Noel Rosa e a Cidade – Parte 10
Compare-se esta letra com a do samba “Vela no Breu” de Paulinho da Viola.
Então, o poeta-malandro, que vive na cidade de concreto e foge dela com seu duplipensar, e vive agora em seu duplo de cristal, será que ele vive numa cidade feliz? Depois de escrever tantas “flores do mal” em cores vivas, metralhadora giratória atacando a corrupção geral de nossa sociedade , reduzindo suas necessidades ao mínimo possível – pode-se dizer que o poeta é feliz?
Deleuze fala em três sínteses do tempo relacionadas ao humano, não obstante o tempo subsistir por si. A primeira é o passado, ao qual se liga a faculdade da memória. A segunda é o presente, que está ligada ao hábito. A terceira é o futuro, com a qual se agencia a faculdade do pensamento.
O futuro é o tempo da criação, da libertação. É ali que podemos criar numa nova forma de vida, para nos desvencilharmos dessa forma comum, esvaziada, niilista. É no futuro que se escapa ao tédio, à rotina; mas também a uma forma de homem já estupificada, que não se angustia mais com o tédio nem teme a rotina.
E o poeta vai encontrar sua felicidade justamente na ligação com o pensamento, que lhe abre as portas para a criação e a terceira síntese do tempo – o futuro.
Arranjei um fraseado
Que já trago decorado
Para quando te encontrar
Como é que você se chama?
Quando é que você me ama?
Onde é que vamos morar?
Como eu vou indagar
Quando é que eu posso lhe encontrar
Pra conseguir combinar onde é o lugar
Em que você quer morar?
Como vou saber ao certo
Quando é você vem ficar perto
De quem já designou onde é o lugar
Do nosso lindo château?
Como é que você se chama?
Quando é que você me ama?
Onde é que vou lhe falar?
Como é que você não diz
Quando é que me faz feliz?
Onde é que vamos morar?
Pode-se tomar o poeta como um mestre, e fazer com ele um aprendizado não apenas especificamente de poesia, mas um aprendizado para a vida? Ouvir os sambas e as canções de Noel Rosa e tirar dali uma ética, e procurar segui-la? E por que alguém faria sito? Por que alguém abandonaria a comodidade de sua rotina, a certeza de suas escolhas, por algo tão nebuloso quanto um poema, uma canção?
A nebulosidade é proposital e singular, ela é o grande trunfo de um poeta que recusa os trilhos e muros que levam à fábrica, à escola e ao presídio (por que alguém se torna malandro?). Ele consegue uma outra via para viver a sua vida, até o fim em liberdade e plenitude. Se, em última instância, morre de inanição (Noel praticamente não comia, e se supunha que era devido à deformação do maxilar inferior causada pelo fórceps no parto – porém não é tão óbvia assim a causa de sua recusa, pois “o samba mata a fome”), e ele se torna anoréxico e sai do corpo funcional, para viver a plenitude de um corpo expressivo, qual o drama? A maioria morre de fome ou de doenças provocadas por comer demais, e o que se ganha? Não pretendo concluir nada, nem fechar, gostaria de abrir mais, provocar novas inconclusões, novas alternativas e retroalimentações, pois é o próprio Noel que nos diz em metalinguagem que
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia /…/
Não tem tradução
(MORAIS JUNIOR, Luis Carlos de. O Estudante do Coração. Rio de Janeiro: Quartica, 2010, p. 19-47.)
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