O OLHO DO CICLOPE

O olho não é a câmara é a tela.

Gilles Deleuze

São Paulo, 1990. Um caosmos de carros, cores, medos, berros, bares, edifícios, pessoas passando correndo sem olhar à volta. Acima de tudo um céu do mais puro azul de abril. Pelos muros, pelas paredes dos prédios, nas praças, nos viadutos, grafites coloridas saídas da mistura veloz das margens da cidade com imagens dos mass media, e senhas de sonhos e pesadelos dos dédalos da mente de cada habitante do labirinto, ícaro em potência.

Ouroboros salta veloz da folha da revista[1]:

Tínhamos ido a SP para procurar um signo duplo: para o aprendizado da vida, e para a feitura da obra. Dupli/cidade que se dobra e também come (ou ejeta pela boca?) a própria cauda: vida/obra-obra/vida.

São Paulo: 1992. Tínhamos esquecido de procurar por signos, e fomos viajar pelo prazer da viagem, pelo desafio do novo, pela esperança em um congresso de filosofia. Como a sombra de um aliado à volta de uma fogueira, rondava-nos a lembrança das reveladoras e potencializadoras viagens dos aprendizes, às vezes beatniks, sempre easy riders: Henry Miller, Jack Kerouac, Carlos Castaneda.

Desiludidos do congresso, dominado pelo senso comum e pelo horror ao pensamento e ao novo, decidimos vagar sem rumo pela cidade e depois voltar para casa. Foi quando tivemos o encontro inesperado que mudou rumos e redefiniu o destino e o sentido da obra: ao entrar na estação de metrô da Praça da República vimos o fantasma de Oswald de Andrade, debochado, gozador e carnal, apesar de tão etéreo. Não era uma pintura na parede; não era um homem de carne e osso. Era uma imagem holográfica que se projetava fantasticamente no ar, ali, na estação, à nossa frente.

O truque: a imagem aberta e deformada em cone é pintada no teto, enquanto que um cilindro grande de metal perpendicular a ela a reflete, compondo-a como imagem direita, que parece estar fora do cilindro, flutuando viva e tridimensional em pleno ar.

As pistas: o inesperado, a imagem, o tempo, Oswald de Andrade, o mágico e o pensamento.

Em 1922, no ano da Semana de Arte Moderna, a cidade contava com 14 cinemas, com sessões diárias às 19h30min e geralmente três filmes no programa.

/…/ Havia seis teatros na cidade. O principal deles, o Teatro Municipal, que iria abrigar os eventos da Semana, não tinha programação regular. /…/

Os jovens intelectuais modernistas tinham também seu circuito /…/ fundamentalmente na região central, no chamado Triângulo Modernista e que compreendia as ruas Direita, São Bento e 15 de Novembro. Aí se localizavam os cafés Papagaio, Brandão e Guarani, onde os jovens se reuniam para as animadas discussões; a Livraria Garraux, onde se encontravam alguns livros importados; as redações do Jornal do Comércio e da Gazeta, onde muitos intelectuais trabalhavam. Na Rua Líbero Badaró, também no centro, ficava a garçonnière de Oswald de Andrade. /…/ Também nessa rua, no n° 111, foi inaugurada em 1917 a primeira e polêmica exposição da artista plástica Anita Malfatti. [2]

Escrevi O Olho do Ciclope como tese de doutorado em Ciência da Literatura (Teoria Literária) na Faculdade de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: entre os anos de 1993 e 1997, quando fiz a sua defesa. Entre 2000 e 2005 refundi o texto, agora transformado em livro. Entre 1989 e 2004 escrevi e recheei Proteu ou a arte das transmutações; leituras audições e visões da obra de Jorge Mautner. Nos anos de 2003, 2004, escrevi Crisólogo o estudante de poesia Caetano Veloso. Estas duas obras foram publicadas pela HP Comunicação, 2004. Quero aproveitar aqui e agradecer ao professor que marcou meu pensamento para sempre, me encheu de força e amor ao ensino e à filosofia: Cláudio Ulpiano; e aos meus orientadores de doutorado, Ana Maria Alencar, e mestrado, André Luís de Lima Bueno, que tanto contribuíram para a realização deste livro.

O tema principal de O Olho do Ciclope é a antropofagia como pensamento transtemporal que surge nas práticas xamânicas e guerreiras dos povos das florestas da América do Sul, e que vai ser retomado por pensadores brasileiros do século XX, e até mesmo antes disto, nas epopeias de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, no indigenismo romântico de Gonçalves Dias e José de Alencar e no profetismo da inclassificável obra de Sousândrade. Tento mostrar neste livro que a “antropofagia” é a fase mais bem definida de um processo sem nome, que acompanha Oswald de Andrade em toda sua vida e obra[3], desde a poesia pau-brasil e das ligações do primeiro modernismo e a antropofagia revelada por sua mulher Tarsila do Amaral (autora da capa e dos desenhos de Le Formose, Paris, 1924, de Blaise Cendrars e de Poesia Pau-Brasil, de Oswald, e ainda do quadro Abaporu[4], o selvagem come-homem), passando pela primeira antropofagia negadora (quando a única alternativa ao burguês parecia ser o boêmio e ele decidiu ser clown da burguesia, conforme conta no prefácio de Serafim Ponte Grande), pela religião, pelo comunismo (a projetada Escada de Jacó é anunciada como A Escada Vermelha, para depois se tornar simplesmente A Escada), pela negação da camisa-de-força stalinista, a separação de Pagu e o rompimento com o partido, até sua última fase, quando “reencontra” seu início (Ouroboros), sua mãe rediviva em Maria Antonieta D’Alkmin e sua volta à antropofagia, agora como cosmovisão e ética/poética.

Tudo em OA me parece antropofágico neste sentido, pois o que ele finalmente denominou de antropofagia na verdade é, como mostrarei ao longo deste trabalho, uma nova visão do mundo e do homem, para além da política do século XX, uma nova humanidade ou a síntese do super-homem pela dobra das tradições estatais e nômades que se propõem no Brasil, como herdeiro vivo de ambas.

OA é o homem que descobriu o Brasil, e, além disto, redescobriu o Brasil, em Pau-Brasil (1925), o livro; sua tese sobre o matriarcado, sua prosa cubo-futurista, sua preciosa poesia – rara, única, no cenário nacional, mais blasé e mais prosaico, onde ela ou passa desapercebida ou é odiada e ridicularizada, “poema piada” na opinião-piada de críticos-piada, que não entenderam a piada – fazem dele, além de um dos grandes fundadores da literatura brasileira, o primeiro pensador sério da diferença e da memória virtual entre nós, um rigoroso artista-pensador nietzscheano em meio a nossa melancólica tradição filosófica.

Oswald formulou o termo e o conceito, escreveu manifestos, teoria literária e filosofia para fundamentar o que ele via como uma saudável prática antiestatal que era retomada agora, no modernismo, no nível da consciência humana, que é também física. Neste sentido ele não se julgava o “dono” da antropofagia, e sim muito mais o seu arauto, teórico e praticante. E é neste sentido também que há séries antropofágicas trans-pessoais, como O Guesa (Sousândrade), Memórias Sentimentais de João Miramar (Oswald), Macunaíma (Mário de Andrade), Serafim Ponte Grande (OA), O Manuscrito Holandês (Manuel Cavalcanti Proença), Maíra, Utopia Selvagem (Darcy Ribeiro) e Vencecavalo e o outro povo (João Ubaldo Ribeiro)[5] etc. Sem diminuir a importância e a diferença da obra de cada um de seus autores, as séries antropofágicas se ligam como uma grande obra do povo brasileiro, ou até mesmo do povo nômade, muito além de uma tradição de nossa literatura, intertextualidade ou influência. Trata-se aí de uma revolução, uma sublevação em que pensadores tupis e de outras trezentas e tantas nações autóctones, que viviam no que veio a ser o Brasil, quando da chegada dos europeus, trazem as suas vozes para o presente, e vão se apropriar e aculturar os membros da civilização mestiça para a causa pré-cabralina, o matricarcado de Pindorama, se agenciando com o futuro e investindo na “contribuição milionária de todos os erros”.

No ensaio “Metamorfoses das Metamorfoses”, Augusto de Campos denuncia o caráter cinematrográfico do poema de Ovídio, todo dominado por cortes, fugas, fusões, imagens e transformações[6]. Note-se aí o poeteorético brasileiro associando três coisas muito afastadas e diferentes, cada uma delas a cada uma das outras duas, como um diagrama tridimensional:

cinema

 

 

 

 

literatura                                 metamorfose

Cinema antigo?

Cinematográfico era o mundo de Epicuro e Lucrécio, um mundo televisivo, onde os corpos emanam simulacros de suas formas, nos átomos que não param de emitir, e que são captados pelo olho, que toca os átomos e assim vê[7]. E antes: na caverna do mito de Platão, as almas escravas dos homens comuns são condenadas à ignorância de assistir a um filme sem fim, que dura todas suas vidas, olhando imagens que se projetam numa tela, “delirando”, em sua ignorante racionalidade, que o que veem ali é real[8]. E antes disto: o teatro de sombras chinês; um cinema de silhuetas de sombras recortadas na luz. Ou ainda a técnica de projetar ilusões com as sombras das mãos, que está na Antiguidade, mas também na infância de todos, nas noites iluminadas à vela, quando as mãos se tornam Proteu e assumem todas as formas que se podem imaginar. O que seria para um homem pré-histórico e pré-escrita olhar os movimentos de perseguição e fuga dos caçadores paleolíticos e dos animais ferozes, ali à sua frente, magicamente revelados, reduzidos e coloridos, animados pela cambiante luz de uma fogueira projetada na parede da caverna?[9]

O cinema não seria então apenas a máquina cinematógrafo, inventada no ano de 1895 pelos irmãos Lumière, com uma pequena ajuda dos seus amigos (a primeira sala de projeção do mundo foi inaugurada em Pittsburg, 1905, com o nome de Nickelodeon). O cinema é a própria luz, a própria arte de criar formas, ideias e figuras de luz. A luz feita de tempo – o tempo feito de luz. O cinema é um agenciamento maquínico, que ultrapassa o sentido tradicional de máquina e se relaciona com a cibernética, que estuda sistemas de informação nos vivos e nas máquinas. O agenciamento maquínico é uma ligação entre várias partes que podem ser órgãos do corpo humano, como o seio e a boca que suga, ou partes humanas e partes inumanas, como a mão e o martelo; criam-se cadeias que trabalham como máquinas, cortando fluxos; e toda máquina, seja ela biológica, social, psíquica ou industrial trabalha com fluxos e cortes de fluxos.

O homem já lidava com o cinema muito antes de explicitá-lo como uma forma de documento, de arte ou de indústria. A pré-história de muitos cineastas atuais mostra a reprodução em escala do mesmo lento processo pelo qual a imagem do cinema vai tomando forma e ganhando corpo. Vejamos um exemplo na infância de Glauber Rocha, como nos relata José Carlos Avellar.

Os primeiros filmes de Glauber Rocha, costuma dizer D. Lúcia, mãe do cineasta, não foram nenhum destes que ele realmente filmou e apresentou nos cinemas, mas sim os que desenhou quando tinha apenas nove ou dez anos nas bobinas de papel da máquina registradora da loja O Adamastor – que ainda hoje existe na rua Chile, em Salvador. Ela conta que, intrigada com o frequente sumiço das bobinas, acabou descobrindo que elas estavam se transformando em fita de cinema de brinquedo. Ela se lembra bem de um desses filmes: chamava-se “Faroeste na Bahia”, desenhado quadrinho por quadrinho na bobina de papel apenas um pouco mais larga que um filme de 35 mm, e depois “projetado” para as outras crianças com quem Glauber costumava brincar de cinema. Todo mundo sentado que nem espectador para ver “um filme de bangbang”, ele desenrolava a fita e preenchia os desenhos com: falas, gritos, imitação do ruído dos tiros, imitação do barulho das patas de cavalo.[10]

Ou ainda de não cineastas oficiais, como Chico Buarque:

Desde garoto eu fazia estas coisas. Eu fazia “filmes”, histórias em quadrinhos onde cada quadro era do tamanho da “tela” de uma caixa de sapatos. Eu pegava dois lápis, ia enrolando e o filme ia passando. Eu fazia os créditos, no começo. Tinha atores que apareciam em vários filmes. Tinha um tal de John Rivers que era um grande caubói, a grande estrela da minha “produtora”.[11]

E é por intuir que o cinema é um agenciamento maquínico que muitos cineastas, na impossibilidade de filmar tudo que querem, escrevem roteiros e mais roteiros, na esperança de filmá-los, mas que podem restar sempre como “filmes de papel”[12]

E se esta via tiver duas mãos? Se fazer um filme pode ser sonhá-lo, imaginá-lo, sugeri-lo de algum modo, eventualmente projetando-o numa tela, em uma sala escura, mas nem sempre; não seria possível entender com uma radicalidade e realidade totais a assertiva de Augusto de Campos acerca das Metamorfoses, ou a especulação de Haroldo de Campos a respeito da “prosa cinematográfica” de Oswald de Andrade[13]? Eis aqui a nascente deste estudo: o encontro das três linhas divergentes litera/cine-imagem/trans-formações dá-se na obra de Oswald de Andrade? É ela cinematográfica (enquanto agenciamento maquínico)? Até que ponto? Há aí, dentro deste devir cine-mato-gráfico (imagem-movimento, ou quiçá imagem-tempo), uma originalidade, dentro de nossa tradição literária? Qual a importância de uma obra como a de Oswald de Andrade para um país como o Brasil? Seria sua obra datada historicamente, situada entre os experimentalismos das vanguardas literárias e artísticas europeias e os eventos históricos, as revoluções, as guerras e a tensão capitalismo/socialismos do século XX? Ou estariam os romances, poemas, peças de teatro, manifestos, crônicas e ensaios de Oswald de Andrade para além desses eventos e dessas problemáticas, questionando profundamente o sem sentido da História ou das histórias, mapeando enunciados e acontecimentos com as suas diferenças de intensidade, suas coordenadas topológicas (e a partir daí se entenderiam as tão gritantes desigualdades entre suas peças de teatro, ou ainda entre suas três séries de romances, por exemplo), localizações de latitude e longitude, relações espaciais, estranhas ligações que incrustam e encravam tensões e intensidades no corpo expressivo do autor (e que bobagem dizê-lo dele, pois o corpo expressivo é aquele que transborda às determinações humanas).

Praticamente a qualquer página que se leia de Oswald de Andrade ressaltam múltiplas citações históricas; seus livros se ligam à história, isto é certo. Mas a qual história? – eis o problema. A história de Hegel, Engels e Marx? Ou a cartografia de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari?

Contra a história de Hegel, seu espírito absoluto e o pseudo-movimento conceitual da dialética – o teatro de Kirkegaard ou o trágico de Nietzsche, a repetição que liberta, a diferença produzida pela vontade de potência e pelo eterno retorno – ou o cinema de Deleuze (agenciado com o pensamento de Henri Bergson), a imagem-cristal, a imagem-tempo, o tempo puro, complicado e eterno – o eterno retorna.

Em Cinema I A imagem-movimento e Cinema II A imagem-tempo Gilles Deleuze formula sua teoria de que há um tipo de cinema, dito cinema de vidente, que liberta a essência da percepção (perceptos) pela imagem-tempo capaz de filtrar a luz do tempo puro; imagens cristalinas, em oposição às imagens opacas que refletem o mundo humano e social das ações musculares, orgânicas e interessadas. Diz Deleuze:

O cristal revela uma imagem-tempo direta, e não mais uma imagem indireta do tempo, que decorresse do movimento. Ele não abstrai o tempo, faz melhor, reverte sua subordinação em relação ao movimento. O cristal é como um ratio cognoscendi do tempo, e o tempo, inversamente, é ratio essendi. O que o cristal revela ou faz ver é o fundamento oculto do tempo, quer dizer, sua diferenciação em dois jorros, o dos presentes que passam e o dos passados que se conservam. De uma só vez o tempo faz passar o presente e conserva em si o passado. Há portanto duas imagens-tempo possíveis, uma fundada no passado, outra fundada no presente. Ambas são complexas e valem para o conjunto do tempo[14].

O cristal do tempo liberta a percepção do esquema sensório-motor, que é a percepção e a reação imediata, interessada, que domina o vivo engajado na autodefesa, na alimentação etc. Lemos em Bergson:

Há portanto, enfim, tons diferentes de vida mental, e nossa vida psicológica pode se manifestar em alturas diferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação, conforme o grau de nossa atenção à vida. /…/ O que se toma ordinariamente por uma maior complicação do estado psicológico revela-se, de nosso ponto de vista, como uma maior dilatação de nossa personalidade inteira que, normalmente restringida pela ação, revela-se tanto mais quanto se afrouxa o torno no qual ela se deixa comprimir e, sempre indivisa, espalha-se sobre uma superfície tanto mais considerável. /…/[15]

Outro conceito deleuziano que se tem que esclarecer é o de corpo expressivo, que é o corpo não subsumido às necessidades orgânicas, totalmente ligado com a expressão de essências ou de mundos possíveis. Este conceito está próximo de Corpo sem Órgãos (CsO), que aparece na obra de Deleuze e Guattari. CsO são as forças virtuais que não podemos perceber normalmente, e que constituem o vivo enquanto corpo energético. É o inconsciente físico, real, sem representação nem simbolismo. Sobre o CsO o corpo conhecido rasteja como um verme sobre a superfície da terra. A esquizofrenia não-patológica, que não se deixou dominar e transformar em doença pelos poderes psiquiátricos, faz experimentações com o corpo energético que partilhamos mas não percebemos, por condicionamento social, medo e comodismo.  Obras como a de Antonin Artaud e Francis Bacon, o pintor, são experimentações com o CsO, são linhas de fuga, devires do vivo, viagens e transformações reais, estados alterados, vários modos ou graus da potência da natureza – e não simples delírio, jogo imaginário ou simbólico[16]. Aliás, Deleuze diz que não existe simbólico nem imaginário – só existe o real, e tudo que existe é real.

Quanto à tensão cinema x história, teríamos de um lado uma concepção pós-moderna dos relatos, como o faz Jean-François Lyotard no livro O Pós-moderno, sempre multiplicando sentidos, montados e relidos, refeitos, eterna decupagem de leituras sobre leituras, todas políticas, cheias de vetores de força com sentido e direção, mas plurais, onde falam as minorias e as margens. Do outro lado temos os hegelianos como Habermas, que polemiza com Lyotard, defendendo a história como um todo significativo, texto privilegiado que determina o sentido e a direção dos movimentos sociais segundo parâmetros pré-estabelecidos, que valeriam sempre, mesmo quando investidos pelo movimento (aparente) da dialética. Os dois processos atuam por montagem: em um caso, montagens plurais, coletivas, em que várias forças diferentes se expressam. No outro caso uma montagem ideal, que faz calar as vozes (aparentemente ou não) dissonantes.

Dois procedimentos: a história e a dialética de um lado, e, de outro, o cinema e a expressão.

Foi motivo de muito estranhamento por parte tanto do público quanto da crítica o inusitado recurso empregado por Oswald de Andrade (a princípio, nos romances-invenções, mas veremos que a coisa vai muito além) da “prosa cinematográfica”: simultaneísmo, imagismo, cortes, montagens, closes, diferentes velocidades, dança imagística das palavras. É todo um “cinema transcendental” que faz de Oswald de Andrade um cineasta virtual, que, consciente disto, escreveu no Manifesto Antropófago: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.”[17]

Oswald cria e povoa sua obra com esta criação: a máquina-imagem textual, que é desterritorilizadora, descentralizadora. Ela projeta sua luz de cinema na pele do leitor como se esta fosse o écran, tatuando-a caleidoscopicamente com imagens e cores que dançam, com fusões, fades, plongées etc. – uma textualidade de cortes, fragmentos, superposições e montagens – agenciamento maquínico leitor/texto que produz o cinema invisível.

Em entrevista intitulada “Signos e acontecimentos”, concedida a Raymond Bellour e François Ewald, Deleuze afirma:

O que me interessa no cinema é que o écran possa ser um cérebro, como no cinema de Resnais ou de Syberberg. O cinema não procede unicamente com encadeamentos por cortes racionais, mas com desencadeamentos sobre cortes irracionais: não é a mesma imagem do pensamento. O que havia de interessante no início dos vídeos era a impressão que alguns davam de operar por conexões e hiatos que não eram mais os da véspera, mas também não os do sonho nem mesmo do pesadelo. Um instante, e eles afloraram qualquer coisa que estava no pensamento. É tudo o que quero dizer: uma imagem secreta do pensamento inspira pelos seus desenvolvimentos, bifurcações e mutações a necessidade constante de criar novos conceitos, não em função de um determinismo externo mas em função de um devir que leva consigo os próprios problemas.[18]

Não sem razão criou Oswald de Andrade a sua máquina-imagem-textual: assim como, contra a linearidade literária ocidental, Mallarmé fez o seu Un Coup de DésJjamais n’Abolira le Hasard (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso), Joyce o seu Finnegans Wake e Pound seus The Cantos. Também foi contra a linearidade (estatal) historiográfica hegeliana; do mesmo modo que Nietzsche criou o seu teatro filosófico e Deleuze (com Bergson) a sua filosofia cinematográfica – que investiga as imagens-cristais do tempo puro transcendental – e de agenciamentos.

No caso de Oswald de Andrade, ele mesmo fornece a melhor teoria para o entendimento do seu próprio texto: a antropofagia. E este conceito pode e deve ser entendido de uma maneira ainda mais radical do que apenas a circunscrita por certos lugares-comuns mais frequentes da crítica: procedimento estético de assimilação do outro etc. Pois, por uma nova noção de tempo, uma nova sensibilidade, uma nova percepção e uma nova mente, pode-se entender a antropofagia, através da produção da máquina-imagem-textual, como um movimento transpsíquico, que visa à superação necessária e urgente das atuais (dominadas por fantasmas e “paixões tristes”, no dizer de Espinosa[19]). E assim, se ilumina a alusão à imagem alquímica do Ouroboros, feita há pouco, que sugere a autoantropofagia proposta pela máquina-imagem de Oswald de Andrade. O problema central é a máquina-texto entendida como um cristal literário, que age da mesma maneira que a imagem-tempo no cinema. A obra de Oswald de Andrade é estudada como uma das mais bem realizadas produções da máquina-texto, mas não a única.

A virtualidade cinematográfica da literatura, a pujança potencial do roteiro, que estão presentes na obra/pensamento/vida de OA, constituem a proposta de toda uma nova relação do ser humano e da sociedade com a arte e com o pensamento. Aqui os leitmotivs da obra aberta do work in progress[20] retornam com toda a força e um novo ímpeto de originalidade, apresentando, como na música e no cinema, motivos que se abrem em n possibilidades, como buquês de universos paralelos liberados pela arte. Vejamos um exemplo em Glauber Rocha, que escreve, em carta a um amigo, a respeito da projetada edição dos roteiros de seus filmes reunidos sob a forma de livro:

/…/ Gostaria de publicar estes roteiros num só volume – de umas 300 páginas – sob o título geral de “Roteiros do Terceyro Mundo” porque estes 8 filmes são referentes ao III Mundo e marcam uma fase de meu trabalho. Se isto for possível – depois acertaremos por carta ou telefone detalhes da edição. A edição seria bom /sic/ para preservar a base literária dos filmes – pois estes roteiros podem ser refilmados + televisionados + montados em teatro e ainda funcionam como romances ou novelas etc… Não sei quanto tempo fico pela Europa mas quero me demorar. Telefone-me quando receber esta carta para eu saber se este material chegou. Abração! Glauber[21]

Por isto, em um desdobramento necessário, cumpre mostrar que a antropofagia tem três dimensões: físico-ontológica, ética-política e estético-poética. E que elas não param de se desdobrar e multiplicar, em um efeito cascata, em criadores que seguiram a Oswald, novos ciclopes – gigantes, antropófagos, com um único olho – representando aqui a univocidade da imagem-cristal e da máquina-imagem oswaldiana.

O Olho do Ciclope pretende contribuir para uma pesquisa rizomática e genealógica do panorama antropofágico cinematótico da arte e do pensamento brasileiros.

 

 

 

Mas – por que antropofagia?



[1] DIEGUEZ, Flávio.  “A Mecânica do Universo – A semelhança das forças fundamentais revela a profunda harmonia que mesmo os antigos já percebiam no Cosmo. O trabalho da física é tentar entender melhor essa harmonia.” Revista Ciência Ilustrada, São Paulo: Abril Cultural, n° 16, Janeiro de 1984, p. 12-14: “O físico americano Sheldon Glashow usou um antigo símbolo cosmológico – a serpente – para ilustrar as distâncias características das forças fundamentais. A gravidade age em qualquer escala, mas é dominante em coisas grandes como as galáxias. Em objetos como as montanhas, a força eletromagnética se torna importante. No núcleo atômico, as forças nucleares, fraca e forte, dominam. Nessa região atuam as partículas W e Z. As distâncias estão em centímetros. Acima de 10– 30 cm todas as forças se tornam equivalentes.”

[2] ALEMBERT, Francisco. A semana de 22, p. 24 e 25. Ficamos hospedados na rua Líbero Badaró na primeira vez que fomos a São Paulo: 1990.

[3] Ver cronologia de OA, anexo constante desta leitura.

[4] Desde algum tempo, Tarsila e Oswald de Andrade vinham entretendo um romance, que acabou em casamento no ano de 1926, verificando-se uma junção de propósitos com o início do Movimento Antropofágico.

Foi então que surgiu o seu mais famoso quadro, o Abaporu, famoso e valioso, pois em um leilão realizado em 1995, nos Estados Unidos, foi arrematado por cerca de um milhão e meio de dólares!

Tarsila pintou o Abaporu para impressionar Oswald. A intenção era criar um ser antropófago e o nome saiu mesmo de um dicionário de tupi-guarani. Não esperava, porém, tamanho impacto. Chamado por Tarsila, Oswald vai ao ateliê nos Campos Elísios e, ao ver o quadro, exclama: «Mas o que é isso ?!» De imediato, telefonou ao amigo Raul Bopp, pedindo-lhe que viesse sem mais demora. É ela que conta:

«Bopp foi lá no meu ateliê, na rua Barão de Piracicaba, assustou-se também. Oswald disse: “Isso é como se fosse um selvagem, uma coisa do mato” e Bopp concordou. Eu quis dar um nome selvagem também ao quadro e dei Abaporu, palavras que encontrei no dicionário de Montoia, da língua dos índios. Quer dizer antropófago.» /…/ http://www.pitoresco.com.br/brasil/tarsila/tarsila.htm

[5] Alfredo BOSI in História Concisa da Literatura Brasileira inclui como complementos indispensáveis da antropofagia Macunaíma, Cobra Norato de Raul BOPP e Martim Cererê de Cassiano RICARDO, o que me parece bastante válido, diferentemente da visão de desqualificação que faz do pensamento de Oswald, numa linha de teoria sociológica que desentende três aspectos fundamentais de sua arte: a ontologia do pensamento (arte = vida e vice-versa), prática nômade antiestatal (saindo da dicotomia direita-esquerda) e sua positividade trágica (nietzscheana, afirmação da existência). Chega a ser patético ler coisas como “anarcóide” e “irracionalista” atribuídas a Oswald de Andrade (que como bom leitor de Nietzsche segue a proposta da super-razão como superação de uma razão mesquinha, tola, tolhida, rancorosa e regida pelo senso comum, como podemos ver fartamente na tradição da esquerda hegeliana, entre outras).

[6] CAMPOS, Augusto de. “Metamorfoses das Metamorfoses”, in Verso, reverso, controverso, p. 191-198.

[7] Apud DELEUZE, Gilles. “Lucrécio e o simulacro”, in Lógica do sentido, p. 273-286.

[8] PLATÃO. República, Livro VII, p. 253 e ss.

[9] V. SGANZERLA, Rogério. Por um Cinema sem Limite, p. 9 e ss;

O cinema – “arte das evidências enganosas”- nasceu com a criação do homem, quando este cedeu uma costela à mulher, evoluiu com o mito platônico da projeção da caverna, ao ampliar a imagem e semelhança divina na consciência ancestral que desembocou no teatro de sombras chinesas onde alcançou o seu esplendor criativo, influenciando-nos irremediavelmente.

[10] AVELLAR, José Carlos. “O desenhista”, in Glauber Rocha um leão ao meio-dia, catálogo da exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, p. 8.

[11] Bundas n° 53, 20 de junho de 2000, p. 43

[12] “Filmes de papel” é como Ely Azeredo chama, em reportagem de O Globo, edição de Domingo, 26 de junho de 1994, 2° caderno, p. 10,  roteiros que foram escritos mas não filmados. No caderno Mais! da Folha de São Paulo de Domingo, 27 de agosto de 1995, nas p. 8-11, o mesmo assunto é tratado por Sérgio Augusto, e são citados vários casos de filmes que não saíram do papel, e que recebem o nome de “cinema invisível”, tirado do livro de Christian Janicot, intitulado Anthologie du Cinéma Invisible (Arte/Editions Jean-Michel Place). Entre os autores de filmes invisíveis estão: Guillaume Apollinaire, André Gide, Vladimir Maiakovski, Antonin Artaud, Louis-Ferdinand Céline, Jean-Paul Sartre, Jean Cocteau, Gabrielle D’Annunzio, Cesare Pavese, Antoine de Saint-Exupéry, Paul Claudel, Romain Rolland, René Magritte, Alfred Doeblin, William Bourroughs, Blaise Cendrars, Isaac Babel, Boris Vian, Gertrude Stein, Joaquim Pedro de Andrade, Humberto Mauro, Mário Peixoto, Glauber etc. Quinze anos antes de ler a reportagem eu já usava a expressão.

[13] CAMPOS, Haroldo de. “Miramar na mira”, in Memórias sentimentais de João Miramar, p. xl-xli, “Prosa cinematográfica”. Vários outros exemplos de agenciamento maquínico vão-se descobrindo aos poucos, como o cinema de Camões d’Os Lusíadas apontado por Boris Schnaidermann e o de Gracialiano Ramos, percebido e explicitado em seu filme Vidas Secas por Nelson Pereira dos Santos.

[14] Idem, ibidem, p. 121.

[15] BERGSON, Henri. Matéria e memória, Prefácio da 7ª edição, p. 5.

[16] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O anti-Édipo.

[17] ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago, in Do Pau-brasil à Antropofagia e às Utopias, p. 15.

[18] DELEUZE, Gilles. “Signos e acontecimentos”, entrevista concedida a Raymond Bellour e François Exald, in ESCOBAR, Carlos Henrique (org.). Dossier Deleuze, p. 24.

[19] ESPINOSA, Baruch. Ética, Parte III, “Da origem e da natureza das afecções”, proposições I, III, IV, IX, XV, LI, LIV, LV, LVIII, p. 176-210; Parte IV, “Da servidão humana ou das forças das afecções”, p. 225 e ss.

[20] ECO, Umberto. Obra aberta, p. 37 e ss. Work in progress – expressão criada por James Joyce quando da publicação em parcelas de Finnegans wake na revista Transition a partir de 1923 (cf. CAMPOS,  Haroldo, “Miramar na mira”, op. cit., p. xiv).

[21] ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceyro Mundo, p. XVI.

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