Luis Carlos de Morais Junior e Eliane Colchete mostram poemas e textos ficcionais, ensaísticos ou de comentário sobre a sociedade e o mundo atual, e de todos os tempos. Aqui podemos ver trechos de livros já publicados ou inéditos, bem como obras em progresso, que eles estão escrevendo.
Texto da Semana
Monólito
Do livro Crisólogo o estudante de poesia Caetano Veloso. Rio de Janeiro: HP Com, 2004.
(DNA é um poema que escrevi em 1976 e reescrevi em 2003, e que fala sobre a herança bilógica cultural minha. DNA já estava sendo o título de uma canção que José Miguel Wisnik defendeu no festival da Globo em 2000 e que não resisto a pegar e colocar também neste. DNA foi gravado e transcrito por Jacques Morelenbaum para a gravação de Caetano “Detached” de Arto Lindsay, Ikue Mori e Tim Wright, a foreign sound, 2004).
Caetano Veloso é um dos mais queridos cantores e compositores da música popular brasileira, que é a forma mais reconhecida de expressão artística do nosso país. Ele canta de uma maneira muito bonita e cativante, faz melodias que ficam, e suas letras são verdadeiros poemas, com alta qualidade literária. Possui o “toque de Midas”, pois tudo que toca vira ouro, e vira outro, isto é, quando se envolve nos projetos ou dá a sua interpretação particular, mesmo que seja para canções consideradas de mau gosto, estas se tornam sucessos e passam a ser consideradas lindas (como aconteceu com “Coração materno” de Vicente Celestino em 1968, no disco Tropicália, e “Eu vou tirar você desse lugar”, de Odair José, no evento Phono 73, por exemplo). É Caetano quem afirma:
Mais que um projeto musical, é um projeto de vida quebrar, à minha maneira, a estrutura social e econômica do Brasil. Gravar esses compositores sempre foi para mim uma forma de gritar contra o apartheid social brasileiro. /…/ Muita gente me acusa de falta de critérios quando defendo esse ou aquele tipo de música, de defender o vale-tudo. Mas o que eu busco é complexificar os critérios. Era essa complexidade que eu buscava em todas as vezes que provoquei o bom gosto dominante de Vicente Celestino ao “Tapinha”.
(O Globo, Segundo Caderno, 29/06/2003)
Isso inclui, não apenas o mau gosto oficial, ou oficializado, mas também o soi disant bom gosto, ou bom senso, que não o assusta, mesmo que o pratique, sempre crê poder revitalizar aquilo:
É evidente que com a Carolina tudo foi diferente: de certa forma é uma das músicas aparentemente mais medíocres do Chico, parece música normal de rádio etc. Por um lado, é isso o que mais me atrai nela: eu sempre tenho vontade de gravar (cantar) coisas que já se tornaram opacas, que já estão fazendo parte da geleia geral, e tentar reiluminá-las.
(Carta a Luiz Carlos Maciel, Geração em transe, p. 230)
Caetano Veloso foi o primeiro artista brasileiro a ter todos os seus discos convertidos em disco laser (cd, que quer dizer compact disc), o que foi facilitado pelo fato de toda sua carreira haver se constituído na mesma gravadora, Philips.
Eu adoro CD. Tem uma pureza, um silêncio… Com o CD você pode ouvir uma faixa só. Não precisa ir lá longe com o braço da agulha procurar uma canção no LP. Isso dava um trabalhão. Da fita cassete nem se fala. Você anda pra frente, anda pra trás, não acha a música e aí desiste.
(Entrevista a Márcia Cezimbra, Jornal do Brasil, 16/05/1991)
Além disso, protagonizou o maior movimento cultural da segunda metade do século XX do Brasil, a Tropicália, como ele prefere chamar, e tem uma atuação inteligente e superinformada que se derrama por outras áreas, aonde consiga chegar: cantor e compositor, instrumentista, ator, diretor de clipe e filme (O Cinema Falado, 1986), autor de várias trilhas, publicou até agora um livro de artigos e entrevistas (Alegria, alegria, 1977) e um excelente estudo sobre sua própria obra e o ambiente cultural que a cerca (Verdade tropical, 1997), que, a princípio, seria um depoimento sobre o tropicalismo do final dos anos 60 e início dos anos 70, mas suas colocações se estendem no tempo e no espaço, para além do período proposto, e Caetano se posiciona face praticamente a tudo que aconteceu na música brasileira do século XX, e boa parte do que aconteceu nas outras artes também (este estudo Crisólogo foi escrito em 2003 e 2004, e neste ano publicado; em novembro de 2005 veio a lume O mundo não é chato, que reúne em livro vários textos escritos por Caetano para jornais, revistas e releases). O que mais realça Verdade tropical é a honestidade intelectual de Caetano, o seu esforço por ser claro e verdadeiro tanto com suas intenções e investimentos quanto na avaliação dos movimentos de outros artistas e pensadores. O livro é um acontecimento fundador na história da cultura mundial, um artista, cantor e compositor popular, mostrando as motivações e ligações de sua obra com tanta base e fluência, revelando-se um estudante vital, que pesquisa as coisas e procura compreender sempre melhor o mundo e a arte. Outra qualidade que se destaca é a feição de narrativa do texto, lemos Verdade tropical como um romance muito interessante e que prende a nossa atenção, um romance de ideias e, ao mesmo tempo, o périplo de um jovem brasileiro em sua busca pela forma artística. O recurso de auto-remissão, que fecha/abre e entrega ao leitor o livro, os diálogos implícitos, o uso do discurso indireto, as digressões e fluxos de consciência, a abordagem da experiência com a droga, o texto limpo e bonito, a criatividade e novidade das imagens, a ironia inteligente que brinca com o próprio texto, as citações explícitas ou implícitas, a metalinguagem e outros efeitos estéticos (alguns conhecidos no Caetano poeta, alguns próprios do escritor que já sabíamos dos textos do Pasquim e de outros jornais) são qualidades literárias visíveis na obra. A humildade verdadeira também ressalta, Caetano não esconde sua influência do tempo, dos artistas que conheceu, do social. É claro para o leitor que ele fez o que fez porque estava no lugar e no momento certos, isso sem tirar a valia do seu talento ou o mérito de sua abordagem. Há narcisismo também, o autor é o primeiro a brincar com isso, mas essa característica não torna obtuso o Caetano artista.
A problemática do sexo, principalmente no que tange ao homossexualismo, é tratada com alguma dificuldade e angústia, o que não deixa de ser surpreendente num artista que se destacou por trazer à baila o tema do desbloqueio sexual. Como quando ele afirma que fez muito mais coisas em música do que grandes músicos mesmo não sendo um deles, o que é um narcisismo invertido, ele é tão bom em música quanto parece, mas faz questão de sempre afirmar o contrário; e também que tem mais sucesso com as mulheres do que muitos heterossexuais ortodoxos, ele que se confessa um heterossexual heterodoxo, o que é pior ainda, como se a sexualidade pudesse ser assim determinada, e sentir e praticar tendências homo fosse inferiorizar alguém ou tornar essa pessoa estigmatizada. Mas fez muito bem em protestar no artigo “Vá ver o ‘Ham-let’ do Teatro Oficina”, na Folha de São Paulo, Caderno Ilustrado, 21/10/93, pelo fato de um correspondente do jornal New York Times haver afirmado que ele e Gil usam vestidos, “wear dresses”, e são homossexuais assumidos, quando não o são, e tudo que fizeram foi usar sarongs sobre os smokings quando receberam o prêmio Sharp. Caetano propugna a liberdade comportamental, sem que o ser humano precise se determinar como hetero ou homo ou bi, ou outra coisa qualquer; a opção e as práticas sexuais não podem servir para catalogar uma pessoa.
Por outro lado, o maior defeito da obra é o esforço meio malogrado de ser uma abordagem teórica; uma das poucas que Caetano fez até agora . As suas canções, o seu outro livro e o seu filme são poéticos, e é aí que ele é forte e faz o que sabe. Quando tenta costurar um discurso puramente intelectual, Caetano se torna confuso e inconsistente. Mesmo assim tal característica não chega a tirar o valor do livro, ainda que o faça cometer injustiças ou enfraquecer questões.
O que talvez tenha dificultado tudo desde sempre é o fato de nunca antes ter havido no Brasil uma figura popular com tanta pinta de intelectual quanto eu.
(Alegria, alegria, p. 87, junho de 1972)
É um ponto delicado, porque a proposta dele foi escrever como poeta um texto que falasse do seu tempo e da arte do seu tempo, e da sua, do quanto ela recebeu influência deles. Logo é consequente que trate dos problemas teóricos pertinentes ao assunto, e as críticas que fazemos aqui não significam desvalorizar a atitude corajosa de se embrenhar com talento pelos emaranhados da teoria. Mas há uma certa mania de onipotência que se percebe quando o autor faz colocações abrangentes e quer que sua contribuição consciente e importante para questões como a afirmação da arte brasileira ou os caminhos da música popular dentro da indústria do entretenimento sejam globais e expliquem tudo, como se estivesse produzindo um estudo histórico ou sociológico de fôlego, para o qual não investiu e não tem vocação. É o seu trabalho poético que tem o peso da teoria, o que parece um paradoxo, e é. Pois a teoria vem do verbo “teorein” grego e significa “ver”, é uma ação ligada à capacidade de fazer distinções e avaliações de ideias e de juízos, de formas de compreender o real, e a ação humana sobre o real. Já a poesia vem de “poésis”, que significa “fazer”, e é o agir real sobre o real, isto é, o agir prático que transforma o real. Há, portanto, abordagens, saberes e práticas poéticas ou teoréticas. O que Caetano faz não é teoria hora nenhuma, ele não se liga às estruturas subjacentes ao saber teórico, não trabalha com conceitos, ou com formulações teóricas. Ele mesmo fala muito seriamente na canção “Ele me deu um beijo na boca” do álbum Cores, nomes: “E a crítica que não toque na poesia”.
No entanto pensa, e pensa bem. O que ele faz é poética, o tempo todo, e desde Nietzsche, pelo menos, sabemos que a poesia pode ser também pensamento – não obstante Nietzsche foi um teórico. Por causa dessas e outras é que eu criei a palavra “poeteorético”, para dar conta de um poeta que trabalhe a poesia, fazer artístico, com a densidade e as implicações da teoria, o que não significa necessariamente que ele seja um teórico puro também, o que pode acontecer, mas com Caetano se dá que ele é só poeteorético, quer dizer, ele faz só poesia, que se amaranha toda com as problemáticas da teoria. E é aí que seu pensamento é mais forte e mais influente.
Roberto DaMatta contou, no programa da televisão Educativa do Rio de Janeiro, Conexão Roberto d’Ávila, de 28 de setembro de 2003, que foi a audição que fez da canção “Tropicália” de Caetano Veloso, em 1968, que o levou a desenvolver suas teorias sociológicas sobre a importância do carnaval para a identidade da sociedade brasileira. Roberto DaMatta fazia doutorado na Univesidade de Cambridge, elaborando observações que havia realizado no início da década de sessenta, instado a se tornar etnólogo por seu mestre Darcy Ribeiro (“Na noite em que eu conheci o Darcy eu não consegui dormir”), quando morou com a tribo dos apinagé, da família jê. No último ano de permanência nos Estados Unidos, um dia, escutou sozinho em casa dois discos que amigos do Brasil haviam lhe enviado, um com “Tropicália”, o outro com “Baile dos mascarados”, de Chico Buarque de Hollanda, cantado por Nara Leão e Gilberto Gil. Ele percebe em “Tropicália” uma canção com uma letra neoconcretista, com elementos surrealistas, e que estabelece um tipo de diálogo que vai driblar a repressão da ditadura. Descobre a importância da festa, uma “estrutura de longa duração” que vai se modificando, passa pelos carnavais medievais, o bal masqué e o entrudo, no Brasil colônia, no qual coisas e líquidos eram arremessados contra os passantes, e que todo o elenco do carnaval na Idade Média aparece no carnaval brasileiro. A partir da audição das versões tropicalistas, escreve de imediato o artigo “O carnaval como um rito de passagem” (Ensaios de antropologia estrutural), que vai ser um programa de trabalho que ele desenvolverá durante vinte anos, escrevendo livros como Carnavais, malandros e heróis. Esse é um exemplo do peso da arte de Caetano como pensamento, que influencia a teoria (estabelecendo com ela um corpo continuado de pensamento enquanto arte, sem precisar ser teoria também).
Quando Caetano pensa e fala sobre os autores que mais gosta e mais lhe estão próximos, ou quando nos mostra meandros e minúcias da sua carreira ou do negócio da música que conhece, traz contribuições importantes, reveladas com coragem e pensadas com perícia. O livro sobre João Gilberto, que declara querer fazer, mas sentir timidez, talvez venha a ser uma bela continuação, que Verdade tropical merece, principalmente se Caetano explorar mais ainda o que sabe fazer melhor, que é o sabor poético e narrativo que consegue imprimir ao texto (assim como o próprio Caetano soube reconhecer o caráter de narrativa na entrevista que Augusto de Campos fez com João Gilberto e que está em O balanço da bossa e outras bossas, pp. 251-256).
Outro livro faz um par perfeito com o de Caetano: Geração em transe; memórias do tempo do tropicalismo, de Luiz Carlos Maciel, lançado um ano antes, ou seja, 1996. Ouso pensar que, assim como Crisólogo é uma resposta gerada por Verdade, esta o foi por Geração (sabemos do convite dos editores americanos, mas, mesmo assim, parece que Caetano se sentiu obrigado a responder ao livro de Maciel). As duas obras se parecem, em muitas coisas, e é muito proveitoso lê-las em conjunto, pelo que têm de revelador, de dois pontos de vista, de dois caras que viveram no centro das coisas que contam, pelas informações de primeira mão que trazem, pelas muitas e importantes ligações culturais, pela proximidade de pensamento, e sua diferença, e pelo brilhantismo dos dois autores. Maciel pareceria menos, ao começar seu livro ficamos com uma impressão um pouco frouxa, mas depois vemos que aquilo nele é zen, que ele é muito inteligente e arguto, agudo, capta tudo, apesar de ser tão despretencioso. Em seu livro ficamos sabendo sobre o savoir faire com que encarou o fato de haver acompanhado o florescimento de Glauber, ter sido ator de seu segundo curta, o experimental A cruz na praça, que se perdeu, e cogitado para tantos outros projetos, estar presente ao início do Pasquim, ser um dos primeiros críticos a avaliar de modo correto e generoso o trabalho de Caetano e dos outros tropicalistas, ser guru da contracultura, e o diretor de teatro que “descobriu” O rei da vela de Oswald de Andrade, que decidiu montar, e que cedeu a ideia a José Celso, e um dos poucos precursores da leitura séria da obra de Carlos Castaneda, no Brasil e no mundo.
Quanto a Caetano, o conjunto de suas canções não é o livro sobre o cantor da bossa nova, é preciso compreender isso, apesar de ele se consolar com tal ideia. Esse livro nasceu dentro de Caetano quando escreveu os artigos que abrem Alegria, alegria (“Primeira feira de balanço”, Ângulos, 1965-66), antes de se tornar famoso, onde argumentava contra a crítica de José Ramos Tinhorão, que propunha a permanência do que seriam valores nacionalistas da mpb, e que na verdade representam um momento do diálogo entre a nossa a arte e a do mundo, já que os seres humanos e suas produções são comunicantes. Tinhorão se mostrava prenhe de preconceitos obscuros contra a bossa nova, e Caetano rebate-os, muito bem. Mas o livro que quer escrever sobre seu cantor preferido não foi feito ainda. É clara a presença de Orlando Silva sobre o modo de cantar de João Gilberto, e ele é o primeiro a diagnosticar isso; não concordo, porém, que se possa descartar a vertente, o vetor de força que veio do “mandarim” da nossa música popular, esse gênio do canto que é Mario Reis, que Caetano considera um “anticantor” (o que é um elogio, como a antipoesia pode ser a melhor forma de fazer poesia), e que não teria, segundo seu parecer, influência para o que seria o canto de Gilberto e a revolução da mpb que a partir dele se deu. Ora, o anticanto de Mario Reis inaugura uma nova dicção e um pensar sobre o samba, e ouço ali muito do que viria a ser o século musical do Brasil, que não seria o mesmo se não tivesse ouvido a fluência do canto elegante e inteligente de Reis, inclusive a bossa nova e João Gilberto, mesmo que sua vocalização seja realizada mais próxima, e seja herdeira, de Orlando Silva.
Orlando fazia a sua bossa também, suas inovações, e é uma ponte que vai de Noel a João Gilberto. Havia mesmo um maestro que já dava uma roupagem de luxo para as canções de Orlando Silva, o sofisticado Radamés Gnatalli. Guardadas as proporções, o caldo multi-cultural que Gnatalli ferveu com o canto de Orlando Silva corresponde ao acoplamento da genialidade de João Gilberto com o talento original de compositor e orquestrador de Tom Jobim. A cultura orquestral brasileira é continuada, uma progressão que se desenvolve, como notou Egberto Gismonti na estrevista a João Luiz Macline no programa Por Acaso da tv Educativa em março de 2004. É preciso fazer a superação continuada da música na sua totalidade sinfônica, como também da literatura e da cultura em geral; se libertar dos modernismos, do século vinte, dos grandes monstros sagrados. Seguir as pegadas de Orlando não foi prerrogativa de João Gilberto, antes dele já o tinham feito, cada um a seu modo, muitos cantores. Lembremos também que João foi outro ponto de união e abertura de trilhas da nossa música, tendo sido imitado por líderes de movimentos diferentes, entre eles Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso.
Outra questão que poderia gerar controvérsia é ver o samba de roda da Bahia como primeiro em relação ao do Rio de Janeiro, tão diferente daquele, e considerado por Caetano, que segue a opinião de alguns, como seu descendente, o que reafirma na música “Onde o Rio é mais baiano”, que está no cd contemporâneo, Livro. Ora, o samba do Rio de Janeiro é diferente do samba de roda, aliás, há vários tipos de samba originais do Rio de Janeiro, dos subúrbios e dos morros, das favelas. Os ancestrais desse samba são ritmos e tradições ainda preservados e vivos, como o jongo ou caxambu (Serrinha no Rio de Janeiro, Associação de Moradores do Quilombo São José da Serra em Valença e mais quinze comunidades no Rio de Janeiro, Vale Paulista e Minas), ou ritmos da época do Brasil colônia que aparecem no Rio antigo, como o lundu, além de formas correlatas que se encontram próximas do samba, o chorinho ou tango brasileiro (como os de Ernesto Nazareth), entre outras. Ainda levamos em conta a contribuição das batidas de candomblé e umbanda, que tanto se encontram no Rio quanto na Bahia. E há a documentação e registro do primeiro lugar onde se fez samba no Rio de Janeiro, a casa da tia Ciata, na Praça Onze; e do primeiro samba propriamente dito, que ali foi composto, por Donga e M. de Almeida, “Pelo telefone”. Talvez seja impossível determinar com certeza onde o samba nasceu, e tais precisões documentais tenham algo de mítico, mas podemos dizer que é (apenas) provável que tenha sido no Brasil. Criações populares, como um estilo musical, são trans-pessoais, atravessam gerações e não precisam ser datadas e etiquetadas. Podemos também nos lembrar que em países africanos, como Angola e Moçambique, existe o “semba”, que já traz em si célucas rítmicas matriciais do nosso samba, e que veio para o Brasil junto com os negros escravizados e a religiosidade dos deuses que aqui se constituíram como o candomblé e os orixás; e que, mesmo assim, é diferente do samba do Rio de Janeiro ou do da Bahia, que são, por sua vez, frisamos, diferentes entre si.
Mas a característica mais ingênua do relato/análise feito por Caetano Veloso em Verdade talvez seja o produto do deslumbramento que alega ter pelo iluminismo em suas várias formas, como o livro O mundo desde o fim de Antônio Cícero, irmão e letrista da cantora Marina, tentativa de restaurar a funcionalidade do cogito. No programa “Noites Cariocas” com Scarlet Moon e Nelson Mota, que passava na tv na primeira metade da década de 80, Antônio Cícero elogiou Caetano por ser iluminista; agora é o baiano que vê no outro tal qualidade. Mas foi na Londres dos anos 70 que, pela primeira vez, Jorge Mautner chamou, rindo, Caetano Veloso de iluminista, assim que os dois se conheceram. A crítica genérica a fenômenos que o próprio Caetano Veloso identifica como retorno do medieval, sebastianismo e irracionalismo, é leviana, pois não leva em conta todas as pesquisas que mostram as forças e investimentos do pensamento alternativo à chamada razão clássica, que é considerado racional também, plural, racionalidades alternativas, e que estão em todas as práticas, mesmo as científicas.
E gostamos dos irracionalistas, dos racionalistas e dos super-racionalistas.
(Caetano Veloso, “A Primeira Sessão do Kaos”, reunião realizada no dia 29 de novembro de 1974, em sua casa, na avenida Delfim Moreira, no Leblon, Rio de Janeiro, com Jorge Mautner, Luiz Carlos Maciel e Luís Carlos Cabral, para produzir o release do jornal que fariam, Kaos, e que não obteve patrocínio; do livro: Geração em transe, p. 263)
Há dubiedade em nosso autor quanto a estas, pois valoriza vários autores que ele mesmo chama de irracionalistas, além de confessar a influência que sofreu do que considera o sebastianismo de Fernando Pessoa do livro Mensagem e do professor baiano Agostinho da Silva. Declara ainda que ficou deslumbrado com PanAmérica (1ª edição: Rio de Janeiro, Tridente, julho de 1967, 2ª edição: São Paulo, Max Limonad, agosto de 1988, 3ª edição: São Paulo, Papagaio, março de 2001) de Zé Agrippino de Paula, mas não conseguiu compreender bem a epopeia pós-moderna, nem soube onde ou como encaixá-la, e pede que uma avaliação crítica seja feita, e que venha a satisfazer seu desejo de entender a obra (Evelina Hoisel faz análise da epopeia no livro Supercaos: os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas, editado pela Civilização Brasileira e Fundação Cultural do Estado da Bahia). Caetano Veloso vai responder ao seu próprio chamado no excente prefário à terceira edição do livro.
No campo filosófico, a fraqueza de Caetano, esse compositor que faz uma quase filosofia, no dizer de Gilberto Gil (Songbook de Caetano Veloso) vem de não conseguir dar conta da superação da tola dualidade entre o autodenominado racionalismo (ou o super-racionalismo, junto com ele, que para Caetano é a alternativa racionalista da vanguarda, como se dá na Bauhaus ou no concretismo brasileiro) e irracionalismo (visível em outras formas de vanguarda, como o surrealismo, o que é uma pecha, animais talvez sejam irracionais, não o pretendem ser artistas de vanguarda ou filósofos). Caetano Veloso não considera filosoficamente a criação de uma nova razão (para além das conhecidas e reativas, e que para Bergson seria a razão intuitiva) que nos liberta da fraca e submissa filosofia da consciência (como, por exemplo, o cogito cartesiano), nova razão que produz obras como a filosofia de Gilles Deleuze (a confusão que, no livro, Caetano faz entre esquizoanálise e esquizofrenia patológica é risível) ou as obras de arte experimental do século XX.
Uma outra forma, latente, do seu deslumbramento, pode-se perceber na relação que vê entre o ser brasileiro e o outro, estrangeiro, naqueles que se consideram a si mesmos como “primeiro mundo” ou “grandes países”. Verdade tropical foi feito a pedido da casa editorial americana Alfred Knopf, encomenda esta motivada pelo artigo “Carmen Miranda Dada”, que saiu publicado no jornal The New York Times, em 1991, e que chamou a atenção dos editores. Ora, Carmen Miranda é a outra face da moeda “poesia de exportação” de Oswald de Andrade, pois ela realmente levou nossa poesia como letra de música para a matriz do capitalismo do século XX, mas foi apropriada, tornada ícone, e fizeram com sua imagem o que ela quis e o que eles quiseram, quisesse ela ou não. Foi considerada exótica, e vendeu essa imagem de nosso país e cultura. E não era baiana, e muito menos brasileira, e sim portuguesa (mas não foi para ela que Geraldo Pereira escreveu “Falsa baiana”).
Caetano funde Oswald de Andrade e Carmen Miranda em si mesmo; industrial da poesia consciente que faz a revolução das formas artísticas nacionais desdenhando a colonização e rindo dela, e cantor do rádio. Esse tema incomoda Caetano ainda mais do que a questão da sexualidade. Não é à toa que seu livro abre com um capítulo de negação dos ícones de massa, os objetos sexuais estadunidenses, masculino, Elvis Presley, e feminino, Marilyn Monroe (a musa constante que obceca PanAmérica, de Zé Agrippino).
Aí vemos as duas questões nevrálgicas. Muitos episódios confirmam isso, como o da entrevista de Mick Jagger para o programa Conexão Internacional de Roberto d’Ávila, em Nova Iorque, em 1983, da qual Caetano participou: o roqueiro inglês foi irônico e quase desdenhoso com o jornalista, bem como com o cantor brasileiro que lhe dirigia perguntas, o que só depunha contra Jagger, não contra Caetano e Roberto. Em artigo de jornal Paulo Francis comentou sarcasticamente o fato, o que despertou a ira de Caetano Veloso, e gerou uma das muitas polêmicas de nosso poeta com intelectuais (outras ocorreram, com José Guilherme Merquior e Décio Pignatari) ou com a imprensa.
Ele vive essa duplicidade, defendendo um padrão e às vezes até mesmo uma visão que representam mais os desejos e apegos dos neocolonialistas, do que o racionalismo ou a qualidade e competência propriamente ditos; enquanto, ao mesmo tempo, é crítico em relação a tudo isso, e um ativo produtor de “biscoitos finos para as massas” bárbaras, nossas ou não.
O problema do uso da língua estrangeira, que ele discute também, é outro exemplo gritante. Ao chamar suas composições anglófonas da época do tropicalismo de “monstrengos” e desfazer do próprio domínio, alegando que o inglês e o português são tão diferentes como dois idiomas podem ser (o que é uma bobagem, mesmo na Europa as línguas urálicas, Húngaro, Finlandês etc., estão bem mais distantes das nossas, indo-europeias, como as latinas e as germânicas, do que estas entre si; sem contar as orientais ou ameríndias). O que ele não fala é que o inglês se misturou por toda parte, se imiscuiu em prol do comércio e da exploração; por isso não pode exigir a “correção”, isto é, o cumprimento à norma das universidades britânicas, ao ser falado, por exemplo, por um africano ou um jamaicano, que não pedem desculpas por usá-lo ao seu modo, já que ela se torna sua língua também, quando se impõe assim tão sem cerimônia sobre o resto do mundo; e a reinventam, e os falantes ingleses ou estadunidenses são obrigados a suportar os novos idiomas ingleses que vão aparecendo aqui e ali, pois foram produzidos pela sua própria atividade de expansão, e são reais, como é real a diferença e a necessidade de expressão dos outros povos que os falam, inclusive nós, se o fazemos. “Nós canto/falamos como quem inveja negros que sofrem horrores nos guetos do Harlem”, Caetano canto/fala em “Língua” (Velô), reconhecendo a riqueza dos slangs e dos patois, bem como do black english, e ao mesmo tempo sendo irônico com nossa mania (brasileira) de tentar imitar o modo de falar dos americanos, recolocando a questão que Noel Rosa já colocara em seu “Não tem tradução”. Mas ele (Caetano) parece querer passar um atestado de que está além de ser latino e mestiço, é um cidadão do mundo, homem culto e viajado, e reconhece suas próprias deficiências linguísticas do passado (ou que está além dessas determinações, por esforço pessoal ou genialidade racial, e pode reinventar o inglês, fazer o seu pop, o seu rap, como um bom antropófago – ver, por exemplo, o álbum a foreign sound). Convém notar que Caetano é totalmente detalhista e perfeccionista na pronúcia e performance de outro idioma, quando canta em línguas estrangeiras. Chega, por exemplo, a pronunciar gutural, com um pequeno /g/ depois do /y/, palavras hispânicas como “ley”, e outras minúcias assim.
As ambiguidades e autonegações que Caetano Veloso mostra em Verdade também aparecem, menos claras, no seu trabalho poético, mas não o empanam, e ele demonstra muitas outras qualidades que o superam, e é sobre elas que vou falar nas análises. A duplicidade constitui mesmo algo muito característico de seu estilo e de seu modo de pensar, que é barroco como só ele sabe ser, um novo tipo de barroco, como se Caetano fosse uma flecha que a natureza manda a nosso tempo (expressão de Nietzsche sobre o filósofo), com um novo equilíbrio entre a razão ordenada e a consciência plural: Caetano é o Dioniso apolíneo, ou, utilizando suas próprias palavras, um “cosmético caótico”. Ele confessa com frequência em seus depoimentos se sentir um artista polivalente, ou simplesmente artista, que poderia escolher qualquer meio de expressão, cinema, literatura, artes plásticas, ou a música, quase que por acaso:
Tenho vontade de fazer outras coisas. Fico com um pouco… querendo parar toda hora, porque quero pensar pra ver se faço outras coisas, porque continua aquele sentimentozinho com o qual vim pra Salvador com 18 anos. Um sentimento de que eu quero fazer um negócio, mas não sei exatamente o que é, em arte. Não sei se escrevo, se toco, se pinto, se faço filme… E continuo fazendo música. Mas não me sinto insatisfeito não, sacumé? Do ponto de vista da criação. /…/ Acho que eu podia botar uma tabuleta na porta, assim: faz-se arte. E a pessoa batia, era só eu treinar pintura, era só eu ter tempo e organização pra treinar todos esses meios, me treinar em todos esses meios e eu conseguiria fazer, bastando que houvesse um estímulo no sentido de fazer o quê e como, em que direção.
(Alegria, alegria, pp. 116-7 e 186)
Subentende-se que seu desejo de teorizar está vinculado a tal característica, seria uma parte de sua face literária, o que é interessante, e ao mesmo tempo intrigante. Desde Wagner que se instituiu o mito do artista total, que no século passado ganhou o apelido de multimídia (que usa muitos meios de expressão). Gesamtkunstwerk tornando-se assim Weltanschauung (a obra de arte total é visão do mundo). Por outro lado, a escolha de uma forma de expressão artística é a seleção de um material privilegiado com o qual vamos trabalhar, uma matéria sensível, e a ereção de uma sensibilidade no convívio com esse material; no caso de Caetano, é a melodia e, principalmente, a palavra melódica e rítmica, cantada e falada.
O homem dos sete instrumentos só toca bem um. Ou, segundo Paulo Coelho (citando sua avó), forno aberto não assa. Talvez uns poucos possam ser bons em tudo, mas o artista que cuida da arte como um dedicado lavrador que ama o campo e o cultiva com carinho e atenção cotidiana até que ele dê frutos, o alquimista que tem por lema uma só matéria, um só forno, uma só obra, são a melhor expressão do amor incondicional que o artista pode sentir e demonstrar por sua arte. E é nesse sentido que se vê o valor do trabalho poético de Caetano Veloso, uma borboleta dedicada em exclusivo à crisálida, que volta todas as luzes do iluminismo dos livros, filmes, quadros etc. para a poesia, como o crisólogo que estuda o ouro e no ouro a evolução do ser, a sua própria melhoria. A arte é para Caetano o que ele mesmo refere em “Desde que o samba é samba” (Tropicália 2) como “o grande poder transformador”. Ou Caetano não vê que quando atua, faz filme, escreve, desenha, pinta e borda, o seu tema e a sua matéria e até a sua técnica é sempre a música/canto, e é (quase que) só da música popular que ele fala? Os livros trazem nomes musicais; Alegria, alegria, título oriundo da sua canção, que por sua vez, provém do samba “Alegria”, de Assis Valente, e de um slogan de Wilson Simonal, repetido por Chacrinha; Verdade tropical é referência ao bolero “Vereda tropical”, de Gonzalo Curiel (sintagma que dá título a uma seção do livro). Mesmo nos filmes: o que dirigiu, por exemplo, cujo título, O Cinema falado, é citação da música “Não tem tradução”, de Noel Rosa (à qual já havia aludido na “Festa imodesta”, canção que também parodia a mesma “Alegria” citada). N’O demiurgo, Londres, 1970, de Jorge Mautner, Caetano desempenha o papel-título, um poeta demiurgo, aprendiz de filósofo, que canta e toca violão. É significativa a semelhança sonora, meramente casual, entre o título do filme e o do primeiro lp de Caetano, Domingo. Em Tabu, de 1984, interpreta Lamartine Babo, e canta músicas tanto do antigo compositor quanto suas, frevos e marchinhas carnavalescas, como se fossem também de Lamartine (ou como se Lamartine fosse também Caetano Veloso). Depois, 1989, participou de Os sermões – a história de Antonio Vieira, no qual faz o papel de Gregório de Matos Guerra, e canta “Triste Bahia”, que ele compôs no exílio, com versos do Boca do Inferno – de novo a identificação poética entre Caetano e o personagem que encarna, no caso um poeta que construía violões e cantava seus poemas como canções, pelos bares e bordéis do Brasil colônia. Já em O mandarim (este e os dois filmes precedentes são de Júlio Bressane), 1995, que, para narrar poeticamente a vida de Mario Reis, conta com vários cantores como intérpretes de outros cantores e compositores da “velha guarda” da mpb, Caetano Veloso é o único que representa a si mesmo, como um artista jovem, no início de carreira. E há muitas coisas geniais, como o personagem vivido por Caetano se dizer orgulhoso de ter feito parceria com Sinhô, que no filme é representado por Gilberto Gil, o grande parceiro de Caetano, ele mesmo (ainda atuou nos filmes Os herdeiros, de Cacá Diegues, A porta da colina do nada, de Cláudio Prado e Gilberto Gil, em 16 mm, e Nova onda, de Caio Martins e José Antonio Garcia, além de várias outras participações, das quais falaremos).
E toda vez que canta, Caetano é também um ator.
Quando se faz letra de música, a “palavra” fica meio objeto. Então, pensando de fora, eu diria que é um cinema de imagens interiores, em outra dimensão, que transcende a ideia de se ter uma película, um diretor, uma câmera e o Victor Mature representando. A gente usa a palavra como objeto, mas sem perder de vista o sentido.
(Amiga, 12/12/79)
Caetano se interessa muito por cinema, e procura fazer letras cinematográficas; além de citar filmes nas canções, escreveu crítica de cinema na juventude, compôs as canções “Cinema Olympia” e “Cinema novo”, e fez os discos Cinema transcendental e Omaggio a Federico e Giulietta, relembrando o diretor de cinema italino e sua esposa. Desde o início da década de 60, o jovem Caetano já escrevia crítica de cinema em sua cidade natal, e foi evoluindo no seu trabalho de crítico de cinema; no episódio da proibição do filme Je vous salue Marie, durante o ano de 1986, no governo Sarney, escreveu em defesa da obra a sua mais bela e informada análise, “Fora de toda Lógica”, Folha de São Paulo, 02/03/1986.
Muito já se tratou sobre esses assuntos, e poderia parecer não necessária mais uma leitura (se bem que mais uma leitura é sempre necessária); por outro lado, ouvindo suas canções desde criança, e com elas sempre sentindo prazer e aprendendo, há bastante tempo quero escrever um trabalho que dê conta da minha visão da poesia de Caetano Veloso. E é o que pretendo fazer aqui. Não é um esforço de pesquisa, ou jornalístico, ou mesmo ciência da literatura aplicada, não se dá o caso de localizar influências ou confluências de leituras ou de comprovar o que penso, para além do próprio verso sobre o qual me debruço. Ou talvez seja tudo isso. E mais. É minha forma de ouvir suas canções que eu transformo em texto, para poder compartilhar com outros que queiram lê-lo e ouvi-las.
Vou dividir os capítulos pelos títulos dos discos (mas não todos) cujas canções (algumas, dele) vou analisar. É a leitura das letras (levando em conta melodias e arranjos, às vezes), feita de uma maneira “monolítica” (pois assim como Caetano vê o livro de Agrippino, eu ouço sua obra como um imenso monólito), vistas todas como partes de um mesmo discurso que ele e eu produzimos quando o ouço, em suas várias facetas.
À pergunta: quem é Caetano?, vou dar a minha resposta, tão fragmentária, plural, topológica, factual e fractal quanto a dele, talvez. Caetano criou um sistema complexo, cheio de ligações internas as mais inesperadas, como um rizoma (v. Deleuze e Guattari), como os buracos de minhoca que os astrônomos acreditam existerem no universo, interligando as regiões mais distantes umas com as outras. É uma obra redonda, interligada e plural. Meu trabalho aqui tenta dar conta de algumas ligações múltiplas que existem dentro do complexo emaranhado da estrutura de esfera complexa que é a sua poética protéica. Só uma mente muito potente e livre poderia sequer sonhar com o que ele realizou.
Pois é.
A obra musical de Caetano Veloso nos olha (e nós a olhamos) como o monólito misterioso do filme 2001 uma Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick, que não entendemos, não chamamos, não vimos de onde vem, ou para onde vai, não sabemos o que é, mas que nos faz evoluir.