. Implicação deste ponto: JM não cultiva preconceito nenhum. Assim, muito mais do que a grande maioria dos acadêmicos e eruditos, ele aceita todas as linhas filosóficas, e dialoga com elas, aceitando no sentido de ver ali uma construção importante e fundamental (um dos “fundamentos do Kaos”), mesmo que pareçam para a mentalidade comum de hoje em dia ser contraditórias; o que também não implica em uma geleia geral, ele constrói o seu percurso e mantém a linha de seu pensamento, como o curso do Amazonas, o maior rio do mundo, que vai sempre na direção do mar, aceitando a contribuição de incontáveis afluentes.
– Corolário do anterior: JM não tem medo nem rejeita as contradições. Muito pelo contrário, ele as cultiva, como solo apropriado para a geração de paradoxos, a essência do próprio pensamento e o modo mais comum da existência.
– Afluente para os dois tópicos anteriores: vivemos em um número muito grande de dimensões espaço-temporais, apesar de termos a ilusão cognitiva de que estamos em três dimensões espaciais mais uma única temporal. Este quarto de quatro paredes fechadas é angustioso e falso, limitador, e se deve menos à nossa capacidade de percepção e cognição e mais a condicionamento social, mental e perceptivo.
– Questão paralela: assim como todas as principais correntes do pensamento passam por sua fala, apesar de ele fazer o seu percurso e ligá-las numa decupagem toda própria, que expressa sua própria visão de mundo, todos os gêneros e estilos lhe são caros, e ele escreve e compõe utilizando o máximo de recursos e efeitos técnicos que consegue amealhar, sem no entanto ser insosso e desnorteado; há um estilo de base, um arquétipo ou construção geral dentro da qual ele encaixa as várias metaformoses, exercícios e máscaras artísticas. Não é fácil determinar essa arquitetura, e não há a mínima dificuldade em percebê-la. Ela não tem nome pré-existente, justamente porque ele a inventou, é o estilo de JM (que podemos chamar de JM com K ). Um dos traços mais frequentes e um dos estilos que mais lhe são aparentados é o surrealismo. O fantástico, o expressionismo e o experimentalismo também são muito fortes. Por outro lado tem características barrocas (influenciado especialmente por Pe. Antônio Vieira), modernistas (Macunaíma de Mário de Andrade é um dos “riverruns”), do romance russo, do romance joyceano, da Bíblia e dos pré-socráticos.
– A arte-pensamento de JM é o tempo todo política, com tanta radicalidade que podemos dizer também que ela é a-política ou super-política (supera a pólis em favor do cosmos e do advento do super-homem, enquanto que o entendimento comum da política é ultra-conservador, quer manter a visão setorizada e o estado de consciência já atingido; mal percebe ela que é como um equilibrista, só pode manter-se na linha indo sempre em frente). Em JM revolução ganha um significado menor e maior, micromolecular (“microfísica do poder” de Foucault, “revolução molecular” de Guattari) e galática, ao mesmo tempo se afirma como “soldado revolucionário” e “herói das estrelas”. JM entende política como poder em todos os sentidos, e não como representação do poder (por isso o senhor do castelo é Nietzsche, que honra seus convivas).
– Equivalência: JM faz arte-pensamento trágico, no sentido nietzscheano do termo, isto é, afirma a necessidade da existência, o amor fati.
– A mulher tem lugar de primazia, o “universo é essencialmente feminino” como escreveu Carlos Castaneda. O matriarcado redescoberto por Bachofen como a forma de organização social na qual a humanidade passou mais de nove décimos de sua existência, e que era muito mais equilibrada e saudável, e à qual a Terra e o homem retornam como um ciclo, esta descoberta gerou Nietzsche, Freud, Marx e Mautner. A linha invisível e sempre sensível que liga estas quatro filosofias é a linha do matriarcado, que tem como complemento inevitável o nomadismo (v. “Tratado de Nomadologia” e “Aparelho de Captura” in Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari).
– A arte-pensamento de JM é nômade, está ligada a esta ética-pensamento milenar e marginal, que aposta fundamentalmente na vida, contra todas as capturas que o “nazismo universal” (expressão utilizada na música “Cidadão-Cidadã”), intersticial, espalhado, conjuntural, que a maquinaria do estado não para de fabricar (v. Kafka) contra a liberdade de vida-pensamento.
– A interrelação total e em tempo integral entre arte-pensamento, ética-pensamento e vida-pensamento.
– O sexo é bom e tudo é sexo (o que é diferente de dizer que tudo é genitalidade, conjugalidade etc.). O Brasil de JM não é o país da bunda, a “festa de bombom e de bumbum” de que nos fala. O pan-sexualismo de Mautner é dionisíaco e crístico, é o amor por todos os seres, pois tudo que é vivo e até mesmo todas as coisas são expressões a modulações da mesma vida que brota (Proteu).
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