Entrevista com Jorge Mautner – parte 3

Mas muita gente hoje se coloca, muito filho de classe média vai buscar o morro, ou então, o Paulo Coelho fala no Zahir que há uma tribo que faz piercing pra marcar que eles são os rebeldes, não são como os hippies que foram padronizados. Você não percebe que existe uma insatisfação mesmo com a aparente liberação?

JM: Um momentinho. Insatisfação faz parte da satisfação. O sentir-se na estranheza e ser estranho eu acho que é o início de qualquer nível de consciência. Nossa estranheza. O que nós estamos fazendo aqui, falando aqui? Isso é estranhíssimo. A minha gatinha é estranha, essa planta, essa folha, é a coisa mais estranha do mundo. Essa pêra. É tudo muito estranho, gente! Essa capacidade de (perceber) essa diferença e essa estranheza o tempo todo é que vai marcar o artista, o pensador, e também todo mundo, hoje em dia está tudo massificado, democratizado, né? O big brother é um exemplo disso.
LC: Mas essa massificação causa uma angústia.
JM: Tudo! A angústia é inerente ao ser humano. Eu digo mais. Eu tenho até um verso que eu fiz pro Afroreggae que começa com o paciente Gregorius Malta que chega pro Doutor Drácula e diz assim: “Mas, doutor, o meu problema é o seguinte, eu gosto de viver na melancolia dos poetas românticos”. E pra eles a angústia era a condição sine qua non pra você existir, quando mais angustiado melhor. Se não tivesse nenhuma angústia você era um ser plástico, um bobo, uma coisa assim, um alienado.
CC: Esse é um tema muito importante, muito interessante pra gente, que é a coisa da…
JM: E eles chamam de depressão.
LC: Mas aí entra até na questão patológica, tem gente que faz loucuras.
JM: Entra. Mas tem gente que diz assim: ah, você tem razão, essa angústia é criativa, mas se petrificar, aí já é depressão. Mas peraí. Eu conheço meu grande mestre, Nicolai Gogol, que queimou a última parte de Almas mortas de Tchekov, que era o demônio comprando almas pela Rússia disfarçado de agente de seguros, e ele arrependido queimou o original da segunda parte, petrificado perante um monge na Itália, e jejuou até a morte. Então, era um acesso de melancolia profunda, de petrificação. Claro, hoje em dia eu acho certo tomar antidepressivo, mas esta é uma questão muito importante. O quanto essa insatisfação…
CC: E o quanto a gente, culturalmente… Você tem alguma ligação com, por exemplo, década de 70, poder jovem, “Alegria, alegria”, e o quanto nós vivemos uma cultura que hegemonicamente nega essa angústia criativa e qualquer tipo de angústia, e onde a alegria é quase que exibida publicamente.
JM: É, ela é mecanizada e é eufórica, como distrói. Sabe o que eu acho? Interessante. Imagina só. Primeira Guerra Mundial, República de Weimar, a loucura, no meio da República Social Democrática, dois loucos, (?) e Rosa de Luxemburgo, decidem dar o golpe militar bolchevique, contra as ordens do próprio Partido Comunista, eles é que vão provocar a subida de Hitler. Pois vem a Segunda Guerra Mundial, e aí então o inferno foi construído, segundo Hanna Arendt, nos campos de concentração, ele não tinha existido em nenhum outro lugar. Aí todo mundo vem com uma consciência de vida total. Mas o que se canta é a dor. Lembra Hölderlin, que dizia: “Na alegria não consigo expressar a alegria, só aqui na mais profunda tristeza, é que eu consigo cantá-la”. Então todo mundo, até Dolores Duran, que dizem que lia Albert Camus, ela adorava Albert Camus, as letras eram profundas, tinha aquela coisa, porque tinha a ver com a guerra, com a dor da guerra, eu acho. Depois explode a Guerra da Coreia, e todo o tropicalismo vai se desenrolar durante a Guerra do Vietnã, também. E também do quê? Da ditadura militar. Então tem antagonismos sociais muito claramente colocados motivando a… E hoje não tem mais. Tem o terrorismo internacional.
LC: Mas os tropicalistas tinham uma base filosófica, o Caetano está citando Sartre na “Alegria, alegria”. Tem uma inspiração marxista e existencialista. Mas o que foi feito depois com isso, como a questão do axé…
CC: Eu voltei de Salvador em setembro, completamente fora da época do carnaval, e andei passando ali pelo Pelourinho. Parece uma disneylândia africopercursiva para turista. É uma coisa folclorizada adaptada ao mercado. Não tem espontaneidade nenhuma. Aí eu fico me perguntando assim: até que ponto a Bahia da axé music é uma construção discursiva daquele momento, década de 70, 80, é um fruto daquilo.
NJ: É um pouco também. Na verdade é um fruto de toda uma cultura baiana. Só que agora adaptada ao mundo, globalizada.
JM: Massificada.
NJ: Mas muito daquilo é isso, é aquilo virando pop.
LC: Mas aquilo é espontâneo.
NJ: Que é espontâneo, sem dúvida, como nada é espontâneo. (Risos.) Surgiu espontaneamente. Mas claro, tem uma produção, um mercado. Como o trio elétrico, que na década de 70 era uma coisa de resistência. Todos os carnavais do Brasil tavam imitando o carnaval carioca. Eu me lembro que em 71 teve desfile de escola de samba em Salvador, patrocinado pela prefeitura, lá por aqueles órgãos. E começou com Caetano fazendo “Atrás do trio elétrico”, o bloco afro tinha ainda um, que era Os Filhos de Gandhi, que o Gil fez a música, depois Moraes Moreira, e a partir daí houve um movimento pró trio elétrico, pró carnaval baiano, que hoje em dia virou tudo isso. Claro também que foi uma iniciativa de artistas que tinham liderança pra salvar, porque se fosse deixar, vamos supor, o acontecimento normal, seria também uma globalização que seria imitar o carnaval carioca que era o modelo que todos estavam seguindo. Foi aí que se descobriu o carnaval da Bahia, de Pernambuco.

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