Noel Rosa e a Cidade – Parte 3

Um de nossos autores de maior brasilidade, Noel Rosa se mostra tão pouco ufanista e chovinista quanto poderia ser um artificialista nômade, em sua crítica prévia aos mistos da ordem, progresso, modernidade e nação. Vejamos o ridículo a que nosso autor expõe as teorias de August Comte e os nacionalistas à época influenciados pelo positivismo (que fomentou a proclamação da república e deu o lema que figura na bandeira):

Mas a verdade meu amor mora num poço
E é Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço o infeliz
Autor da guilhotina de Paris

Vai coração que não vibra
Com seu juro exorbitante
Transformar mais uma libra
Em dívida flutuante

Mas o amor vem por princípio a ordem por base
E o progresso é que deve vir por fim
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E foste ser feliz longe de mim

Vai orgulhosa querida
Mas aprende esta lição
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração

Mas a intriga nasce de um café pequeno
Que a gente toma só pra ver quem vai pagar
Foi pra não sentir mais o seu veneno
Que eu já resolvi me envenenar

Nas segunda e quarta estrofes o eu lírico reage tragicamente, aceitando a partida da amada, que não foi “positivista”, desprezando as leis de Comte e abandonando o amado, que lhe diz: vai. As primeira, terceira e quinta estrofes iniciam com a conjunção adversativa, que, no início da frase, ainda indica relação com a ideia anterior. O poema abre com um “mas” universal, em relação a tudo, não importam as leis, sempre há um porém.

Contra a ideia de progresso, e numa leitura bastante crítica da nossa realidade à sua época, aproximamos um poema de Oswald de Andrade de uma letra de Noel Rosa, que tratam ambos do desvio do trilho do nosso progresso, a partir, nos dois casos, da aproximação crítica do par bonde e carroça.

Oswald:
pobre alimária

O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículos
E o animal disparou
Mas o lesto carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote

Noel:
Baleiro, jornalista, motorista,
Condutor e passageiro
Prestanista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça
Coisa nossa
Coisa nossa
O samba a prontidão e outras bossas
São nossas coisas
São coisas nossas

Nos dois casos, a “dialética” do bonde e da carroça não produz nenhuma síntese, antes, pelo contrário, abre-se em várias séries divergentes, milhares de picadas, veredas; não há solução, há contradição na essência, paradoxo.

A um certo momento de A Arqueologia do Saber, Michel Foucault afirma:
Ao fim desse trabalho, permanecem somente contradições residuais – acidentes, faltas, falhas – ou surge, ao contrário, como se toda a análise a isso tivesse conduzido, em surdina e apesar dela, a contradição fundamental: emprego, na própria origem do sistema, de postulados incompatíveis, entrecruzamento de influências que não se podem conciliar, difração primeira do desejo, conflito econômico e político que opõe uma sociedade a si mesma; tudo isso, ao invés de aparecer como elementos superficiais que é preciso reduzir, se revela finalmente como princípio organizador, como lei fundadora e secreta que justifica todas as contradições menores e lhes dá um fundamento sólido: modelo, em suma, de todas as outras oposições.Tal contradição, longe de ser aparência ou acidente do discurso, longe de ser aquilo de que é preciso libertá-lo para que ele libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a própria lei de sua existência: é a partir dela que ele emerge; é ao mesmo tempo para traduzi-la e superá-la que ele se põe a falar; é para fugir dela, enquanto ela renasce sem cessar através dele, que ele continua e recomeça indefinidamente, é por ela estar sempre aquém dele e por ele jamais poder contorná-la inteiramente, que ele muda, se metamorfoseia, escapa de si mesmo em sua própria continuidade. A contradição funciona, então, ao longo do discurso, como o princípio de sua historicidade.

O texto é claro, um discurso não se entende pela sua linha mestra de sentido, por sua coerente interpretação “oficial”. São os deslizamentos do discurso que produzem sentidos, e uma positividade absoluta do saber corre o risco de gerar a entropia total, oriunda de um equívoco permanente. A cada contexto, a cada mínima mudança de contexto, os discursos mudam de sentido – e o papel da arqueologia é interpretar, não o sentido do texto, ele não tem nenhum, mas essas mínimas flutuações, que, como o efeito borboleta da física do caos, vão, ao longo da linha, crescendo cada vez mais de influência, gerando tempestades mais além. Os deslizamentos de sentido são como a bola de neve, que vai crescendo sem parar enquanto rola, enquanto que ela é o puro movimento impulsivo, o rolar, o vetor montanha abaixo. Os deslocamentos de um texto no contexto histórico são como os deslizamentos de terra nos morros com favelas do Rio de Janeiro, produzindo vítimas e beneficiados, alterando caleidoscopicamente a paisagem.

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