ESTÁTICA & ESTÉTICA

Dizer que a resposta à pergunta é múltipla, simultaneamente afirma o devir: todo este rio de fogo que é a vida, todo este encantamento que sopra com força cósmica, todo este poder do corpo − um bronze que tem como essência soar, retinir na história.E por isso estou aqui, mais uma vez.

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O pensamento atravessa qualquer coisa.

(Cláudio Ulpiano)

Este é um livrosofisticação.

This book is a happiness, uma felicidade, c’est un livre heureux.

Vamos falar sobre escritores ou simulacros, compositores e malandros, cineastas e cientistas do som e do sentido.

Não define uma teoria estética, mas propõe uma teoria estética.

E principalmente procura nos proporcionar o salto quântico, a cambalhota do pensamento, o choque cultural, a estética contra a estática, e energia empoçada[1] nas certezas vis.

Falamos ainda de filosofia, para trazer o pensamento para a arte.

A questão é a que o título sugere, e todo mundo entende, mesmo que não o perceba, de cara.

Agora a crítica é que é o problema.

Talvez o próprio sucesso precedente, e a tradição, a fortuna crítica que acompanha uma obra, como um cardume segue um barco, produza um efeito psicológico, ou até mesmo de massa, gravitacional, garantindo valores ao longo do tempo, cada vez mais.

Isso não explica nada: como algumas produções vão ser resgatadas fora de seu tempo, e nem dá conta das obras de arte que vem e virão, e que, portanto, se apresentam livres, pelo menos de um consenso crítico a seu respeito.

Assim, quem quiser se meter por esse mister de criticar tem pelo menos duas opções: a garantia de lustrar os medalhões, ou a investigação dos recursos e efeitos que se podem encontrar e possam possuir valor estético nas obras já reconhecidas ou nas novas que surgem, e não utilizar o que já sabe sobre elas ou o fato de nada saber como “a priori” da avaliação.

Investigação sobre o real, como pode e como é, e o virtual. Nesse sentido é um sentido como um outro ou novo sentido, ou a ativação pela ação da mente que sente e da mente que pensa mais racional que a própria razão, é conexão e a ativa ação de um novo sentido, que vê de novas formas plurais o real e o sol, e o real pluvial.

Ainda é um livro além do bem e do mal, do bom e do ruim, do ótimo e do péssimo, do melhor e do pior, dos comparativos. Por isso está aberto ao novo e ao velho, e a revê-lo, revertê-lo, reavê-lo, revisitá-lo.

Posso dizer que é uma Nave dos Loucos, como conta Foucault na sua História da Loucura, mas posso dizer também que é a cura pra tanta caretice dentro e fora da burrice. Não é a nau que punha pra fora os diferentes, como se fosse um depósito de anomais ou os dispensários de leprosos, porque o objetivo aqui não é excluir, mas incluir, fazer ouvir as vozes dissonantes que dizem o que já disseram antes ou fazem novas palavras repetidas.

É uma Arca de Noé com bichos da mente, bichos dementes, cheios de razão, e muitos, muito mais que um casal, de cada.

É um brado de amor à vida e ao pensamento, é um movimento em direção à claridade, como quem pede mais abertura, mais ar, um pouco mais de possível. Estabelecer possibilidades em um solo tão maltratado é uma forma de apostar no ser humano.

 

Acontece que o Brasil está em crise, tal qual o mundo, não há diferença, não há como separar realmente as coisas, pois elas estão sempre ligadas de formas visíveis e invisíveis. Se o fazemos é para poder falar sobre elas com uma linguagem feita de signos desconexos, que não são espelho real do mundo, antes uma forma limitada de se referir a ele.

Mesmo entendendo que tudo é um só, vamos fazer um enfoque em nossa abordagem, escolhendo uma determinada configuração ou recorte. Vamos falar do Brasil.

Que há graves problemas que nós não criamos, que não nos interessam, problematizações inimigas que nos atrapalham, que nós não queremos nem pedimos, nem faríamos ou fazemos tanto quanto é do poder de nossa vontade, nisso todo mundo acorda, todo mundo concorda e ao mesmo tempo diz que desperta para a estranha realidade, assim como quem lamenta: “o sonho acabou”.

Grandes soluções são propostas como uma máquina-mágica salvadora, ou como delegação a outrem (seja ele indivíduo ou instituição) da responsabilidade de resolver um estado de coisas que é a nós que incomoda, quem é que sejamos nós. E quem somos nós?

Também quero propor aqui o meu diagnóstico, e ao mesmo tempo ainda trazer a solução, que é uma verdadeira panaceia, no seu sentido primeiro e alquímico, isto é, um remédio energético real que age, não combatendo alguma doença, mas sim trazendo a saúde. O problema mais medonho do mundo atual – e consequentemente do Brasil e de cada indivíduo que aqui vive – é a burrice. É só isso.

É claro que há “n” desdobramentos, porém a burrice é a grande causadora dos males brasileiros atuais. Trata-se de uma péssima notícia. E, ao mesmo tempo, uma ótima nova.

Porque, se o que temos que superar é só a burrice, se ela é a deficiência que faz nosso povo sofrer, podemos facilmente sair de tal situação – basta utilizar uma das tantas vacinas antibúrricas que existem. E o meu papel é exatamente apontar uma das mais simples, baratas, gerais, testadas, geniais e eficazes vacinas antiburrice que existem, que, em sendo adotada, garantirá ao nosso povo elevação física e mental nem sequer ainda sonhadas, em pouquíssimo tempo.

Ler.

Evidentemente não é ler qualquer coisa; é muito comum encontrarmos pessoas que se orgulham de gostar de ler revistas de fofoca ou escritores que não fazem propriamente literatura, mas tv de papel. Sair da tv para cair na tv não vai elevar o nível mental de ninguém. A vacina antibúrrica é ler textos potentes. Para que ela possa ser administrada a todos os brasileiros (e o mesmo valeria para os terrestres em geral) é necessário que se criem condições propícias.

Uma delas é fazer as pessoas desligarem a tv, às vezes, e abrir um livro. Para isso temos que entrar na tv. Programas inteligentes levam a pensar, causam inquietação, e fazem a pessoa querer agir, se tornar ativo no pensamento e na recepção de imagens e ideias. Esta invasão aconteceu na música popular brasileira (e em outros países também), com vários autores anteriores à bossa nova, e com mais força, a partir dela. Muita gente boa foi para a literatura, a filosofia e a ciência a partir de compositores que tinham vindo de lá, ou que ousam cruzar a ponte de mão dupla.

Invadir a tv passa pelas tvs piratas e de comunidade, pela concessão de canais a cooperativas de produtores independentes e pela luta política por uma reforma agrária do ar (e outras conquistas, como tv na internet e o que mais se invente, e aqui devemos homenagear Guattari e Lizt Vieira).

Em termos dos monopólios que há, urge dinamitar condicionamentos e programações mentais, com o agenciamento dos programas a novas formas de sentir e pensar.

Evitar a novela exótica, por exemplo, que repete de forma monótona e vazia os mesmos estereótipos. Enlouquecer novelas, programas de auditório e “reality shows”, como uma forma de diluir seu potencial hipnótico e alienante. Nada de textos literários adaptados, que fazem o público comprar o livro e guardar na estante. Tudo de textos dilapidados. Personagens que não peçam para serem imitados. Modas enlouquecidas, que levem a criar. Chega de boas intenções e campanhas cívicas, falsos humanismos cujo único conteúdo e forma é o lucro. Basta de novelas que viciam e ficam o ano inteiro no ar. Por séries menos sérias e mais rápidas e ágeis, curtas e curtidas, com a convocação de vários e grandes criadores e liberdade para criar entretenimento que encha a alma e não o saco.

A leitura como foco irradiador de pensamento descentralizante e potencializador é o melhor meio de combater os círculos burrificadores da mídia monocromática e obtusa, é a vacina antiburrice que devemos adotar em todos os níveis e em várias estratégias e estratagemas, a partir de nossa vivência cotidiana, do trabalho que desempenhamos e das relações que temos.

Segundo Foucault, o que importa não é o que se sabe, mas o que se pode.

Assim, precisamos também pensar a educação, ensinando a agir, seja no campo teórico, seja no prático. Uma aprendizagem que leve a saber é como entulhar uma casa com coisas que podem ser utilitárias ou não, mas que, estando atulhadas, impossbilitam seu uso ou o do espaço; sendo assim, o primeiro passo do educador, será no sentido de limpar a casa.

Quando Sócrates foi considerado pelo oráculo de Delfos como o mais sábio dos homens, ele mesmo foi o primeiro a não compreender a resposta, e resolveu peregrinar ao templo de Apolo, para perguntar como aquilo era possível, pois ele se sabia um homem que sabia muito pouco, ou melhor, que não sabia nada, de verdade.

Ao chegar na porta da construção onde ficava a pitonisa ele viu a inscrição em grego que dizia: “Conhece-te a ti mesmo”. Saiu de lá satisfeito com o que se lhe revelava. Não precisou fazer a consulta. Ele teria que encontrar a resposta mergulhando em seu próprio interior, e foi o que fez, na tentativa de se conhecer, saber o que havia em si de tão sábio que chamara a atenção do próprio deus.

Conversando com todos os homens ditos sabedores da cidade, aqueles que conheciam o que era melhor no campo da política, da educação, da medicina, das artes, dos esportes etc, foi pouco a pouco percebendo, e fazendo cada um de seus interlocutores admitir, que não sabia nada sobre aquilo pelo que era considerado sabido.

Foi aí que Sócrates compreendeu: ele era o mais sábio dos atenienses justamente porque era o único que compreendia sua limitação, e sabia que nada sabia.

Sócrates pode até ter inaugurado a filosofia da representação e aberto a porta para uma forma estatal de pensar, com sua filogenética de Platão e Aristóteles. Mas não devemos esquecer que de Sócrates, de suas conversas despretensiosas e seriíssimas, também nasceram as escolas socráticas menores, a cínica, a megárica e a cirenaica, que fazem a ponte entre o pensamento pré-socrático e as filosofias estóica e epicurista.

Por outro lado, Sócrates, com sua maiêutica, arte da parteira, que ele se considerava, como sua mãe o fora, um fazedor de partos, só que no seu caso de ideias; com sua genuína honestidade intelectual, e sua coragem de investigar a fundo o conhecimento disponível em sua sociedade, e a sua capacidade e a de cada um dos cidadãos, ele se tornou o primeiro revolucionário da educação. Ele propôs um modelo educacional, baseado não no conhecimento, mas na tática, na estratégia de tudo questionar, o que, por paradoxal e genial que seja, ainda o relaciona com os sofistas.

A dificuldade inicial com a qual o processo de aprendizagem esbarra é a crença injustificada das pessoas de que já sabem tudo que necessitam saber. Como diz Deleuze a propósito de Proust, no livro Proust e os signos, sobre sua obra, só pensamos quando forçados. E o que nos força a pensar? Eu responderia que são duas coisas: uma situação e um instrumento.

A situação que propicia a novidade conceitual, a transformação de forma de ver e compreender, e atuar sobre o mundo, é uma situação que exige renovação, que força a mudar; pode ser a insuportabilidade de um determinado estado de coisas, ou a necessidade de dominar meios e recursos que ainda não se dominam. O móvel primeiro dos seres vivos é a sobrevivência. Depois vem a reprodução. E depois, a qualidade da vivência. Isso em geral, mas nós semos sempre imprevisíveis, a única lei é a mudança, a única certeza é a novidade.

Todos os três fatores podem levar ao incômodo, que gera a necessidade de aprender.

Já o meio da aprendizagem é o signo, que é o único instrumento de comunicação e comunização de que dispomos. Logo, ele tem um fator social, político, econômico, psicológico, linguístico e educacional. Sempre, ao mesmo tempo. Tudo isso fazemos com signos.

Deleuze e Guattari, em Mil platôs, fazem uma verdadeira genealogia das ciências humanas, mostrando que na educação o que predomina é a palavra de ordem.

Foucault relata a importância do esquema arquitetônico do “panopticon” de Jeremy Bentham para a constituição dos recintos de confinamento, onde as subjetividades são controladas, e aprendem a obedecer, como vemos em Vigiar e punir.

Foi a partir da implantação do modelo do panopticon que surgiram a fábrica, como recinto de controle do trabalho, o hospital, o hospício e o presídio, para corrigir os desvios comportamentais, e a escola, como centro modelador de comportamentos e pensamentos.

A questão primacial da escola tem sido esta, fazer obedecer, ensinar a obedecer. Cumpre encontrar o caminho que a tornará uma máquina de fazer pensar.

Hoje em dia, a grande formadora de mentalidade é a aquilo a que se chama de mídia, isto é, media, palavra latina que significa meios, no plural, e que designa a generalidade dos meios de comunicação de massas.

A escola parece pequena e pouco influente, diante dos meios de comunicação que carreiam grande parte da atenção dos jovens. A aula fica sendo chata, quando o aluno está acostumado à velocidade digital e à imediatez do áudio-visual, das cores, dos sons, dos movimentos das imagens.

À escola cumpre encontrar novos caminhos para formar o ser total, muito mais que cidadão, que o inclui, o ser pensando e criando. É preciso se apropriar dos meios de comunicação eletrônica, informática e áudio-visual, sem no entanto cair nas armadilhas que o uso consagrado dos meios nos mostra, sem baratear o pensamento e suas questões.

O que cumpre esse papel de enriquecer questões, potencializar o pensamento e apropriar meios para o pensamento e a aprendizagem é o uso da língua, na sua dupla vertente, enquanto língua falada e enquanto língua escrita.

Todo falante de uma língua é pelo menos bilíngue, porque domina duas formas da linguagem verbal: a semiótica oral e a semiótica escrita. É necessário o domínio das duas, para compreender os mecanismos de formação do discurso, a lógica da linguagem, que é o sistema modelizante primário (a língua código ou metalíngua) na qual todas as outras formas de código (sistemas modelizantes secundários) se traduzem, e no qual se fundam, isto quer dizer, só se aprendem outras coisas, inclusive outras línguas, dominando a língua materna, que serve de instrumento para apreender outros códigos.

Outra forma de ver esta questão é o reconhecimento de que o processo lógico envolvido na aquisição da linguagem verbal, bem como no seu desempenho, é a base da socialização e das outras aquisições intelectuais e emocionais posteriores.

Há algumas coisas que são identificadas por muitas pessoas como sendo a própria escola, os seus elementos constituintes, e que, segundo meu ver, são os maiores obstáculos à aprendizagem produtiva e criadora: os horários, a sineta, as notas, os pontinhos da presença, as provas, o quadro-negro (ou de qualquer outra cor, retroprojetor, datashow, etc, que são só versões sofisticadas do quadro). Se esses itens fossem abolidos apresentaríamos uma evolução da educação nunca antes vista.

Então a questão…

Literatura, arte, sociedade, tv, leitura, filosofia, educação.

“Ver com olhos livres”, Oswald de Andrade, ler e ler, e reler e reler, leituras das leituras.

A estética como reversão da estática; contra o furto das espérides, o Fruto das Hespérides.

Quero dizer, a favor do futuro das espécies.[2]



[1]  “Cambalhota do pensamento” e “energia empoçada” são conceitos de Carlos Castaneda.

[2] Este livro é uma continuação (em ordem cronológica de escrita) de: Proteu, O Olho do Ciclope e Crisólogo. A ordem original de publicação é Proteu, Crisólogo, Ciclope. A ordem lógica de leitura é Ciclope, Proteu, Crisólogo, O Pomo das Hespérides.

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