O multimídia tropicar de Tom Zé

Publicado originalmente na Documenta Revista Acadêmica do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA, vol 1, 2008, p. 11-22.
Luis Carlos de Morais Junior

Já Tom Zé é dionisíaco como poucos ainda o são em todo o mundo: o tropicar de Tom Zé.

Tropicada = tropeção

Tropicar = tropeçar numerosas vezes

Tropeçavas nos astros – distraída (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa); desastrada (Caetano Veloso); tonta e zonza (Luís Carlos de Morais Junior)

Tonto e zonzo = Tom Zé.

Três figuras = Tom Zé faz vê e vice-ver(sa).

Necessariamente, não nessa ordem, e o Brasil está na vanguarda desse movimento bacana com os seus zés: Tom, Celso, Agrippino.

José Celso Martinez Corrêa, no programa da TV Cultura, falou que a cena no Brasil é tragicômica dionisíaca. E mostrou sem desprezo o quanto é desprezível o drama das novelas peças filmes que atraem públicos gigantescos e não produzem nada não trazem nada de novo não acontecem no sentido de serem um acontecimento. Dou ou não dou para fulano? “A vida é trágica. A qualquer momento posso cair morto. Mas isso é cômico”.

E Zé Celso lindo, rindo o tempo todo, encerra a entrevista gritando a plenos pulmões, a cabeça jogada pra trás e pra cima com infinito prazer: evoé, Baco!!!

Outra pessoa que, em si, ressoa é Hermeto Paschoal, o inventor musical, e não só por seus intrumentos feitos de tudo e qualquer coisa do mundo, as coisas possuindo sons produzindo sons e sendo sons, mas também pela relação de brincadeira e magia que estabelece com o som.

E Hermeto vai além da musicalidade das coisas, ele capta a musicalidade das pessoas quando canta ou toca com elas, quando faz coisas para elas ou com elas como instrumentos, como outros músicos ou participantes, ou colore mostra a cor de seu corpo energético com sons (“ninguém é desafinado; quando o sujeito pensa que está desafinando, ele está afinado”).

Ainda mais músico quando compõe na dupla trilha da melodia e da harmonia toda estruturada nos ritmos, e nisso tudo ele é um inventor, um grande músico novo do mundo. Mais uma coisa: ele compõe o tempo todo sem parar, faz livros em que escreve uma melodia por dia. Calendário do som é de 2000 e reúne 365 partituras manuscritas, “homenagem a todos os aniversariantes do mundo”, segundo ele mesmo declarou. Itiberê Zwarg, da bossa paulista, que tocou com Xangô Três e Bossa Jazz Trio, gravou com sua banda Itiberê Orquestra Família um CD duplo com o mesmo título, reunindo 27 composições do livro de Hermeto.

Lançado em 2005, o disco levou dois anos de ensaios, um ano de gravação e três meses de mixagem. Mas Hermeto poderia ser e compor, minuto a minuto, em tempo real o mapa que cobre todo o território milhas e milhas de seu sorriso smiles como quando Miles Davis lhe pediu uma música e ele mostrou uma nova na hora e outra e falou que poderia ficar a noite toda escrevendo, quer dizer tocando uma nova melodia harmonia toda estruturada em ritmos pra ele.

Hermeto, na década de 1960, fez o Quarteto Novo com Airto Moreira, conjunto que teria inflenciado o som dos Beatles.

Formado em 1966, este grupo instrumental paulistano foi criado originalmente com o nome de Trio Novo, composto por Théo de Barros (contrabaixo e violão), Heraldo do Monte (viola e guitarra) e Airto Moreira (bateria). Seu objetivo inicial era o de acompanhar o cantor e compositor Geraldo Vandré, durante uma série de shows da empresa Rhodia. Com a classificação de “Disparada” (Vandré/Théo) no II Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record (SP), o Trio Novo teve sua formação alterada para acompanhar Jair Rodrigues, que defendia a música naquele festival, por razões contratuais. O trio se apresentou então com Aires (viola), Manini (percussão) e Edgar Gianullo (violão). Mais tarde, com a adesão de Hermeto Paschoal, o trio passou a chamar-se Quarteto Novo, participando de diversos programas de TV paulistas, comandados por Vandré, na TV Record e na Bandeirantes. Em 1967, o grupo lançou um LP homônimo, pela Odeon, no qual realizava experimentalismos no gênero nordestino, rompendo com preconceitos vigentes com relação à música do Nordeste. Ainda no mesmo ano, o grupo acompanhou Edu Lobo em sua “Ponteio”, que tirou o primeiro lugar no III Festival da Canção. Dois anos depois de iniciado, o grupo se separou .

E ainda Raul Seixas. Esta é a relação mais difícil de compreender e explicar; no entanto, é muito importante, porque os dois estão para o Brasil, a música e o mundo como o mundo a música e o Brasil estão para eles.

Caldeirão. Panela. Cadinho. Athanor. Bruxos, todos. José Oswald de Souza Andrade, Joaquim de Sousa Andrade, Joaquim Pedro de Andrade, José Celso Martinez Corrêa, José Miguel Wisnik, Antonio José Santana Martins, Raul Santos Seixas.

Todos os olhos.

Nem o samba é totalmente brasileiro. Tudo é fruto de um grande caldeirão sonoro .

Tom Zé é um dos mais experimentalistas compositores da MPB (Multimídia Popular Brasileira) ou arte antropofágica global. Ele foi um dos precursores, aqui e no mundo, do uso multimídia (integração de meios) das comunicações, que já se tornaram parte do nosso cotidiano.

Seus trabalhos mostram um itinerário próprio, fundador, em que ele funde elementos nordestinos, do samba, da música urbana, da música internacional e do pop, com letras de um estilo todo seu, que dialoga fortemente com o concretismo; em “Senhor cidadão”, do LP Se o caso é chorar, Augusto de Campos declamou “cidade/city/cité”, primeira gravação em disco de poema concreto, e precursor do CD Poesia é risco, que, em 1992 (Polygram, 526508-2), Augusto faria com seus poemas vocalizados com o apoio melódico/harmônico de seu filho, Cid Campos. É brilhante a versão sonora que fizeram para os tão visuais poemas concretos, desde o pré “O rei menos o reino”, de 1950, até “Pós-tudo”, de 1983, passando por citações (Kilkerry) e traduções (Rimbaud, Cummings, Joyce, Blake). Como faixa bônus, meio satélite, está “Chegou a noite”, o samba no estilo de Noel Rosa que Eurico de Campos, o pai de Haroldo e Augusto, fez em 1931, e que Caetano Veloso citou na revista Ta-ta-ta, de Jorge Mautner .

O caipira cult Passoca gravou este samba do pai de Augusto em seu excelente LP Sonora garoa (Polygram, 821.221-1, 1984) . (Não há espaço agora, estamos aos 45 minutos do segundo tempo da entrega deste livro prà editora, mas, falou em Passoca, falou em caipira, falou em cult, falou em gênio, falou em poeta, falou em compositor, falou em violeiro, falou em moda de viola, falou em samba, e por que não?, temos sim e sempre que falar de Elomar Figueira Mello).

O popcreto poema visual também de Augusto “Olho por olho” aparece no interior da capa de Todos os olhos, e o poeta ainda fez parceria com Tom Zé em “Cademar” e escreveu um texto para o encarte; na capa deste LP, a foto ampliada de um ânus com uma bolinha de gude no centro, simulando um olho e enganando a censura e a ditadura, foi criada por Décio Pignatari, e aparecia também nos grandes anúncios de outdoor do disco, driblando e esculhambando a sem-çura.

No programa do Jô Soares, Tom Zé contou isso e, quando o Jô lhe perguntou de quem era o ânus que aparecia na foto, Tom Zé falou discreto: “de uma modelo…”. Mas Preta Gil, filha de Gilberto Gil, no programa Pânico, em novembro de 2005, da Rádio Jovem Pan FM, comandado por Emílio Surita, falando sobre comentários à capa de seu CD de estreia, no qual aparece pelada, argumentou que outros artistas fizeram o mesmo, como John Lennon e Yoko Ono (Two virgins), Caetano, a esposa Dedé e o filho Moreno (Jóia), e Tom Zé, na capa de Todos os olhos, segundo Preta Gil.

E ainda: as letras de Tom Zé têm, elas mesmas, muitas vezes elementos oswaldianos, concretistas, bossa-novistas, tropicalistas e minimalistas.
Charles A. Perrone escreveu em Letras e letras da MPB, às pp. 127-129:

As canções de Antonio José Santana Martins, o Tom Zé (Irará, Bahia, 1936) merecem destaque como poesia musical. Carlos Iavile criou o termo “poemúsica” para a obra desse compositor.

Carlos Rennó, quando do relançamento de Tom Zé, seu primeiro LP, sob a forma de CD, comentou no encarte:

Este disco é uma preciosidade. Seu relançamento deve ser festejado como a descoberta de um tesouro – senão perdido – esquecido; enterrado e abandonado. Injusta e injustificadamente abandonado. E, no entanto, trata-se de uma obra-prima – e primeira – de um criador singular, esse mestre de invenções e intervenções artísticas chamado Tom Zé. Um disco digno de ser, enfim, reconhecido como representativo do tropicalismo, assim como os demais, conhecidos, do movimento: os individuais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e os Mutantes, além do coletivo.

Da companhia destes, Tom Zé havia sido alijado, ao sair de circulação. Como eles, foi gravado, em 1968, sob o signo da revolução e da liberdade criativa. Suas composições expõem as marcas – tipicamente tropicalistas – da surpresa e do sincretismo. Compassos se alternam, dão-se mudanças às vezes radicais de andamento. Estruturadas por colagem e/ou montagem, as canções, fracionadas, misturam ritmos (exemplo: iê-iê-iê e música sertaneja, em “Sabor de burrice”), instaurando inesperadas atmosferas numa mesma faixa, tudo ilustrado paralelamente pelos arranjos.

Estes desempenham papel fundamental no encontro entre música popular e erudita contemporânea que o disco promove. Criados por Damiano Cozzela e Sandino Hohagen, maestros do grupo Música Nova, combinam elementos díspares – do folclore ao rock – num trabalho ao mesmo tempo antenado com a vanguarda e enraizado na tradição. As instrumentações são inusuais, um arsenal de ruídos – sinos, buzinas, despertadores – e sons variados – aleatórios, de fanfarras etc. – é convocado. Incorporam-se cacos, acasos, erros, além de narrações, conversas e discursos, sem contar vocais onomatopaicos. Resultado: cada faixa se torna um acontecimento sonoro-musical.

Mais relevante ainda talvez seja a forma como os arranjos se relacionam com as letras, como replicam às suas instigações, criando os climas por elas requeridos .

Depois de Correio da Estação do Brás (1978) e Nave Maria (1985), Tom Zé foi colocado na geladeira por quase 20 anos, nos quais trabalhou em várias profissões (como frentista de posto de gasolina, dentre outras) que não tinham nada a ver com ele e não condiziam com a importância de sua arte e de seu pensamento para o Brasil. Mesmo depois da redescoberta por David Byrne, e do sucesso internacional, Tom Zé manteve o emprego de jardineiro do prédio onde mora em São Paulo, em parte, segundo suas declarações irônicas, para poder estar em contato com as plantas e a terra, em parte para ter garantidos os 180 reais, menos de cem dólares, o salário mínimo, equivalente ao preço de mais ou menos seis CDs.

Quando um país aliena seus pensadores da filosofia, da ciência e da arte, é o país inteiro que se aliena, que está sofrendo da cabeça, do coração, do sexo, das vísceras, dos órgãos genitais e dos sentidos. Tom Zé foi resgatado desse processo de olvido pela “descoberta” de seu trabalho que fez o ex-líder do grupo norte-americano Talking Heads, David Byrne, que ouviu por acaso o LP Estudando o samba e percebeu a importância do que ali havia, colaborando para a projeção internacional de Tom Zé, e pela sua “redescoberta” nacional nos anos 1990, quando lançou nos Estados Unidos antologia do compositor e o CD The hips of tradition (Os quadris da tradição).

Em 1998, lança pela gravadora Trama Com defeito de fabricação, fabrication defect, onde propõe a estética do plágio (arrastão, que em gíria carioca é um roubo generalizado, praticado por uma turma de ladrões que vão assaltando toda a praia, todas as lojas ou todos os carros etc.); cada faixa é um defeito 1, 2, 3, 4 etc., a partir de “O gene”, passando por coisas como “Juventude javali” e “Burrice”, fazendo arrastão de si mesmo, quando retoma e refaz as suas próprias canções (“Curiosidade”, “Politicar”) e tendo bônus tracks remix feitos por Amon Tob e Sean Lennon, filho do Beatle John Lennon e Yoko Ono (“Curiosidade” e “O olho do lago”, respectivamente) e a estética exposta em “Estiticar (espinha dorsal)” (defeito 6, que é política também):

pensa que eu sou um caboclo tolo boboca
um tipo de mico cabeça oca
raquítico típico jeca-tatu
um mero número zero um zé à esquerda
pateta patético lesma lerda
autômato pato panaca tatu

penso dispenso a mula da sua ótica
ora vá me lamber tradução intersemiótica
se segura milord aí que o mulato baião
smoka-se todo na estética do arrastão
E ainda faz os irônicos apelos: “valei-me, Suassuna” e “valei-me, Tinhorão!”.
À época do Com defeito de fabricação, a cada show ou entrevista rasgava uma nota de um dólar, pois o “dólar é moeda falsa”.
E no seu CD Jogos de armar (2000, a gente pode também ler “jogos de amar”), obra aberta na qual o ouvinte pode montar as músicas da maneira que quiser (a partir de pequenas células musicais, que são oferecidas em um CD auxiliar, Cartilha de parceiro) escreveu:
Música do século passado

Em 17 de maio de 1978 esses instrumentos, ideias e canções subiram ao palco da GV – Teatro da Fundação Getúlio Vargas –, São Paulo. /…/
Lá, o embrião de células musicais que podem ser manejadas, remontadas (sic); um tipo de canção-módulo, aberta a inúmeras versões, receptiva à interferência de amadores ou profissionais, proporcionando jogos de armar nos quais qualquer interessado possa fazer, por si mesmo:

a. uma nova versão da música, pela remontagem de suas unidades constituintes;
b. aproveitamento de partes do arranjo que foram abandonadas;
c. reaproveitamento de trechos de letra não usados nas canções, para completá-las ou refazê-las;
d. construção de composições inteiramente novas, com células recolhidas à vontade, de qualquer das canções do disco-mãe .

Apresentados em 2000, no CD Jogos de armar; os instrumentos, inventados por Tom Zé (instromzétumentos) e construídos por seus parceiros de banda, feitos de coisas cotidianas, como buzinas e enceradeiras, têm nomes como hertzé (sampler brasileiro de 1978), businário, canetas lazzari, enceroscópio e serroteria, levaram o The New York Times de 1978 e a Rolling Stone de 26 de novembro de 1998 a elogiarem o compositor, chamado, por este jornal, em matéria de primeira folha, de “the father of invention” (citando o nome do grupo de Frank Zappa, Mother of Invention, que brinca com o ditado “a necessidade é a mãe da invenção”), comentando ainda que “brazilian Tom Zé can turn anything into music”, e considerado o criador do sampler brasileiro pelo Magazine Brasil, conforme se podem ver nas ilustrações das páginas 2 e 3 do encarte do CD.

Tom Zé está para a música/palavra som/pensamento como o biólogo molecular está para o tradicional, é este o seu concretismo, ele trabalha com sons e com comas de sons (como as subdivisões da nota musical), com os traços diferenciais dos fonemas, semitons e semifonemas, que multiplicam os sentidos; brincando que é popular, que fala como um homem do povo do Nordeste, ou do Brasil inteiro, ele estraçalha as palavras e as remonta, sempre fez jogos de armar, e além de tudo é afinadíssimo e toca um ótimo violão: estudou na Universidade de Música da Bahia, e escreveu no encarte do CD Jogos de armar:
Dedicado aos meus professores, que me salvaram a vida. Representando-os: Prof. Artur de Oliveira, primeiro grau; Belmira Santos, segundo grau; Hans Joachim Koellreutter e Ernst Widmer, Universidade de Música da Bahia.

Na entrevista realizada pelos Dragões do Paraíso (Renato Negrão et al.), Tom Zé falou um pouco sobre seu processo de criação musical:
É uma coisa que todo mundo que ouve meus discos encontra, esse estilo toda hora repetido com mais um cavaquinho também dobrado, no caso um bandolim, fazendo um contraponto quase fora de tonalidade, mas ainda respeitando e entretanto num universo que a gente não pode chamar de tonal porque o mundo tonal tem que ter o repouso, a tensão, a tensão maior ainda da dominante pra novamente o repouso e se sucedendo essas circunstâncias, o tempo… E sendo consumido, mas eu faço geralmente um ostinato num tom só e então eu tenho um dó maior a vida toda e isso não é tonalidade, a tonalidade precisa das alternações, né. /…/

Alguns críticos americanos e revistas americanas falaram em minimalismo, que era Gilberto Gil minimalista não sei o quê. Mas isso é uma primeira identidade, uma primeira comparação e porque talvez tenha algumas coisas…

Por exemplo, eu acho mais parecido com os móbiles de Alexander Calder porque o móbile é uma invenção de alguns anos atrás, aquela pilhéria né, aquela linda pilhéria. Porque no móbile cada eixo, cada coisa que circula no eixo, é como a Terra, a Lua, os satélites que circulam no eixo do seu planeta, e de todo modo estão circulando em torno do sol. Então tem uma complexidade de movimentos e de rotas ou de extensões, de translações, não é? E de rotações que são absolutamente complexas.

É como se você olhasse para uma sequência de acontecimentos musicais que são todos repetitivos, mas que nunca repetem do ponto de vista vertical o mesmo acorde.

Quando você estuda música, você estuda a verticalidade e a horizontalidade, você estuda as melodias, os contrapontos, as sucessões e estuda também a coincidência das coisas. No caso, essa música minha é mais parecida com um móbile de Alexander porque não… Sempre as coisas estão em algum lugar diferente, se você levanta um estudo vertical, você nunca encontra um mesmo acorde, talvez até na música minimalista tenha isso, mas é uma comparação que eu gosto muito de fazer. /…/

Tom Zé é cósmico, transcendental, místico não de uma maneira social, mas pela captação que faz de todas as coisas, como uma antena de ETs, ele faz um corte através dos tempos organizados, e tem tanto de Idade Média e Renascença quanto de Grécia, pré-história ou o futuro; ele compacta o tempo e o estende, em suas frases melódicas, que parecem vistas através de vidro ou de uma fenda dimensional, com seu coro de nordestinas e nordestinos tornados super-homens, acelerando e desacelerando o ritmo, condensando e alargando o tempo, sem perder o ritmo, encolhendo como mola o som, e soltando, como se estivéssemos ouvindo aquilo em outra rotação, e depois vemos que está tudo bem, a rotação está certa, ele não desafinou, ninguém atravessou ou semitonou, mas outros tons e ritmos foram intentados, ou infectados.

No programa do Jô na TV Globo, apresentado no dia 18 de abril de 2003, Tom Zé declarou que não era cantor nem compositor; era artista, e que teve que suprir suas deficiências, usando-as como força de composição. Estudando tudo.

Estudando o samba (1976, Continental) reinventa o samba como estudo orgânico, do humano, e inorgânico, da presença do espírito nos movimentos humanos; sua ligação esférica com várias vertentes do samba, Elton Medeiros (com quem compôs “Tô”), samba de roda, bossa nova (e ele parece aí um novo João Gilberto, tão total quanto, mas não tão tonal), o arame farpado que cerca e a camisa de força da consciência nacional transmutados em fio de supercondutores que transduzem (transdução é a passagem de uma mensagem de um código a outro) mensagens vitais (capa e layout).

E, em 2005, lançou Estudando o pagode (pela gravadora Trama), no qual retomou o motivo da capa. Em 2010, Estudando a bossa (pela Biscoito Fino). Por esta mesma gravadora, e no mesmo ano, gravou ainda O pirolito da ciência.

Ele atingiu uma área rara do ser, não rarefeita, mais pungente, mais forte, mais feliz, mais intensa, viver seu som é ser transportado como num sonho.

Porque a cobra
Já começou a comer a si mesma pela cauda,
Sendo ao mesmo tempo a fome e a comida.

“Complexo de épico”, in Todos os olhos. Esta canção desenvolve o mote “todo compositor brasileiro é um complexado”, por ser sempre sério demais, como professor universitário, que, ou passa a aprender com os alunos, isto é, a rua, ou vai desaparecer, segundo ele mesmo cantou. É um improviso gravado de primeira no estúdio.

Ele constrói e remonta as músicas como peças industriais da era de consumo, que tanto critica com ironia de menino e alienígena, de sofista e socrático, cutucando a onça com vara curta, botando o dedo na ferida e brincando, como se tudo aquilo fosse leve, um eterno pregador da felicidade (“O sonho voltou”). Compõe células (depois dos átomos) que, por sua vez, montam as músicas. Às vezes, sua gozação é colocar umas células de melodias lindíssimas, que poderiam se tornar sucessos de empatia popular, e não as canta, dá para o coro (como em “Se o caso é chorar”) ou, às vezes, é parte quase que indiscernível do coro ou se dilui no meio de uma dupla sertaneja, como no caso de “Abacaxi de arará”, gênio cuja maior genialidade é se tornar homem comum. Reelabora e potencializa ao máximo a tradição, tomando com gosto e gozo os elementos populares, a genialidade do povo, como em “desafio” (atentemos para a malícia e poesia da aproximação fonética de Cristo e Castro):

doutor: meus senhores, vou lhes apresentar
a figura do homem popular,
esse tipo idiota e muquirana
é um bicho que imita a raça humana.
o homem: o doutor exagera e desatina,
pois quando o pobre tem no seu repasto
o direito a escola e proteína
o seu cérebro cresce qual um astro
e começa a nascer pra todo lado
jesus cristo e muito fidel castro.
refrão: africará minguê e favelará
mérica de verme que deusará
iacuné tatuapé irará
doutor: veja o pobre de hoje: quer tratar
do direito, da lei, ecologia.
é na merda que eles vão parar
ou na peste, maleita, hidropisia.
o homem: mas o direito, na sua amplitude
serve o grande e o pequeno também.
além disso quem chega-se à virtude
e da lei se aproxima e se convém
tá mostrando ao patrão solicitude
por querer o que dele advém

Tom Zé prima por cultivar parcerias descontínuas, revelando sempre novos talentos. Na interpretação desta canção, faz trabalho de cantor/ator, nas duas vozes que emana, uma dura e rascante para o doutor, outra suave e quase angelical para o homem.

O refrão, com seu jogo surrealista de sons e alusões, fala do sincretismo, da miscigenação, da riqueza da contribuição indígena e africana, da descendência que a língua do Brasil tem dessas línguas, da miséria e da riqueza da América e do macro e microcosmos do problema/solução, quando África é colocada ao lado de Tatuapé (bairro de São Paulo de nome indígena) e América de Irará (outra palavra tupi, cidade natal do cantor, na Bahia).

Seriam inúmeros os casos, cada um particular, de parceria entre Tom Zé e a tradição oral, verbal e sonora do povo, numa nova concepção de arte e de cultura; vejamos mais um exemplo. Sabe-se o quanto o romance de cordel é manifestação da antropofagia natural do poeta popular brasileiro do Nordeste, deglutindo o épico antigo, as gestas orientais, os romances de cavalaria e o que mais vier, romances românticos, lendas do folclore, notícias de jornal, casos da política, problemas da província, cangaceiros e artistas do rádio e da televisão. Nada escapa à potente lente de cinema do cordelista, que não tem ideias fixas, e critica, num giro de 360 graus, sempre usando do humor e do duplo sentido.

Um ótimo exemplo são os romances que contam as grandes façanhas de Lampião, que nem é visto como bandido puramente, nem como herói, mas como um novo tipo de figura ficcional, com elementos díspares, como “Macunáima” (como se pronuncia) dos índios venezuelanos arecunha ou o Macunaíma que Mário de Andrade arrastou copiou sampleou fascinado pela figura mitológica do deus que mentia, era desonesto, covarde etc.

O cordelista José Pacheco escreveu um folheto chamado “A chegada de Lampeão no inferno” , que mostra uma das elaborações constantes do personagem como mito.

Agora, notem como Tom Zé reelabora os elementos tradicionais, colocando questões da política da globalização traduzidas e aclaradas pela sua lírica, a partir do sentimento geral do consciente coletivo, no seu “A chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI”, feito e inventado a partir de uma canção folclórica sobre Lampião, que ele mesmo recolheu no sertão da Bahia, e onde ele estabelece a igualdade entre o centro do capitalismo mundial integrado CMI (Guattari) e o inferno, como já o havia feito Sousândrade em O guesa errante, na seção “O inferno de Wall Street”, e ainda cita o marco fílmico épico de Glauber Rocha:

É Raul, Raul, Raul,
É Raul Seixas, é Lampião
Chegaram no FMI
Que nem tentou resistir

É Raú, Raú, Raú
Lampião não anda só
Trouxe deus e o diabo
Raul, a terra do sol

Lampião com o clavinote
Raul trouxe o ylê ai ê
Tiraram os colhões do rock
Enrabaram o iê-iê-iê

Chegaram na Casa Branca
Os dois de carro de boi
Tio Sam fugiu de tamanca
Ninguém viu para onde foi

Wall Street fechou
E a ONU não deixou pista
O presidente jurou
que sempre foi comunista

Mano Brown disse a Raul
O dinheiro a gente investe
No Banco Carandiru
Xingu, favela e Nordeste

Todo-poderoso e rico
O grande senhor dali
Cagou-se, pediu penico
Aflito, fora de si

Pois o FMI
Viu que não tinha mais jeito
E entregou todo o dinheiro
Para o povo dividir

E o mundo se viu diante
De grande felicidade
Trabalhando todo dia
E comendo toda a tarde

Mas entre os países pobres
Não houve fazer acordo
Para dividir os cobres
E a guerra pegou fogo

“A chegada de Raul Seixas e Lampião no FMI”. Gênero: baiãolenda. Arrastão de canção folclórica e do estilo trovador nordestino, in Jogos de armar. Todas as canções do CD trazem o gênero (predomina o chamegá, invenção, ou melhor, descoberta de Tom Zé, que até coloca desenho ilustrando a coreografia: “os quadrinhos de Edu Manzano incluídos no encarte mostram os passos mais convidativos da dança do chamegá. Na formulação geral dessa dança, coreografada por Laura Huzak Andreato e Paula Lisboa, observamos um vocabulário gestual brasileiro, pesquisado não só na rua como nas danças folclóricas recolhidas por Mário de Andrade, Câmara Cascudo e outros autores em diversas regiões do Brasil”, e suas combinações, chamegá-exaltação, chameguinho-choro etc.) e o arrastão, que é a inspiração, decupagem, sampler, citação etc., até de Homero há arrastão em “Perisseia”, de Tom Zé e Capinam, a epopeia do índio, Peri.

O LP de 1972, depois denominado Se o caso é chorar, é dedicado ao grupo Capote , que participou das gravações, assim como também cantaria e tocaria no ano seguinte em Todos os olhos, além de seu líder Odair Cabeça de Poeta compor e cantar com Tom Zé a faixa “Dodó e Zezé” (neste diálogo e em outros momentos, Tom Zé me faz lembrar, pelo tom, pela coloratura, pela sonoridade, pela vitalidade, pelo humor, pelo sotaque, pelo modo de cantar e de falar e pelo estilo seu conterrâneo Raul Seixas, ou vice-versa; o que dá a ideia de que a MPAB (música popular antropofágica brasileira) é um tecido todo contínuo, com muitas e pluridimensionais zonas de vizinhança e troca, sem confusão, em que a diferenciação das partes nem sempre é tão clara, pois são todos farinha do mesmo saco, água da mesma moringa).

O grupo Capote teve como proposta algo novo, mas profundamente ligado às experiências de Tom Zé, que, em 1973, lançou em compacto a canção “Quem não pode se Tchaikovsky” (na face B, tendo na face A “Augusta, Angélica e Consolação”, que também está no LP Todos os olhos), música baseada no Concerto para violino e orquestra em Ré maior, op. 35 (1878), de Piotr Ilitch Tchaikovsky, que é decupada, recortada e montada em pedaços que constituem o início, o meio e o fim da canção, sobre os quais Tom Zé compõe modulações que, na verdade, são variações sobre o tema melódico e alternâncias rítmicas sofisticadas, antropofágicas, mestiças, muito a seu gosto e uso, e letra de Tom Zé e Odair Cabeça de Poeta:

Quem não pode se Tchaikovsky!
Livra a cara qué vem baião!
Ora me deixe
Deixe de tolice
De refinesse grã-finice
Eu vou jogar areia
Nesse molejo da sinfônica
Quebrar o dente
De ouro da boca do palacete
Do palacete
Por gentileza deixe de fineza
De siquinique xiquitrique
Que eu não vou trocar
O pandeiro do Jackson
Pelo Tchaikovsky nem
Nem pela coroa do Rei do Baião
Que dirá pela sanfona do Rei do Baião
Meu amor
Meu amor
Tua mania de grandeza
Me dá tanta dor
Tô te avisando

Em 1973, foi lançado o LP de estreia de Odair Cabeça de Poeta e Grupo Capote (Edgar, viola; Koelho, contrabaixo; Rico, guitarra; Mirão, bateria), Grupo capote no forrock, Continental, 1973. O segundo LP, que traz só o nome da banda, pela Continental, 1974, é dedicado a Augusto de Campos e a Tom Zé, e a capa tem o emblema do ovo, assim como o LP Tudo foi feito pelo sol, dos Mutantes, 1975.

O Grupo Capote marcou muito a evolução de MPB (mesmo que não tenha sido amplamente conhecido) com as suas fusões forrock e forramba (forró com samba).

Em 1973, os Novos Baianos lançaram Novos Baianos Futebol Clube, LP que era dedicado a “Augusto e Aroldo de Campos” (que eles escreveram assim, sem “h”). Ali eles gravaram “Sorrir e cantar como Bahia” (Galvão e Moraes Moreira), “Só se não for brasileiro nessa hora” (Galvão e Moraes Moreira), “Cosmos e Damião” (Galvão e Moraes Moreira), “O samba da minha terra” (Dorival Caymmi), “Vagabundo não é fácil” (Galvão e Moraes Moreira), “Com qualquer dois mil reis” (Galvão, Pepeu Gomes e Moraes Moreira), “Os ‘pingo’ da chuva” (Galvão, Pepeu Gomes e Moraes Moreira), “Quando você chegar” (Galvão e Moraes Moreira), “Alimente” (Jorginho e Pepeu Gomes) e “Dagmar” (Moraes Moreira). É um bom exemplo do samba rockado que eles criaram e seminaram no País, e isso fica claríssimo na instrumentação tradicional mais baixo bateria e ultraguitarra na sua versão de “O samba da minha terra”, de Caymmi.

Bem como na proverbial e overantológica versão que fizeram de “Brasil pandeiro”, de Assis Valente, gravação de 1972, no álbum Acabou chorare, que ainda tem, é todo antológico, e ainda traz, tudo samba, tudo rock: “Preta pretinha” (Galvão e Moraes Moreira), “Tinindo trincando” (Galvão e Moraes Moreira), “Swing de Campo Grande” (Paulinho Boca de Cantor, Galvão e Moraes Moreira), “Acabou chorare” (Galvão e Moraes Moreira), “Mistério do planeta” (Galvão e Moraes Moreira), “A menina dança” (Galvão e Moraes Moreira), “Besta é tu” (Galvão, Pepeu Gomes e Moraes Moreira), “Um bilhete pra Didi” (Galvão e Moraes Moreira), “Preta pretinha” (Galvão e Moraes Moreira). Eles registraram as músicas ao contrário do que normalmente ocorria, primeiro o compositor da música, depois o letrista; no caso, Galvão foi o grande compositor dos versos dos Novos Baianos, geralmente.

Os Novos Baianos são instrumentistas e cantores exuberantes, especialmente o canto de Baby, Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor, e o talento dos músicos Bolacha, Baixinho, Dadi, Luís Galvão, Pepeu Gomes e Jorge Gomes, o que pode ter determinado sua maior projeção.

Marcelo Fróes, no encarte do relançamento de Novos Baianos F.C. (1973) e Novos Baianos (1974) fundidos em CD na série Dois momentos, da Continental, explicou que: “/…/ o grupo /…/ gravou /…/ o animado Futebol Clube, com a banda conceitual A Cor do Som sendo uma subsidiária eletrificada dos Novos Baianos (quando Dadi deixou os Novos Baianos, em 1977, levou consigo o nome e lançou a banda comercialmente, acompanhado pelos colegas Mu, Gustavo, Ary e Armandinho)”.

O que eles fizeram foi mais que revolucionário para o samba. Assim como o foram Jorge Benjor, Tom Zé e Luiz Melodia, e depois outros, no sentido de uma complexificação, uma depuração, uma quintessência do samba, que ficou mais óbvia na bossa nova, mas, repito e repito, está na bossa de Noel e estava em Sinhô.

Pode ter havido influência dos Novos Baianos sobre o Grupo Capote, ou vice-versa, há coisas parecidas nos dois discos, mas também pode ser o clima da época e outras influências comuns. De qualquer forma, os dois trabalhos são excelentes; apenas o grupo de Odair Cabeça de Poeta não fez sucesso comercial e não emplacou, injustamente.

Voltando ao LP do Grupo Capote, o ovo tem janelas e os integrantes do grupo aparecem nelas, eles moram no ovo, no interior do encarte eles comeram o ovo; e o LP tem faixas como “Buxixo na aldeia” (parceria de Odair, Marinho e Tom Zé), que é um trabalho antropofágico no estilo da continuidade do que vinha com o tropicalismo e assemelhado aos Novos Baianos, e vicejaria todo esse tempo no trabalho de Tom Zé:

cara
toma jeito
cara
vê se toma jeito
cheguei
estacionei a barca
entrei no bote e deparei
com um cara estranho de figura incrível
me dá um copo de leite, xará
quem te viu, quem te vê em cara
qual é o teu nome cara?
é na ponta do brilho
você tem um crivo?
ih! tá na boca do rádio
você tem grana, cara?
ih! faz uma cara que eu não tenho dinheiro
cara de pau em
conta a sua história pra nós cara
então eu vou contar a minha história pra vocês
ganhei uma americana que me serve chá e café na cama
me manda beijos escolhidos
daqueles tipo exportação
me manda beijos inocentes
me manda beijos enrolados e temperados toda semana

“Globarbarização” é a expressão que Tom Zé usa nas apresentações ao vivo de “O PIB da PIB (prostituir)”, dele mesmo, Sérgio Molina e Alê Siqueira. Gênero: bloco de turistas europeus para o cordão das meninas do Nordeste, no CD Jogos de armar, como aquela que fez em março de 2003, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.

Tom Zé ao vivo é superteatral, revelando uma sensibilidade aguda, e parece um menino que grita, que ri, que dança; ele sente a música como nervo do universo, registra as variações de intensidade do ser, como fazia Antonin Artaud. Suas apresentações são um teatro da crueldade, sim.
“Nave Maria” nos dá a visão do nascimento de um homem que é mulher, menino, feto, bebê, jovem, adulto e velho, tudo aos nossos olhos, como um quadro figural. Estamos vendo os quadros do pintor Francis Bacon ao vivo e em movimento quando ouvimos Tom Zé superafinado, que desafina os instrumentos, para lá da escala tonal, da escada diacrônica que leva e eleva para a catedral do óbvio. Como falamos, e ele contou tão bem no seu livro, Tom Zé utiliza preferencialmente o ostinato, mas também com uma forma de sua invenção, para fazer seus experimentalismos composicionais. Miele, no programa A vida é um show, da TV Educativa, exibido em abril de 2003, disse que até no apelido é musical, que é como o som da corda puxada de uma guitarra e de uma viola: Toim.

A música, para Tom Zé, é uma prática laboratorial, o mesmo tema harmônico, melódico ou poético pode retornar, se combinar, se transformar, ser acrescentado, modificado, reelaborado, tudo experiências, gerando ideias e sensações. Por exemplo, “Jimi renda-se”, de Tom Zé e Waldez, gênero: maracapoeira, arrastão do falar sofisticado. Tom inventa palavras que camuflam e debocham, deglutem os nomes de Bob Dylan, Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Billie Holliday e Janis Joplin, e que estão em Jogos de armar; é a retomada da base e do riff de “Dor e dor” (do LP de 1972, Se o caso é chorar), e continua (é a mesma canção e é outra) em “Moeda falsa”:

e logo o Brasil, que vai ser um país rico,
quando esse diabo desse petróleo acabar
o dólar é moeda falsa
o americano já não segura as calça
/…/
ô, cabrobó!
eles vão tomar no fiofó

Inventa palavras também (palavras cortadas multiplicando significações: “com ê/seu jei de tê/graça no balan/miná meu tem/crian/passa na lembran/conté/que o no/me dé/era diferen/seu nom era embola/no falar da gen”, processo que consiste em falar as palavras só nas pré-tônicas e tônicas, e não pronunciar as sílabas pós-tônicas) em “Chamegá” (Tom Zé e Vicente Barreto, arrastão de Jackson do Pandeiro e Gordurinha), na qual transforma a palavra pop na sigla de “puta que o pariu”:

aí chegou o gringo com o sequencer para prender o músico brasileiro na camisa de força do metronímico 4/4 rock-pop-box
e chegou um chamego chamado pop
ah, puta que pariu
bate funk bate folk
ah, puta que pariu
bate estaca, bate rock
ah, puta que pariu
gonzaga filho adotado
yê Olodum
renasceu mais avexado
yê Olodum

Acontece que a bateria eletrônica não toca outros tempos como 2/4 que estão no samba e nos ritmos nordestinos, reduzindo tudo ao chiclete repetitivo do pop.

Tom Zé repete muito que não é cantor nem compositor, e por isso teve que desenvolver táticas para encantar; sua fraqueza é sua força, ele é mais cantor e compositor justamente por trazer sempre o signo da invenção o tempo todo a iluminá-lo, é por isso que se aproxima tanto para nós, seus ouvintes, de Hermeto Paschoal, não só pelo fato de que inventa instrumentos, enceroscópio, buzinório, serroteria, agogôs no esmeril (efeito sonoro e visual no escuro, com fagulhas de fogo saltando do som), hertzé etc., enquanto Hermeto toca qualquer coisa, todas as coisas, Tom Zé diz que é o movimento contrário, da deficiência para a ciência nele, ao inverso do Hermeto, porém o que ele chama deficiente é a visão dos pontos fortes e fracos do sistema do som, do mercado e do pensamento da música que ultrapassa em muito as injunções do mercado, porque é a invenção do pensamento e de novos modos de vida. Miele sugeriu de forma muito oportuna uma parceria entre os dois, Hermeto e Tom Zé, o qual tem grandes parcerias, e citou a sua com Rita Lee, fizeram juntos “2001” e “3001” – ela diz que ele é seu parceiro do futuro.

Tom Zé é um dos maiores baluartes mundiais contra a estupidez planetária que ele mesmo rotulou tão bem como “globarbarização”.
Observação: em 2003, foi lançado pela Publifolha de São Paulo o livro Tropicalista lenta luta, no qual Tom Zé conta/explica/implica sua trajetória (memórias sentimentais e energéticas), com profundas visões do meio musical (no caso, o meio musical material) e a cultura como energia viva do homem e do ser, uma entrevista que mais aprofunda ainda tudo quanto explicou em seu texto/poesia/musical e letras das músicas todas, o que é muito útil para quem quiser pensar.

Reluto em considerar algum humano um gênio, pois essa rotulação sempre me parece tola desde que todos possuímos grandes coisas dentro de nós e acessá-las me parece mais normal do que genial, mesmo que muitos prefiram ou sejam levados a ser bestiais; quero dizer, é mais incompreensível a burrice do que a genialidade.

Caetano cantou e isso já virou título de livro de uma psicanalista: “de perto ninguém é normal”. E, ainda, quanto aos chamados gênios do século XX, que são citados o tempo todo como tendo estruturado nossa época, eu penso que eles estão, os quatro, fundamentalmente equivocados: Darwin, Marx, Freud e Einstein estão errados. Poderia explicar os erros de cada um deles, se não todos, muitos que percebo, não aqui, pois cada um mereceria um livro maior que esse para detonar a polêmica, coisa que, na verdade, nem seria novidade. Vocês podem confiar em mim.

Já o próprio Tom Zé admira, em especial, cada um desses pensadores, e não penso que discorde em nada deles, mesmo do mais frágil de todos, o tolo freudismo. E além do mais admira, por cima de todos eles, outros dois gênios que mudaram a face do século XX: Santos Dumont e João Gilberto.
Mas, mesmo assim. Os gênios podem ser chamados gênios, por momentos, por pedaços, por saques, por trabalhos, que, mesmo errados, edificam. Edison falou que o gênio é feito de dez por cento de inspiração e noventa por cento transpiração. E, levando em conta Tom Zé, a coisa fica mais complicada, ele é o ser humano mais fácil de se chamar de gênio.

Como eu já falei, aliás quem falou foi o Charles Perrone, o Tom Zé nasceu em Irará, na Bahia, em 1936, e foi batizado Antonio José Santana Martins. Aí é que está o busílis.

Pois o grande orquestrador maestro compositor poeta pensador Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim com esse nome imponente que é um verdadeiro monumento escolheu o apelido Tom como seu nome artístico, e muitas vezes é chamado Tom Jobim, muitas vezes simplesmente Tom.

E o grande autor daquela coisa que chamaram de bossa nova é o cantor João Gilberto, que traz o prenome simples, comum aos homens do povo no nosso país, como José, que sempre vira Zé. E surgiu até mesmo um cantor depois dele chamado João Só, que já era uma glosa à simplicidade do nome do gênio da bossa nova, e ao mesmo tempo ao seu estilo, a essa economia atômica que é como uma paisagem chinesa esculpida na cabeça de um alfinete, ou japonesa, venha cá (“Menina da ladeira” é de 1971):

João Evangelista de Melo Fortes, ou simplesmente João Só, nasceu no dia 3 de novembro de 1943 em Teresina, no Piauí. Filho caçula da família que já contava com 11 irmãos, mudou-se ainda bem cedo para Salvador, na Bahia, onde passou boa parte da infância e da vida. João Só era, portanto, como ele mesmo costumava dizer, baiano de coração.

O início de João Só na música aconteceu muito cedo. Costumava olhar um dos seus irmãos tocando violão, a fim de tentar memorizar algumas posições, e logo conseguiu base suficiente para destacar-se no cavaquinho, tendo inclusive feito uma apresentação em um programa chamado Hora da Criança, de Aroldo Ribeiro, na Rádio Cultura da Bahia.

A música, então, incorporou-se de vez à vida de João Só. Aos 15 anos, já era um grande instrumentista, projetando-se no mercado profissional. Depois do cavaquinho, dedicou-se ao violão, seu principal instrumento. Trabalhando na noite, foi levado ao piano e a outros instrumentos, como o violino, o bongô e o contrabaixo. No início da década de 1970, realizou várias apresentações no Norte e Nordeste em uma caravana da gravadora EMI, com o objetivo de engajar-se no cenário nacional. A oportunidade não demorou muito. Levado pelo cantor Miltinho, gravou na Odeon o seu primeiro e grande sucesso: “Menina da ladeira”.

João Só concebeu esta música de uma maneira muito natural e espontânea. Após participar de um jantar oferecido aos profissionais de publicidade num dos restaurantes da Ribeira, onde se localizava o antigo aeroporto, começou a tocar o violão e cantar alguns versos. Já sozinho, e com a casa fechando as portas, desenvolveu todo o tema da música: “Parecia até que era um trabalho antigo, conhecido”, dizia. Quando chegou em casa, gravou tudo para não esquecer. No outro dia, viu que quase nada precisava ser mudado.

Com “Menina da ladeira”, João Só começou a participar de shows em várias partes do País: “O disco estourou em todas as paradas em apenas quatro meses. A partir daí, minha vida ficou muito agitada. Tinha que atender compromissos em várias cidades. Às vezes saía de um avião para entrar em outro”, costumava dizer. Nesse ritmo, se tornou cada vez mais conhecido. Em 1972, após apresentar-se na Argentina, ao lado de Paulo Diniz, gravou o primeiro LP, com músicas do porte de “Canção pra Janaína” e “Copacabana”. Foi convidado para gravar outros discos. A partir de 1978, João se dedicou exclusivamente a shows: “Deixei um pouco de lado as gravações. E não estou arrependido, principalmente por causa do aprimoramento da música na noite” disse ele. /…/

Pois o nome do nosso cantor é genial descoberta por vários motivos: Tom Zé traz os nomes atômicos detonadores do compositor e do cantor da bossa nova, traz o nome do povo e religioso Zé, um nome cheio de grandeza e pequeneza também, pois é geralmente atribuído a pobres e a nordestinos que, ao chegarem ao sul, principalmente no século XX, são estigmatizados como pobres. Parece também um tom musical, o tom zé (um tom a mais novo para cá dos conhecidos dó ré mi fá sol la si e os sustenidos bemóis e bequadros aqui no Ocidente) ou tom colorido ou da pura sensação. Parece algo engraçado infantil como tonto como zé mané como o o cachorro banzé das historinhas em quadrinhos. É um logo, um nome tipo uma marca, uma assinatura na sensibilidade nacional. É simplesmente genial.

Observação 2: Tom Zé foi convidado para o disco do filme vencedor do Festival de Cannes, Farenheit 9/11, de Michael Moore. A música foi “Companheiro Bush”, que saiu no Brasil no CD Imprensa cantada. Em 2005, o filme alemão Gespenster, dirigido por Christian Petzold, com música de Tom Zé, “Mã”, participou do Festival de Berlim.

Minha casa era geminada com o clube. No lugar onde eu dormia, a cama, [de] que eu me lembro bem, era encostada na parede do clube. Então, o bumbo do clube vivia no meu ouvido, quando tinha festa /…/ e eu ouvia mais alguma coisa lá das bandas que tocavam, mas o bumbo era mais presente, o bumbo era o novo útero da minha mãe, que deve ser essa sensação, não é? E essa é a única coisa a que se pode atribuir que eu tenho de inspiração de música. /…/ aí ouvi e ele (Renato) prrramm: “não quero outra vida, pescando no rio de Jereré…” no “de Jereré” a melodia faz dó, si, dó, ré; e o violão fazia dó, si, lá, sol. Contraponto do primeiro grau. (Veja como o contraponto estava na minha veia.) Esse contraponto do primeiro grau, nota contra nota, começando até com oitavas paralelas, se não me engano, esse contraponto me impressionou tanto que o mundo escureceu, /…/ meu apocalipse foi ali: eu perdi completamente tudo em que estava ligado, todos os interesses momentâneos desapareceram com aquele buraco /…/

A partir do “concretismo” que seria natural no homem do interior, concretismo que ele depõe não praticar, quando o faz, Tom Zé joga com as palavras baunilha, ilha e humilha, para contar da maravilha das sensações e das palavras, que sentiu em criança, que se sentia humilhada pela sua diferença. Narra sua infância, com sua riqueza interiorana, de imaginário, lógica própria do homem do interior, linguagem, vivências, relacionamentos, e sua pobreza dupla: por ser do interior e viver os altos e baixos do filho de um pequeno comerciante, e por ser do lado pobre ou menos “nobre” de uma família importante da região. Ou mais, a sua pobreza própria, pessoal e intransferível, por ser um mico-leão-dourado, um Zé à esquerda, que seria rejeitado por todos não fosse seu charme, seu brilhantismo, sua inteligência, que, juntos com sua revolta, o teriam tornado um marginal, se não fosse o seu diferencial brilhante junto com algumas pessoas que perceberam isso e o salvaram. Vale lembrar de novo a homenagem a seus professores, numa nação que tem um povo que os despreza tanto, é lindo ver esse grande artista assim se manifestar. Eles lhe salvaram a vida porque lhe deram a crença na sua possibilidade, e, aos poucos, a possibilidade de ser algo, ser alguma coisa, poder existir na nossa sociedade.

É muito bonito ver como ele fala sobre sua professora secundária Belmira Santos, que dizia que os alunos precisavam aprender a ler, pois quem seriam os novos poetas e escritores, e ele se sentiu valorizado, como alguém que podia ser poeta, podia ser escritor. E sobre Ernst Widmer, seu professor de composição e estruturação, que musicou “Astronauta libertado”, música alternativa com a mesma letra de “2001”, cuja pauta está na página 53 do livro. E Hans Joachim Koellreutter, seu professor de história da música, que se comoveu com a canção “Toc” e lhe passou o amor pelo experimentalismo, pela vanguarda, pelo contraponto.

Tom Zé é fruto de uma época especial, que se potencializava com o entusiasmo da construção de Brasília, o surgimento da bossa nova e do concretismo, e a contracultura internacional, além, é claro, da possibilidade real da comunização do mundo. Edgar Santos, o reitor da Universidade de Música da Bahia, investiu muita grana para trazer ótimos professores europeus, e foi criada uma escola de música que nem tinha público, que iria formar seu público e seus alunos. Essa situação excepcional fez com que Tom Zé fosse aceito como aluno, mesmo não conhecendo teoria, e fosse formado no mais avançado das pesquisas musicais, como dedecafonismo, atonia etc. Ele conta no livro que foi a partir de suas deficiências como cantor instrumentista e compositor, somadas à riqueza do que aprendeu na escola, que ele pôde encontrar o seu caminho “limpando o campo”, rompendo o acordo tácito da música (enquanto estrutura musical alegorizada como uma novela de televisão, “romance da harmonia funcional”; e enquanto temas e letras e modos das canções populares, operísticas, gritadas, hiperbólicas).

/…/ No princípio, o que mais me movia mesmo a procurar outra coisa era a incapacidade de me mostrar cantando. Aquilo de eu não ser cantor, de dizer claramente: “isso aqui não é uma música”, mesmo quando eu maquiava um canto, isso era vital. /…/ também fui treinando outra coisa, que era o seguinte: quando entro no palco, imediatamente convoco na plateia o cognitivo. Sem me dar conta, passei a vida treinando essa ligação direta .
Aqui Tom Zé ainda respondia a Caetano, que falou, aliás, escreveu no seu livro Verdade tropical que ele fazia a ligação direta entre o experimental e o tradicional.

Quando comecei a redigir Proteu ou A arte das transmutações; leituras, audições e visões da obra de Jorge Mautner, bem no início da década de 1990, a problemática da cultura brasileira e mundial era muito diferente. Havia uma clareza sobre a qualidade musical, ou de outra arte qualquer, e a influência decisiva que esses artistas, dotados de voz, tinham sobre a sociedade como um todo e as pessoas em particular.

A sensibilidade de cada um, sim, mas também a forma de pensar, o combate a preconceitos, novas visões de mundo, tudo isso era muito mais amplificado pelos grandes meios de comunicação de massa, e os artistas que tinham acesso a ele. Esse processo de massificação foi se amplificando durante toda a década de 1990, e, no caso do Brasil, foi nesse período que ficou clara para nós a nossa inserção naquilo que chamam de globalização e de pós-modernismo. E o desenrolar desse processo recolocou a questão da presença dos artistas na mídia, desde aqueles dos anos 1960 e 1970, cuja importância inédita na história serviu de modelo para (des)enquadrar Jorge Mautner.

O meu protesto fartamente documentado se baseava no fato de que Jorge Mautner é um grande criador, inovador, pensador, e que traz muitas propostas novas de releitura do ser humano e da nossa condição moderna (e agora pós-moderna), mundial e nacional. Não fazia o menor sentido ele ser tão boicotado, não ser levado a sério, não repercutir. O Brasil precisava dele.

O que antes era um grande artista, ou pensador, agora é a mesma coisa que um tolo que faz alguma gracinha, e esse mesmo parece mais palatável, mais deglutível. O Brasil da época da ditadura valorizava muito cantores, compositores, gente de teatro e cineastas que contestassem o sistema, falassem de uma nova forma de vida e/ou trouxessem novidades ou alta qualidade técnica.

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