Noel Rosa e a Cidade – Parte 9

O que tínhamos? De um lado o poeta malandro, que se recusa a trabalhar, a ser machista e a ser grosseiro. De outro lado uma cidade grande, no mais das vezes linda, mas crua, fria, indiferente, hermética.

Entre os dois apareceria então o duplo vaporoso da cidade, que é a cidade do poeta, feita de sensações soltas, escura, cristalina e movente; uma rede de afetos e perceptos. O poeta não é ninguém, ele é esse alguém particularmente corajoso, que, ao ouvir o apito da fábrica, que, se lhe fere os ouvidos, ao menos faz propaganda da mulher, começa a devanear, a sonhar com a amada, e a batucar uns versos no balcão do bar:

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina do meu carro?

Você no inverno
Sem meias vai ao trabalho
Não faz fé no agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você

Nos meus olhos você lê
Como eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens a você

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda noturno
E você sabe por quê
Mas o que você não sabe
É que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

Nestas considerações não estamos levando em conta toda a riqueza das melodias e harmonias de Noel, só ou com parceiros. A tão expressiva “Três Apitos”, em que a melodia se integra ao tema da letra e o multiplica, é inteiramente dele .

O poeta-malandro também tem seus referenciais, dentre as suas personagens. “João Ninguém” seria talvez o grande ideal do poeta: não trabalha, não se arrisca, não tem vintém – mas joga, ama e vive. Ele não se dá ao luxo de ter inimigos, ou ideologia, ou opinião. É quase que um mestre zen. E, no entanto, é figura facilmente encontrada em qualquer beco ou esquina do país:

João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar
Num vão de escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar

João Ninguém
Não trabalha um só minuto
Mas joga sem ter vintém
E vive a fumar charuto
Esse João
Nunca se expõe ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião

João Ninguém
Não tem ideal na vida
Além de casa e comida
Tem seus amores também
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém

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