Noel Rosa e a Cidade – Parte 5

O caosmos é a garantia do inesperado, e pensá-lo é o trágico em filosofia, o pensamento da diferença, do caos, do tempestuoso, do intempestivo, da inexistência de qualquer substância.
Segundo Clément Rosset:

/…/ Assim apareceram sucessivamente no horizonte da cultura ocidental pensadores como os Sofistas, como Lucrécio, Montaigne, Pascal ou Nietzsche – e outros. Pensadores terroristas e lógicos do pior: sua preocupação comum e paradoxal é a de conseguir pensar e afirmar o pior. A inquietude aqui mudou de rota: o cuidado não é mais de evitar ou superar um naufrágio filosófico, mas torná-lo certo e inelutável. Se há uma angústia do filósofo terrorista, é a de passar sob silêncio tal aspecto absurdo do sentido admitido ou tal aspecto derrisório do sério vigente, de esquecer uma circunstância agravante, enfim de apresentar do trágico um caráter incompleto e superficial. Assim considerado, o ato de filosofia é por natureza destruidor e desastroso.

Há muitas letras de Noel Rosa que nos falam de algo que poderíamos chamar de lógica do pior, seguindo Rosset.

A apatia filosófica dos estóicos se deve à impossibilidade do pensador determinar qual acontecimento é realmente bom ou mau; a incerteza de qualquer valoração.
Ela também representa a recusa de se deixar escravizar às paixões que arrastam e acorrentam o homem do senso comum, que não tem assim a disponibilidade ou a calma para pensar e viver a plenitude da vida em liberdade.

Noel Rosa alia o trágico à apatia. Vejamos a letra de “Quem Ri Melhor”.
Pobre de quem já sofreu neste mundo
A dor de um amor profundo
Eu vivo bem sem amar a ninguém
Ser infeliz é sofrer por alguém
Zombo de quem sofre assim
Quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim
Felicidade é o vil metal quem dá
Honestidade ninguém sabe onde está
Acaba mal quem é ruim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim
Sabendo disso eu não quero rir primeiro
Pois o feitiço vira contra o feiticeiro
Eu vivo bem pensando assim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim

Ou ainda “Feitiço da Vila”, onde além de afirmar a produtividade poética como antídoto contra a produção aprisionada nos moldes mercadológicos do capitalismo (“São Paulo dá café/Minas dá leite/E a Vila Isabel dá samba”), o eu lírico se afirma imune a paixões:

Eu sei tudo que faço
Sei por onde passo
Paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer
Modéstia à parte meus senhores
Eu sou da Vila

O afeto filosófico ou artístico é o grande agenciamento do poeta-malandro, que, através da estranha ligação da arte com o pensamento, se livra dos laços que normalmente prendem as pessoas, e se liga a um corpo expressivo, que não está sujeito às funções orgânicas.

Malandro que não bebe que não come
Que não abandona o samba
Porque o samba mata a fome

Mesmo diante da morte, o eu lírico não perde sua compostura apática, e, mantendo a dignidade da perda do amor, expressa em seu último desejo a não memória, o não epitáfio (em lugar dele, uma simples fita amarela – cor de alegria, de riqueza – com o nome da amada), o não monumento .

Por outro lado, as amadas não tratam o poeta-malandro de modo muito diferente de como ele as trata, e, frequentemente, mesmo se esforçando por ser apático, e não perdendo nunca a elegância da enunciação, sente-se que ele se feriu, diante da diplomacia (duplicidade) da mulher:

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que recebi (não me lembro de quem)
Você nela me dizia que quem é da boemia
Usa e abusa de diplomacia mas não gosta de ninguém
Porém:
Provei
Do amor todo o amargor que ele tem
Então jurei
Nunca mais amar ninguém
Porém
Eu agora encontrei alguém
Que me compreende e que me quer bem

Quem fala mal do amor
Não sabe a vida gozar
Quem maldiz a própria dor
Tem amor mas não sabe amar

Nunca se deve jurar
Não mais amar a ninguém
Ninguém pode evitar
De se apaixonar por alguém

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