Noel Rosa e a Cidade – Parte 6

Outro aspecto do trágico em Noel Rosa é a crítica política, principalmente quanto aos problemas nacionais, que aparecem disfarçados em sátiras e anedotas inócuas – já que é quase sempre muito perigoso criticar, no Brasil -, e que são “diplomáticas”, pois abusam do duplo sentido.

É o caso de “São Coisas Nossas”, e também de “Quem Dá Mais?”, onde o leiloeiro (quem é ele?) vende o Brasil inteiro (notar ainda a amargura disfarçada do compositor que tantas vezes teve que vender o seu talento, trocando a autoria de canções por algum dinheiro):

/…/
Quem dá mais?
Por um samba feito
Nas regras da arte
Sem introdução
E sem segunda parte
Só tem estribilho
Nasceu no Salgueiro
E exprime dois terços
Do Rio de Janeiro
Quem dá mais?
Quem é que dá mais
De um conto de réis?
Quem dá mais?
Quem dá mais?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas,
Dou-lhe três!
Quanto é que vai ganhar o leiloeiro
Que é também brasileiro
E em três lances
Vendeu o Brasil inteiro?
Quem dá mais?

E ainda o clássico, a cada dia mais atual, “Onde Está a Honestidade?”, a pergunta sem resposta.
Interessante que, por ironia, a “maldade” (no sentido de malícia) é atribuída ao povo, justamente aquele que sofre os efeitos da malícia, da maldade.

Você tem palacete reluzente
Tem jóias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança nem parente
Só anda de automóvel na cidade

E o povo já pergunta com maldade
Onde está a honestidade
Onde está a honestidade

Amor, fulguração e esquecimento; assim o tema aparece trabalhado em Noel Rosa.
Uma noite, como em “Dama do Cabaré”, depois mais nada. O amor que inicia como festa, que foguete e fogueira que ilumina a noite, morre como cinza, leve, apagado, ignorado.

Com seu aparecimento
Todo céu ficou cinzento
E São Pedro zangado
Depois um carro de praça
Partiu e fez fumaça
Com destino ignorado
Não demorou muito a chuva
E eu achei uma luva
Depois que ela desceu
A luva é um documento
Com que prova o esquecimento
Daquela que me esqueceu
Ao ver o carro cinzento
Com a cruz do sofrimento
Bem vermelha na porta
Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta
A poeira cinzenta
Da dúvida me atormenta
Nem se sei se ela morreu
A luva é um documento
De pelica e bem cinzento
Daquela que me esqueceu

E o eu lírico muda de ideia, sua cor não é cinza, é a “cor inexistente”.
Silêncio de uma parte de outra, por amor ou por desprezo. Desprezo por amor, amor por desprezo, como em “Pra que mentir?”

Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom
De saber iludir
Pra que
Pra que mentir
Se não há necessidade
De me trair
Pra que mentir
Se tu ainda não tens a malícia
De toda mulher
Pra que mentir
Se eu sei que gostas de outro
Que te diz
Que não te quer

Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu já sei
Que tu não gostas de mim
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido

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