O Olho do Ciclope

Livro - O Olho do Ciclope

Foi motivo de muito estranhamento por parte tanto do público quanto da crítica o inusitado recurso empregado por Oswald de Andrade (a princípio, nos romances-invenções, mas veremos que a coisa vai muito além) da “prosa cinematográfica”: simultaneísmo, imagismo, cortes, montagens, closes, diferentes velocidades, dança imagística das palavras. É todo um “cinema transcendental” que faz de Oswald de Andrade um cineasta virtual, que, consciente disto, escreveu no Manifesto Antropófago: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.”.

Oswald cria e povoa sua obra com esta criação: a máquina-imagem textual, que é desterritorilizadora, descentralizadora. Ela projeta sua luz de cinema na pele do leitor como se esta fosse o écran, tatuando-a caleidoscopicamente com imagens e cores que dançam, com fusões, fades, plongées etc. – uma textualidade de cortes, fragmentos, superposições e montagens – agenciamento maquínico leitor/texto que produz o cinema invisível.

Não sem razão criou Oswald de Andrade a sua máquina-imagem-textual: assim como, contra a linearidade literária ocidental, Mallarmé fez o seu Un Coup de DésJjamais n’Abolira le Hasard (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso), Joyce o seu Finnegans Wake e Pound seus The Cantos. Também foi contra a linearidade (estatal) historiográfica hegeliana; do mesmo modo que Nietzsche criou o seu teatro filosófico e Deleuze (com Bergson) a sua filosofia cinematográfica – que investiga as imagens-cristais do tempo puro transcendental – e de agenciamentos.

No caso de Oswald de Andrade, ele mesmo fornece a melhor teoria para o entendimento do seu próprio texto: a antropofagia. E este conceito pode e deve ser entendido de uma maneira ainda mais radical do que apenas a circunscrita por certos lugares-comuns mais freqüentes da crítica: procedimento estético de assimilação do outro etc. Pois, por uma nova noção de tempo, uma nova sensibilidade, uma nova percepção e uma nova mente, pode-se entender a antropofagia, através da produção da máquina-imagem-textual, como um movimento transpsíquico, que visa à superação necessária e urgente das atuais (dominadas por fantasmas e “paixões tristes”, no dizer de Espinosa). E assim, se ilumina a alusão à imagem alquímica do Ouroboros, feita há pouco, que sugere a autoantropofagia proposta pela máquina-imagem de Oswald de Andrade. O problema central é a máqu ina-texto entendida como um cristal literário, que age da mesma maneira que a imagem-tempo no cinema. A obra de Oswald de Andrade é estudada como uma das mais bem realizadas produções da máquina-texto, mas não a única.

A virtualidade cinematográfica da literatura, a pujança potencial do roteiro, que estão presentes na obra/pensamento/vida de OA, constituem a proposta de toda uma nova relação do ser humano e da sociedade com a arte e com o pensamento. Aqui os leitmotivs da obra aberta do workinprogress retornam com toda a força e um novo ímpeto de originalidade, apresentando, como na música e no cinema, motivos que se abrem em n possibilidades, como buquês de universos paralelos liberados pela arte.

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