Machado conta

O escritor, e, principalmente, o contista Machado de Assis é uma das poucas unanimidades nacionais. Produtor de um texto fino, refinado, de humor cáustico, corrosivo, meticuloso, quase sempre sentido em sua vasta obra, que experimenta os gêneros da época, o romance, a novela, o conto, a poesia, o teatro, a crônica, a crítica e o ensaísmo. Seu humor sério, ou sua carnavalização de fraque, é paradoxo haurido e transmutado de seus mestres ingleses, especialmente Swift e Sterne (o qual consta que foi influenciado por Rabelais, de quem mudou o tom e conservou o espírito).

A literatura brasileira se vê, como é natural, dividida em posições até certo ponto antípodas. Os que pregam o experimentalismo e os que produzem algum tipo de realismo lato sensu, ambos têm em Machado fonte de inspiração; os que desmontam pela crítica cabal e feroz e os meticulosos que querem fazer o que ainda não foi feito, todos podem se mirar no espelho de Machado. Se até nos romances-invenções de Oswald de Andrade, Samira Mesquita vê o desdobramento genético de Memórias Póstumas de Brás Cubas, como já afirmamos.

Experimentação é o grande leit-motiv da ficção machadiana, agenciada à visão pensante do macro e do microcosmos. De um lado, o indivíduo limitado, imperfeito, sempre, de alguma forma, gago (não consegue dizer) e epilético (mostra uma face demoníaca, fora de seu controle), em luta constante e vazia pela realização, como impulso cego da vontade de potência e da natureza (que devora suas próprias crias: “Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a vida”) ; do outro, o contexto mundano no qual apenas esse indivíduo pode aparecer e continuar, status em oxímoro, que lhe apresenta valores nominais que a prática não pára de negar a toda hora (gagueira e epilepsia), ao qual o eu pensante e criador propõe o seu enigma puro, vestido de ironia e desconstrução, como aquele que cometeu a hýbris de tentar fixar a “mosca azul” da ilusão, porém ainda acredita em algum tipo de catarse, que seja rirmos de nós mesmos, e até, talvez, provocar mudança. Para tanto seus contos densos voam como setas envenenadas, mirando o alvo da miséria e da grandeza humanas.

Em Contos Fluminenses (1870) e Histórias de Meia-Noite (1873), MA experimenta o gênero, domina a técnica, contudo já ensaiando sua expressão, num prenúncio da visão corrosiva do autor maduro, que, como observou Merquior faz o exercício impressionista, denunciando o “estilo existencial moderno” através da visão problematizadora da civilização da era industrial. À perda da dignidade social e artística, num mundo sem antigos ideais de nobreza, moral e fé, o romantismo responde com sua tentativa de recuperação pelo sublime fabricado no amor e na arte, ou pela fuga digna e indignada de alguém superior que não pode suportar. Tal posição mesmo o jovem Machado não adotou. Como observa Alfredo Bosi :

/…/ já não se pode ignorar o vinco “machadiano” das obras ditas românticas ou da primeira fase; em oposição aos ficcionistas que faziam a apologia da paixão amorosa /…/ defende a ambição de mudar de classe /…/

nos romances A Mão e a Luva e Iaiá Garcia.

Os ideais eram falsos, simulacros, identidade qualquer, máscaras necessárias, alma exterior sem a qual advém o demônio sem rosto (e por isso mais terrível), como o sabia MA e o alferes Jacobina descobriu no conto “O Espelho”.

A miséria sempre foi e é, social, pois o demônio e a natureza estão aquém. Só que o homem não é puro animal, puro instinto. Ao se fazer social cria crenças, regras, ideias e ideais, aos quais está firmemente atado como ao nada.

O conto é, para MA, além de contundente petardo de seu pensar e fazer, seu mais ousado e fecundo laboratório experimental ficcional.

É ainda Bosi quem observa que:

O salto qualitativo das Memórias Póstumas de Brás Cubas foi lastreado por alguns textos escritos entre 1878 e 1880, verdadeiro intróito à visão desmistificante do defunto-autor /…/
como, por exemplo “Um Cão de Lata no Rabo”, “Filosofia de um Pé de Bota” e “O Elogio da Vaidade”.

Papéis Avulsos (1882) e Histórias sem Data (1884) já apresentam e desenvolvem o que Merchior chamou de “contos filosóficos” (ao par dos “contos anedóticos” e da tipologia dos “retratos morais”). Tal tendência permanecerá em Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899) e Relíquias de Casa Velha (1906).

De Papéis Avulsos é a novela-fábula “O Alienista”, verdadeira bomba de efeito retardado que, pelo humor e pelo tom de mensagem filosófica, narrada em tempo e lugar distantes , vai desmontando o jogo de armar da sociedade, pelo recurso da redução ao absurdo: o leitor é ativado a colocar tal tipo de pessoas no manicômio, depois outro, depois todos, ou então só o médico são, o único equilibrado, Dr. Bacamarte, que, através de sua auto-reclusão (ou exclusão – só ele está de fora) estabelece o mundo inteiro como casa de loucos, entre os quais está o leitor. O alienista se torna aquele que torna tudo estranho, tudo outro, tudo fora do normal.

“A Igreja do Diabo”, que está em Histórias sem Data, fere novamente a tecla da irrecuperação moral da humanidade , desta vez pela sátira que mostra Deus concedendo o mando do mundo ao Demônio, só para este acabar sendo derrotado pela infidelidade de seus seguidores, pois toda moral, toda crença tem franjas, algo que se lhes escapa, o por onde o outro lado da moeda pode aparecer.
“Evolução” e “Teoria do Medalhão”, de Relíquias de Casa Velha, fazem a crítica do que Roberto Schwarz chamou de “as ideias fora do lugar” . O problema se encarna na questão nacional que preocupava MA ensaísta de “A Nova Geração” e “Instinto de Nacionalidade”.
O Brasil importou sua cultura, e continua importando, ou ela lhe foi imposta e assim prossegue sendo, adquirindo o sestro ibérico e mais ainda ibero-americano do parasitismo, conforme mostrou Manoel Bonfim em A América Latina; males de origem , livro lançado em 1905, contemporâneo portanto dos dois contos de MA.

A pior condenação do caminho que tomou a nossa conformação social está nos conselhos que, em “Teoria do Medalhão”, – essa palavra que parece erradamente derivada do vocábulo “medo”, esfrangalhado – o pai dá a Janjão, quando este completa 22 anos (como se fosse uma sátira feita a priori do que pretenderia a semana de 22, em suas preocupações estéticas e sociais), maior de idade agora, como o povo independente e republicano, pré-modernista, aprendendo a conveniência da “ciência de outiva” e as vantagens de não ter ideias próprias.

Leave a comment