El prazer de pensar (Mautner com K)

Do livro Proteu ou: a arte das transmutações; leituras, audições e visões da obra de Jorge Maunter. 2 ed. Rio de Janeiro: Litteris, 2011.

Cada geração reconquista a liberdade, e assim dá a esta inominável aparição poética um sempre renovado significado. /…/

Reclamo-vos, futuros companheiros, atuais na imaginação, irmãos dos meus sonhos, sementes e motivação da minha existência e pregação histórica e anti-histórica.

Jorge Mautner[1]



[1] MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era, p. 28-29.

Estamos em pleno ano 2001, a data mais unanimemente aceita como sendo o começo da chamada Nova Era. E o que é esta Nova Era? Será se ela existe? Ou é simples projeção de um messianismo sem ideologias nem crenças, vagamente apoiado em ideais pós-humanistas e simplificados misticismos?

JM nos dá o toque em sua canção “Homenagem a Oxalá”:

Do jeito que o mundo anda

Ele precisa de fé

Ouve o grito da umbanda

E também do candomblé[1]

Precisamos agora inventar a nossa fé, assim como sempre tivemos que inventar a nossa história.

Místicos e cientistas, artistas e a mídia (que surge na ordem dos conhecimentos em substituição ao velho senso comum) estão todos acordes (como na música em que diferentes notas se harmonizam magicamente em um novo som mais rico, mais cheio de vibrações físicas do que cada uma das notas somada às outras) que não adianta esperar o salvador que descerá numa nuvem de fogo dos céus, seja o efeito maravilhoso, técnico ou alienígena. Primeiro, porque pode não surgir carruagem nenhuma e todos vão ficar com cara dos irlandeses que aguardavam que o gigante Finn se levantasse ou dos portugueses e nordestinos que ainda hoje esperam pela volta de Dom Sebastião (que alguns até confundem com São Sebastião). E segundo porque tudo que vale a pena custa algo, ninguém cresce nem aprende passivamente, por osmose, como objeto abjeto de uma prática de “generosidade”. É como uma criança ou camponês nas rodas de alfabetização, ou igual a um samurai zen se submetendo às mais duras práticas do caminho estreito para conseguir a iluminação: ninguém vai poder fazer seu trabalho por você.

Então a nova era ou o que quer que seja que seja ser e novo para nós e para o mundo (e o mundo somos nós, até quando vai ser preciso repetir isto para que os homens compreendem e pelo menos diminuam sua prepotência e sua arrogância?) só virá e acontecerá, a partir de hoje ou daqui a dez mil anos, com a nossa decisão e atitude e ação de mudar, de procurar a evolução, não apenas a partir da adequação biológica ao meio, num esquema darwiniano e real mas limitador, e não somente ainda como aprimoramento técnico e desenvolvimento de novas tecnologias da inteligência (oral, escrita, informática, v. Pierre Lévy) num efeito-cascata alterando todas as relações sociais, de trabalho, de convivência e de economia.

Foucault mostra o surgimento do homem enquanto uma forma de saber histórica, se dando no entrecruzamento de três tipos de conhecimentos que se desenvolveram no século XIX: vida, trabalho e linguagem (as ciências biológica, econômica e linguística).

O que aconteceu no século XX com a informática e a cibernética e o desenvolvimento de trilhões de novas tecnologias em todos os campos com as ramificações múltiplas rizomáticas que trazem encontros como o da química de Prigogine com a filosofia de Stanghers, a genealogia de Nietzsche e Deleuze com o estudo da psiquê de Freud e Guattari, a robótica de Asimov (suas três leis sendo o fundamento desta nova ciência) e a biologia molecular de Monod (a cibernética estuda sistemas de informação onde quer que eles ocorram, e a teoria do caos mostra que eles ocorrem em toda parte, como fantasiou o que pode ser verdade daqui a pouco o astrônomo chefe da NASA e criador da exobiologia e da nave que leva um disco da terra para os extra-terrestres, Sagan em seu livro Contato, até num número irracional como o pi, se a ele aplicarmos o poder de cálculo das placas de silício, poderemos ali encontrar uma mensagem brincalhona do criador; e ainda sobre robôs e biologia, além dos ciborgs e outros entrecruzamentos como a engenharia genética, podemos pensar nos robôs moleculares que podem tanto ser usados numa guerra de ficção científica como numa nova medicina muito além de tudo que se pode sonhar, Viagem Fantástica, de novo Asimov), o que o século trouxe para a forma homem foi o seu aprimoramento, o seu fracionamento, o seu estilhaçamento e sua primeira verdadeira universalização (CMI, net, satétites, mídia), no sentido de domínio deste nosso planetinha, tão mínimo em relação ao radical universal que aí ocorre, os ets riem.

Será essa fragmentação o caminho da mutação? Ou será se ela é uma espécie de freio que tenta preservar a forma homem em tudo que ela tem de reativo e passivo? Ou terá os dois aspectos simultâneos e conflitantes?

Tudo leva ainda à pergunta que é mal compreendida, irrita os legalistas, os juristas, os partidários da soberania da história e da dialética história, e gera todo o desdém alarve dos teóricos da razão comunicativa; ou produz uma euforia falsa, uma sensação canalha de loucura liberada que nada tem que ver com o pensamento e a criação, pois o caos tem a estrela bailarina na outra ponta, e não devemos nunca confundir kaos com caos: por que Nietzsche?

Porque ele propôs a superação necessária e urgente da forma homem e da forma Deus? Ou porque ele denunciou o poder hipnotizante e sugador de energias dos rancores que dominam o ser humano desde o seu nascimento (histórico e individual, Engels e Freud)? Ou ainda porque ele criou um método trans-transcendental que permite a verdadeira crítica, a própria crítica da verdade, da realidade e do sujeito de conhecimento (Deus, mundo, eu), três entidades fictícias, e demonstra a realidade imanente e eterna das forças que lutam, dos tipos de forças, e a sua genealogia (fazendo a vingança de Hume contra Kant, que pretendeu superar a sua teoria de não substância, eu, mundo e Deus como ficções)?

O século XX já ganhou o prêmio de ano mais louco da história (até agora), para lá do ano Mil, e teve vinte e um séculos dentro de si, um nietzscheano, um deleuziano, um foucaultino, um marxista, um existencialista, um pop, um medieval, um pré-histórico, um einsteiniano, um da ficção científica, outro da revolução…

Não vou dizer os nome de todos os vinte e um, porque cada um deles traz vinte e um outros embutidos, e assim ao infinito.

Há cerca de vinte anos atrás li fascinado os Panfletos da Nova Era, de Jorge Mautner, e vi que ele trazia a indicação de volume 1. Fiquei esperando ansioso pelo segundo tomo. Neste meio tempo escrevi o ensaio Proteu, entre 1989 e 2000, tornei-me amigo de Mautner e tive acesso a muita informação e material sobre sua obra.

Considero-a fundamental para a compreensão da nossa identidade cultural, para a inteligência brasileira, e não posso aceitar o limbo em que permanece.

Propus a JM que escrevêssemos juntos o segundo volume dos Panfletos, e ele aceitou. O que eu pensava era fazer textos meus e misturar aos seus, em um livro a quatro mãos, onde apenas o estilo individual de cada um indicasse uma suposta autoria, e a confusão divertisse e incomodasse a quem vai ler (como acontece em Diálogos de Gilles Deleuze e Claire Parnet).

JM é um verdadeiro lobo das estepes, apesar de ser e ao mesmo tempo em que é o que Vinícius de Moraes chamaria de um “artista do encontro”, pois seu maior prazer é conversar e estar com pessoas, atrair como um ímã a atenção e o desejo de cumplicidade de centenas e centenas de criadores, cantores, músicos, compositores, poetas, escritores e cineastas que desejam entrelaçar suas obras com a dele e produzir em parceria; no entanto o seu pensamento é totalmente selvagem e avesso a difusões, diluições e até diálogos.

Sua forma de pensar e sua velocidade (que ele diz sentir necessidade de acalmar um pouco com as práticas de kung fu e outras técnicas – tem a estatueta de seu Prêmio Jaboti na cabeceira da cama como um companheiro animado, com quem faz tai chi chuan e que lhe inspira; quando digo que tal pesquisa vai demorar, ele responde: “Não temos pressa, olha o jaboti”.) são únicas, e correm em trilhas paralelas no meio da multidão dos amigos, dos conhecidos e dos colegas, mesmo nas mais bem perpetradas amálgamas ele constrói seus caminhos isolados, onde seu pensamento e seu texto se deixam penetrar das coisas mais fantásticas e menos esperadas, um filósofo pré-socrático, um político da Macedônia, um feiticeiro negro, um judeu cristão, um messias duplipensador, um et apaixonado por um vampiro etc.

Pensar é o grande prazer de JM. Seu trabalho de escritor faz a continuação e a comunicação direta com a literatura que pensa, que vai desde a Índia, a China, a Palestina, o Egito e o Grécia antigos até a irrupção de curto-circuito entre os saberes e os dogmas que é Nietzsche, fonte espocante que rega os mundos das ideias em saltos quânticos em vários sentidos do tempo (muito mais que o passado e o futuro), ressurgindo em Zaratustra, em Sócrates e Platão e no cristianismo de São Paulo (os melhores e mais nobres inimigos), em Heráclito (exatamente o mesmo que Nietzsche, no entanto só o podemos saber depois de Nietzsche), em tantos escritores, Espinosa, Marx, Freud, Einstein, Foucault e Jorge Mautner. É um jogo, uma bola quântica que nunca se determina onde está mas que está em curso, sendo passada entre eles. JM é um homem poderoso; ele joga esse jogo.

JM compreende que sua matéria é a matéria, e matéria = tempo. E mais: o infinito (“fim sem fim” que coloca na última página dos livros, página que para os semitas como ele – grego [macedônico] e semita ao mesmo tempo – é a primeira página, onde começam a ler árabes e judeus) implica no infinitesimal do movimento perpétuo, condição da matéria e condição (num anti-platonismo de Bergson) do espírito.

É ele mesmo quem nos diz:

Minha mitologia não acaba neste volume. Ela continua por aí em qualquer lugar, em outros volumes, numa canção, num grito de alegria e desespero até eu morrer. Aí estará tudo realmente terminado. Não acaba aqui a mitologia do Kaos. É um fim sem fim. É como o jazz, continua sempre. É como a chuva, quando termina, algum dia – sempre – cai outra. O caminho que indico é o fluir triste-alegre da vida. Um encontro de paixões em eterna luta. Tudo é uma eterna luta sem fim: como poderei dar fim a algo sem fim?[2]

O estado de perpétua transformação implica o gozo do presente e do tempo que passa, em todos os sentidos, forjando novas possibilidades e alternativas para lá do humano, demasiado humano (que ele afirma sempre, o humano, num esforço sobre-humano por adensar esse universo desconhecido, e ultrapassar-se):

/…/ O estado de iluminação do Kaos é um estado de consciência (e consciência inclui intuição) tão grande que só o suportaremos alguns poucos momentos: é o que vulgarmente se chama inspiração, êxtase criativo, impulso poético, visão, premonição, vislumbre, vibração com o todo, identificação com o cosmos, integração existencial, enfim, estados de supra-sensibilidade e consciência e captação da realidade. Tempo virá em que o homem viverá constantemente em tal estado de iluminação /…/ Nessa época o homem, vivendo no estado constante do Kaos, estará então à procura da próxima contradição – que será um outro estado superior de sensibilidade e captação da realidade, um estado que chamaremos de estado X. Esse estado X só virá a ele em momentos especiais, como agora o estado do Kaos só nos vem em estados especiais. Quando o homem superar esse estado do Kaos constante (como superamos o estado do caos com C constante, que é o nosso tempo, para mergulharmos na iluminação do Kaos com K constante), ele mergulhará no tempo do X constante para ambicionar um outro estado, que será o estado Z. Um estado de maior sensibilidade e captação da realidade. E assim por diante.[3]

Para complicar tudo adora compor, cantar e tocar, como acontecia com Nietzsche, que produziu lindas músicas.

Hoje em dia as pessoas falam muito em multimídia, porém compreendem mal que alguém pule de uma trilha para outra; veja-se quanto o intelectualismo de Gil e Cae incomodam, ou o não levar a sério a alquimia de Benjor, ou ainda se irritar contra intelectuais juramentados que façam incursões em campos mais dionisíacos (o próprio caso da música de Nietzsche, a avaliação sempre pejorativa do violino de Einstein que não se escutou).

No fundo as pessoas ainda obedecem a uma suposta divisão estanque entre apolíneo e dionisíaco, e na epiderme são sensíveis a todas as rotulações e separações em estamentos da sociedade.

E Mautner leva para a música todas as suas questões intelectuais, ele não faz distinção entre as duas; é exatamente o mesmo, no máximo marcando a distância entre o som e o sentido pelos óculos de grau que coloca quando vai fazer uma conferência ou ler um livro.

Agora aprendemos com Apolo o que Dionísio já nos tinha revelado numa cerimônia iniciática com vinho especial e ditirambos: o Universo é mesmo muito complicado (e se interliga de múltiplas e inesperadas maneiras, como a cobra que morde o próprio rabo).

O próprio homem parece ser essa serpente (todo homem, todo ser, e agora estamos falando deste que “merece ser louvado”), pois encontra em seus sonhos os “estilhaços da paixão” dos “n” filmes que estrela, e até onde os projeta, é antigo e futuro, homem pré-histórico e “herói das estrelas”, destino hermafrodita da espécie (que já está configurado nos fetos humanos, que passam pelo estado de peixe, anfíbio e réptil antes de se definirem como humanos, assim como os dos macacos passam por todos estes estágios, inclusive o humano, para só então se especializarem como fetos de macacos), não surpreenderá se quando a porta do objeto voador não identificado se abrir, isto é, será a surpresa total, como na canção “Um Índio” de Caetano, for ele mesmo que vier nos encontrar.

Roberto Bicelli diz que Mautner:

/…/ por várias razões, é o mais bem aparelhado para conversar com extraterrestres. Físico e alma, é o mais bem sucedido espécime de sua geração.[4]

Já Caetano Veloso escreve, na contrapaca de Para Iluminar a Cidade:

/…/ só escreve clichê, com a originalidade de um marciano

E o próprio Mautner já cantava em 1958:

Os marcianos estão aqui

E eu só falo o que eu vi[5]

Tudo isso popularizou a desconfiança da razão que Friedrich Nietzsche tinha instrumentalizado. Mautner mesmo comenta sobre o “profeta”:

Se tivesse conhecido as Américas, o jazz e o candomblé, teria ressuscitado e vivido dois mil anos. No entanto era um europeu.[6]

E assim (e isso vai irritar até os que odeiam o filósofo alemão, que não o queria ser) o falso/verdadeiro filósofo brasileiro se apresenta alegre, feliz, saudável e cantor, como um Nietzsche que teve a sorte de ter um pai judeu perseguido por Hitler e devido a esse acidente nasceu no Brasil, onde se pode viver sem queimar combustível dia e noite para se aquecer e as cores são mais vivas do que um europeu poderia imaginar (e as misturas de corpos e ideias realmente ocorrem, como universos virtuais que correm paralelos em uma velocidade superior à da luz, e em uma outra velocidade ainda, superior àquela que tinha primeiro superado a luz, acontecem, se encontram).

Afinal, Eros e Thanatos, Apolo e Dionísio, razão e irrazão, yin e yang, por que teriam que estar tão bem guardados um do outro, tão separados? A vida é comunicação, é troca, tudo está em tudo, em fluxos manifestos e latentes que não param de se (re)criar.

Tal obviedade, em Nietzsche, em Mautner, até em César Lates (digo “até” porque ele é um cientista mundialmente respeitado, e mesmo assim causa espanto porque se põe a pensar), a muitos incomoda. Por quê? Talvez isso aconteça porque gostamos de acreditar que o guarda-sol azul que (pensamos que) nos protege do sol também nos protege do caos[7] (Mautner está sempre se referindo à chuva, com um sorriso misterioso e um gigantesco prazer secreto, ao me ver incomodado com o calor disse: “Logo vai começar a chover”, no meio de uma entrevista ao ar livre choveu, e ele falou: “A chuva é uma bênção”; quando ele se encontrou com Caetano e Gil pela primeira vez em Londres levava um grande guarda-chuva, como os óculos escuros que usa nos fotogramas da capa de Vigarista Jorge [quem é aquela gata?], e que são citados no início de “O Vampiro”, eles não podem esconder o choro, eles não podem evitar a chuva).

José Miguel Wisnik no estudo sobre a lírica de Gilberto Gil “O Dom da Ilusão” escreve:

É ilusão acreditar que algo perdure eternamente, que alguma coisa permaneça, e que o “eterno é” de “Era Nova” – “transcorrendo, transformando” – se confunda com o durar das “velhas formas do viver”, porque estas serão fustigadas pelo tempo, como a pedra mais dura é fustigada pelo “eterno vento” até que não reste “nem pensamento” (“Tempo rei”). Mas é também ilusão pensar que a ilusão seja apenas engano: o seu véu, que oculta de nós o caos gerador e destruidor que nos acompanha desde sempre e para sempre, é manto sagrado, protetor, que nos defende da exposição bruta e insuportável ao real e ao nada, o “nada nada nada nada”, o doze vezes nada que é por sua vez o véu do Criador.[8]

Notamos que Gil, como Caetano em “Pequena Oração ao Tempo” e principalmente “Força Estranha”, também adota uma visão pré-socrática, quando toma as sílabas de “panta”, tudo, em “panta rei”, tudo flui, de Heráclito, e as inverte, no brilhante achado “tempo rei”, o tempo é o rei, o tempo flui, o tempo é tudo.

O eterno retorno de Nietzsche é seletivo, e não se confunde com a “conflagração universal” e renascimento do mesmo simbolizado miticamente na Fênix e pensado no conceito pré-socrático e estóico.

Talvez o texto de Mautner entenda assim também (eterno retorno seletivo) o conceito de Nietzsche, pois fala em termos de tekné, o que joga o eterno retorno na realidade fenomênica e histórica. Ele mais adiante afirma que Nietzsche e Marx foram os dois pensadores a introduzir a práxis na filosofia.

Mautner procede à identificação pós-einsteniana de matéria = energia = tempo, e recusa a ideia linear de tempo (com seu conceito termo-dinâmico do Kaos ele afirma a convivência de tempos diferenciados em uma paisagem energética; note-se que Kaos é um conceito físico, a par de ser filosófico e artístico), assim também não aceita a teoria da expansão linear permanente do universo (todo energético-material), que implicaria na linearidade temporal. Sua teoria da pulsação cíclica aponta para um tempo também cíclico, onde cabe a diferenciação em espiral (“aumentar a intensidade das tensões”). O Kaos me parece mais afim com uma concepção de tempo como paisagem de simultaneidades diferenciadas e semi-comunicáveis, aproximando-se da concepção cósmica de Stephen Hawking.

Depois, há um ponto no Universo em que tudo começa a voltar e onde o tempo gira sobre si mesmo. Mais veloz que o raio da luz, corre aquela energia que nos deu a vida e o pensamento. E nesta velocidade maior, o tempo volta para trás revendo todas as coisas que foram, mas sempre com novidade. As grandes esferas se amam mutuamente, com um amor de fogo e água.

Não há verdade alguma no cosmos, só um ritmo de paixão.

/…/ O pensamento existe como, uma energia que invade todas as coisas e comanda todas as coisas. /…/

Todos nós caminhamos num mesmo barco, velejando em direção ao abismo, que é feito de sol. Nós andamos em direção ao sol. Depois da morte, nós nos transformamos em partículas do sol e de outros sóis que há pelo Universo.

A grande roda, que é o fim do infinito, está sempre cheia de acontecimentos e prenhe de novidades.  Nós sentimos estas realidades como profundas batidas no coração, como suspiros alongados e visões de serenidade profunda. /…/

Todos nós somos filhos da mesma coisa e somos a mesma coisa.[9]

O Kaos com K, Mautner não cansa de o afirmar, não é o caos com c. Ele, o poeta, não é um perverso, um destruidor total a dançar a dança de Shiva; ou um construtor subalterno; um incendiário aos vinte, um bombeiro (segundo Leandro Konder, aquele que lança bombas) aos quarenta.

Mautner é um homem e um menino, como disse Gil, que brinca com a bola que rola pelo espaço sem fim, sempre a se criar e recriar, como sua capacidade de compor sem parar, ou de falar através das horas, naves que passam vagarosas, ou ainda a sua escritura artesanal e técnica, supersofisticada e telúrica, fumaça de narguilé que sobe para o ar, obra de homem simples do povo e gênio, artefato pré-histórico e meta-cibernético, exercício do prazer permanente de pensar, artifício que produz novas eras porque as antigas já não eram mais suportáveis.

O pensamento lança uma longa seta para outras épocas, Nietzsche disse que o filósofo é uma flecha que a natureza dispara sem olhar o alvo, mas que ela espera que acerte em algo, e o pensador joga o seu dardo erótico e exótico como sonda ou batiscafo dos tempos e espaços, não se contentando em tentar desvendar o mistério das grandes corporações, que pagam impostos ou não, e que dividem o poder meta-estatal no nosso país atualmente, ou quem foi que inventou o Brasil, nossa cara, nossa identidade (e que identidade esse homem sem pátria pode ter? talvez a de cantar com Caetano em língua brasileira: “eu não tenho pátria, eu tenho mátria e quero fátria”[10]), ou as causas de as coisas estarem como estão,  tudo isso ele investe e investiga, é pensador político e histórico tanto quanto trans-político e trans-histórico, tudo que se pensa é poder, e a vida é poder.

Descobriu-se que, no Amazonas, havia uma civilização tipo Inca. O império Inca nasceu aqui e foi para lá. Tudo é de uma riqueza incomensurável. É a nossa pré-história.[11]

Ele se questiona sobre o futuro querendo chegar lá, estar no que se pode ser, sobre espaços e tempos alternativos (outras costuras da malha, e fala e escreve e canta as outras dimensões para lá da quarta), e assim também se estende para o passado, quer saber quem são seus pais, e seus avós, de onde veio sua gente, de Viena, na Áustria, só que esta foi um posto de parada, pois essa gente vinha lá da antiga Israel, e para o outro lado da família as margens do Danúbio são gare também, pois essa outra gente veio da Macedônia, é eslava, e tem uma mistura com os gregos (percebe também que a pré-história europeia é uma miscigenação desenfreada, quase igual ao Brasil), e volta mais, para encontrar nos próprios traços fisionômicos da testa e do maxilar os indicativos de uma das primeiras mesclas raciais radicais, do Homo sapiens com o Homo naerdentalensis[12].

E afirma:

Meus livros podem ser lidos separados, juntos, rasgados, queimados, triturados e cuspidos e incensados com glória que dá na mesma, escrevi, desabafei, e fiquei cada vez mais louco! Ah! Ah! Ah! /…/ – “Mautner agoniado supremo, Novo Nietzsche, Nietzsche da América Latina, diga, diga, você sabe um automóvel aonde há?”[13]

Seu xará São Jorge (que lhe aparece disfarçado em vagabundo, após o aparecimento de seu primo Jesus Cristo, e nos três o personagem-narrador reconhece os artífices da nova era) lhe dá uma espada dourada para que ele mate a vampira serva de Satanás, e assim se libertar da maldição do beijo que ela lhe deu, de ter que se tornar um vampiro, ele também. Jorge vai atrás dela:

/…/ E fui, simplesmente fui. E o vagabundo sorriu e ficou lá na escuridão daquela noite de lua seca e má e eu fui para o castelo dos vampiros tranquilamente e feliz um pouquinho. Ah! Espada! E cheguei em frente ao castelo. Olhei para ele e gritei: – “Vampira! Vampira que me mordeu! Vampira eu te amo! Vamos praticar o ato sexual? Vamos praticá-lo agora já que eu sou vampiro que nem você por causa da tua mordida?” E ela saiu, e ela estava bela e bela, ó bela! E eu não tive coragem de matá-la e joguei a espada fora e abracei-me com ela e entrei no castelo e nós nos amamos e agora eu sou vampiro. Ah! Ah! Ah![14]

Em 2004, Jorge Mautner conta, no Jornal Zero Hora, sobre a falsa notícia que foi propalada em 1972, quando foi cantar pela primeira vez em Porto Alegre:

Surgiu então a notícia de que eu tinha falecido em um acidente de avião. Foi uma jogada dos promotores do show. Na hora, tinha umas 20 mil pessoas para me ver no Gigantinho.[15]

Finalmente, fim sem fim, rejeita o ressentimento e não se deixa envenenar pela culpa, mesmo que este sistema “todo errado” tente o tempo todo jogar sobre ele sua inadequação, e mal lhe conceda espaço para seu coração de poeta e pensador, que ele sente chutado o tempo todo por alguém (quem?) que não lhe quis:

Eu não peço desculpa

E nem peço perdão

Nào, não é minha culpa

Essa minha obsessão[16]

Tópicos que caracterizam a arte-pensamento de Jorge Mautner (sem prioridade lógica ou cronológica, são aspectos sempre presentes, que convivem o tempo todo em seu arte-pensar):

– A identificação entre o fazer e o pensar, que redunda da identidade entre “natural” e “artificial”; o ser humano, cônscio de que não há uma “natureza” prévia das coisas e de si mesmo, torna-se “demiurgo” ele também, e pode realizar/fazer sua “poiésis”, sua arte, não mais como cópia ou simulacro, e não mais necessitando colocar ali mímesis ou verossimilhaça; a arte torna-se pensar porque se produz como um arte-fício (ficção da arte, fruto da vontade).

– A não-delimitação de qualquer espécie, gênero, número, grau etc. Assim o “poeta” (no sentido amplo e abrangente daquele que faz o artifício) está sempre pronto a experimentar novas formas de arte, e tal conceito tem uma enorme abrangência, bem como a realizar novas experiências em campos já conhecidos ou ainda ignorados, e a inventar. Assim faz textos (poesia, ensaio, ficção, tudo ao mesmo tempo) E faz música E toca E canta E faz teatro E pinta E desenha E faz cinema E… Sempre tem o que dizer, seja em uma conversa casual, seja em um livro, o espírito pede mais um E mais um E mais um E mais um E mais um E… (Esta vontade acoplada ao modo de viver e ao pensamento está expresso na canção a “Matemática do Desejo”: “Na matemática/Diz!/Do meu desejo/Eu sempre quero mais um mais um mais um beijo…”).

– Corolário do tópico anterior: JM tem sua própria versão do “verbivocovisual”, que muitos vão rotular com as palavras da moda multimídia e performer; no entanto tais rótulos não signficam nada, hoje em dia qualquer artista faz (é forçado a fazer) utilização da multiplicidade simultânea de meios de comunicação, como exigência técnica e da mentalidade de nosso status social e técnico. JM faz canções tão visuais que são filmes[17], escreve quando canta em seus shows e para a música e fica falando como conferências minimalistas no meio das canções, faz de seu corpo o “cavalo” de inúmeras interpretações, e escritas ideogrâmicas corporais também (vejam o símbolo do kaos fazendo tai chi em Fundamentos do Kaos) etc. (isto é, E outras coisas mesmo).

– Diálogo privilegiado com a pensamento ocidental, seja em um livro de ensaios (Panfletos da Nova Era, Volume 1, Fundamentos do Kaos), seja em um livro de ensaios poéticos (Fragmentos de Sabonete), seja em um livro ensaios ficção (A Floresta Verde Esmeralda), seja em um romance (Deus da Chuva e da Morte, Kaos, Narciso em Tarde Cinza, Sexo do Crepúsculo), seja em um livro de poemas (Poesias de Amor e de Morte), seja em um livro de contos (Miséria Dourada), seja nos filmes (que dirigiu, roteirizou ou nos quais trabalhou como ator), seja nas canções, seja nas palestras, seja nas aulas, seja nos shows, seja nas conversas comuns. Implicação deste ponto: JM não cultiva preconceito nenhum. Assim, muito mais do que a grande maioria dos acadêmicos e eruditos, ele aceita todas as linhas filosóficas, e dialoga com elas, aceitando no sentido de ver ali uma construção importante e fundamental (um dos “fundamentos do Kaos”), mesmo que pareçam para a mentalidade comum de hoje em dia ser contraditórias; o que também não implica em uma geleia geral, ele constrói o seu percurso e mantém a linha de seu pensamento, como o curso do Amazonas, o maior rio do mundo, que vai sempre na direção do mar, aceitando a contribuição de incontáveis afluentes.

– Corolário do anterior: JM não tem medo nem rejeita as contradições. Muito pelo contrário, ele as cultiva, como solo apropriado para a geração de paradoxos, a essência do próprio pensamento e o modo mais comum da existência.

– Afluente para os dois tópicos anteriores: vivemos em um número muito grande de dimensões espaço-temporais, apesar de termos a ilusão cognitiva de que estamos em três dimensões espaciais mais uma única temporal. Este quarto de quatro paredes fechadas é angustioso e falso, limitador, e se deve menos à nossa capacidade de percepção e cognição e mais a condicionamento social, mental e perceptivo.

– Questão paralela: assim como todas as principais correntes do pensamento passam por sua fala, apesar de ele fazer o seu percurso e ligá-las numa decupagem toda própria, que expressa sua própria visão de mundo, todos os gêneros e estilos lhe são caros, e ele escreve e compõe utilizando o máximo de recursos e efeitos técnicos que consegue amealhar, sem no entanto ser insosso e desnorteado; há um estilo de base, um arquétipo ou construção geral dentro da qual ele encaixa as várias metaformoses, exercícios e máscaras artísticas. Não é fácil determinar essa arquitetura, e não há a mínima dificuldade em percebê-la. Ela não tem nome pré-existente, justamente porque ele a inventou, é o estilo de JM (que podemos chamar de JM com K[18]). Um dos traços mais frequentes e um dos estilos que mais lhe são aparentados é o surrealismo. O fantástico, o expressionismo e o experimentalismo também são muito fortes. Por outro lado tem características barrocas (influenciado especialmente por Pe. Antônio Vieira), modernistas (Macunaíma de Mário de Andrade é um dos “riverruns”), do romance russo, do romance joyceano, da Bíblia e dos pré-socráticos.

– A arte-pensamento de JM é o tempo todo política, com tanta radicalidade que podemos dizer também que ela é a-política ou super-política (supera a pólis em favor do cosmos e do advento do super-homem, enquanto que o entendimento comum da política é ultra-conservador, quer manter a visão setorizada e o estado de consciência já atingido; mal percebe ela que é como um equilibrista, só pode manter-se na linha indo sempre em frente). Em JM revolução ganha um significado menor e maior, micromolecular (“microfísica do poder” de Foucault, “revolução molecular” de Guattari) e galática, ao mesmo tempo se afirma como “soldado revolucionário” e “herói das estrelas”. JM entende política como poder em todos os sentidos, e não como representação do poder (por isso o senhor do castelo é Nietzsche, que honra seus convivas).

– Equivalência: JM faz arte-pensamento trágico, no sentido nietzscheano do termo, isto é, afirma a necessidade da existência, o amor fati.

– A mulher tem lugar de primazia, o “universo é essencialmente feminino” como escreveu Carlos Castaneda. O matriarcado redescoberto por Bachofen como a forma de organização social na qual a humanidade passou mais de nove décimos de sua existência, e que era muito mais equilibrada e saudável, e à qual a Terra e o homem retornam como um ciclo, esta descoberta gerou Nietzsche, Freud, Marx e Mautner. A linha invisível e sempre sensível que liga estas quatro filosofias é a linha do matriarcado, que tem como complemento inevitável o nomadismo (v. “Tratado de Nomadologia” e “Aparelho de Captura” in Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari).

– A arte-pensamento de JM é nômade, está ligada a esta ética-pensamento milenar e marginal, que aposta fundamentalmente na vida, contra todas as capturas que o “nazismo universal” (expressão utilizada na música “Cidadão-Cidadã”), intersticial, espalhado, conjuntural, que a maquinaria do estado não para de fabricar (v. Kafka) contra a liberdade de vida-pensamento.

– A interrelação total e em tempo integral entre arte-pensamento, ética-pensamento e vida-pensamento.

– O sexo é bom e tudo é sexo (o que é diferente de dizer que tudo é genitalidade, conjugalidade etc.). O Brasil de JM não é o país da bunda, a “festa de bombom e de bumbum” de que nos fala. O pan-sexualismo de Mautner é dionisíaco e crístico, é o amor por todos os seres, pois tudo que é vivo e até mesmo todas as coisas são expressões a modulações da mesma vida que brota (Proteu).

Chovia quando eu e minha companheira chegamos em São Paulo.

Eu tinha ido fazer uma entrevista com Jorge Mautner, mas a entrevista não saiu desta vez. Eu também tinha recebido a incumbência de encontrar um signo que me guiasse na obra, e olhava para tudo com redobrada atenção, os olhos bem abertos, procurando.

Nem considerei a possibilidade do signo ser a chuva.

Até que encontrei o desenho de Ouroboros com a inscrição que logo me interessou porque eu gosto de ler os textos alquímicos e a pichação era totalmente diferente de todas as outras, tantas, e bem humorada, com seu conselho em inglês, a cidade se tornando como as catedrais um livro de pedra, e um alquimista anônimo e contemporâneo substituindo o arquetípico latim pela nova língua universal.

Coloquei a imagem na primeira página do ensaio, o que muito agradou a Jorge, e o porquê eu só vim a descobrir no ano 2000, quando, para reescrever o texto, reli todos os seus livros; deparei-me então com a surpreendente informação que está na página 35 de Panfletos da Nova Era, que eu já lera várias vezes antes sem nunca atinar com a coincidência: Dora Ferreira da Silva apresentou Jorge Mautner na sua estreia na Revista Diálogo como o Ouroboros.

Agradeço ao espírito pelo signo que me proporcionou, e que é tanto meu quanto dele, de sua obra e da minha, a univocidade do universo, o ser da tempestade e do Kaos.

Porém agora, dez anos depois, quando em menos de dois meses reescrevo o trabalho, em setembro e outubro de 2000, e falto a quase todas as aulas das escolas, e deixo de corrigir as provas, e levo um monte de broncas por não ter entregado as notas do bimestre, pois não consigo me afastar destas páginas, preciso escrever, fico até vinte horas por dia trabalhando no livro, agora eu considero a hipótese que também tinha me passado desapercebida: e se o signo fosse a chuva?

A chuva o tempo todo presente nos textos e nas canções de Jorge Mautner, emblema misterioso, para o qual tenho várias hipóteses e nenhuma conclusão. O que é a chuva na poética de Mautner? A tristeza, a solidão? A alegria sexual e animal do amor na chuva? A tempestade que vergastou durante milênios a Terra primitiva? A higiene da atmosfera (e atma é uma palavra sânscrita, que quer dizer alma)? O ciclo da morte e da ressurreição? A imagem da matéria-energia cósmica em sua fúria tempestuosa?

Eu pensei o tempo todo que o signo tinha que ser algo escrito num muro ou numa folha de papel. Acontece que chovia quando eu cheguei em São Paulo, chovia quando o avião decolou e eu fui embora, passando mal, minha alergia exasperada pela poluição da cidade. No mesmo avião iam o meu professor de filosofia do curso de interpretação teatral e, no banco em frente ao meu, cara a cara, Guilherme Arantes com uma nota musical dourada num cordão, ao lado um americano pragmático, sem cara de turista. Eu olhava as caras, as nuvens, a comida, o céu, e vomitava.

O americano, que não sabia português, dirigiu-se a mim, solícito, tentando ajudar. Eu quis responder e não consegui.

Era a primeira vez que eu ia a São Paulo e fiquei maravilhado com a cidade, passei em êxtase pela esquina da Avenida Ipiranga e da Avenida São João, em direção à Praça da República onde existia um show de Mautner, depois do qual fomos aos camarins, e lá estávamos quando chegou um homem do povo entusiasmado, exclamando:

– Parabéns! Poeta! “Espada de luz! Espada de luz!” Poeta!

O americano falou com o Guilherme, que estava preocupado, um chão de nuvens abaixo de nós, não sabíamos se havia como pousar, ele toda hora olhando para o relógio, e o americano puxando conversa, dizendo em inglês que achava que dava pro avião descer, mesmo com aquele teto. Guilherme respondeu em português, fez questão de não falar a língua do outro, ele que entendesse se pudesse. Mas ele fez isso com doçura, e até me arrumou um saquinho de plástico pra vomitar.

No Rio existe o sol. E eu melhorei.

O início foi ouvir “Quero ser locomotiva”  e rir feliz e alegre com a letra, cantada por Vanderleia, no programa do Chacrinha, nos jovens anos 70. Logo depois sorrir e pensar com “Samba dos animais”, agora na voz de Marília Pera. Mas eu não sabia que as músicas são de Jorge Mautner, nem me importava com autoria, na época.

No Festival Abertura, ainda na tela da tv Globo, 1974, vi e ouvi Mautner cantar “Bem-te-viu”, dele e do Jacobina, tocando seu violino, e amei aquilo, carnaval total, coisa nova cheia de coisas antigas reinventadas.

E logo, no ano seguinte e ainda em 1976, havia uma rádio no am da época, chamada Mauá, que depois mudou o nome para Ipanema, e que só tocava música popular brasileira de qualidade, inclusive coisas consideradas alternativas, como o Mautner. Ali ouvi algumas canções e comecei a reconhecer o compositor.

Quando eu tinha dezoito anos estava cursando Biologia e quase pirando, pois não encontrava ressonância nas pessoas para o que eu pensava e sentia. Andava muito deprimido e desesperado. Tive a sorte de saber de alguma forma que iria haver um show de Mautner no Teatro Sesc de Tijuca, eu morava no Méier, e meu irmão topar ir junto com a namorada dele. Se o show fosse mais longe ou ele não quisesse ir eu não teria ido assistir àquele show que foi tão importante na minha vida.

Achei tudo importantíssimo, lindíssimo, sensacional, todas as canções, as letras geniais, a forma de cantar, as falas, o violino, os músicos que o acompanhavam, o jeito à vontade de ficar no palco, sem medo, só de calça Lee, e descalço.

Ainda por cima, depois do show, sentar na escadinha do palco baixo, para falar de filosofia com a plateia. Meu irmão quis porque quis ir embora, não deu pra ouvir todo o debate, mas eu estava fisgado.

Me tornei compositor, poeta, alternativo, escritor, fiz faculdade de filosofia.

Ao ingressar para o mestrado de literatura brasileira eu tive a ideia de fazer a minha dissertação sobre Jorge Mautner.

Proteu se apresenta como um projeto singular: resgatar uma memória que é viva, presente, cotidiana – e que, no entanto, pelos motivos expostos, como se apontou ao longo do texto, tenta-se fazer calar e recalcar.

Investigar a mitologia do caos e do cosmos e a anti-mitologia do Kaos, numa reversão da tradição ocidental, na obra multifacetada de Jorge Mautner, que entende o Kaos como germe de todos os cosmos, o meio fecundo para a irrupção de muitos mundos e infinitos universos – e para tanto, dialogar com a chamada contracultura do século XX; a antropofagia latente em nossa cultura, que Oswald de Andrade desvelou e Jorge Mautner potencializa como antropofagia eletrônica e maracatu atômico; e com a filosofia da expressão, que vai de Heráclito a Deleuze, em constelações de pontos intensos, contra o fundo negro e em contrapartida aos buracos negros as supernovas, as cintilações de todas as afirmações.

Trazer estes temas para a leitura da obra de Mautner e demonstrar a seriedade deste autor, as potentes ligações filosóficas, artísticas e até científicas que ele faz, apontando o quanto elas ainda são subterrâneas no Brasil do Terceiro Milênio, isto tudo foi uma primeira e necessária tarefa a que aqui me propus.

A partir de agora é necessário dar continuidade a este trabalho, com análises críticas mais detidas em cada livro, conto, letra, poema, ensaio, filme etc., para que não se perca no esquecimento grande parte de nossa produção cultural, principalmente a produção de ponta (de pesquisa do pensamento, que em arte chama-se vanguarda), como sói, entre nós, acontecer.

Há uma lógica nova se impondo na humanidade, para além da tradicional, que já esgotou as suas possibilidades, com suas aporias, os seus becos sem saída, seus genocídios, suicídios, covardias, explorações e niilismos.

O niilismo é o sinônimo da razão clássica que ainda impera no senso comum e nos mais diversos saberes, e que faz pensar que nada haveria para nós fora das quatro paredes paradas do quarto de nossas representação, conceituação, juízo e raciocínio.

Já a nova lógica aparece, por exemplo, em alguns artistas de vanguarda, como Jorge Mautner. É ele mesmo quem fala, e com tanta insistência, sobre outras dimensões da mente, que nem todos estão em três dimensões, alguns estão em mais, porém o homem racional está em três.

Só que é possível para o homem atingir outras, muitas outras dimensões, o que alguns artistas conseguem: Johann Sebastian Bach, Pixinguinha, Jimi Hendrix.

Vemos aí a estranha fusão que é um dos motivos da obra do escritor, poeta, compositor e cantor Jorge Mautner: a nova síntese dos elementos clássico, popular e pop, uma mistura de muitas raças para lá do número três.

Em 2007, Mautner lança o deslumbrante CD Revirão, que marca a virada do milênio, na sua obra.

Na capa ele aparece em duas fotos fundidas, uma vestida de camisa verde e outra de vermelho, num círculo, numa roda, numa bola que gira, sempre de cabeça pra cima e pra baixo, no movimento sem cessar, yin e yang, a rotação do disco e do mundo.

Que fotos significativas no encarte! É como um filme, firme; sobre um vale e uma baía entre montes, que poderia ser e não ser a Baía de Guanabara, uma Guanabara selvagem e dura, forte, ontológica, com nuvens de tempestade e sol no horizonte, ele toca violinho, e vemos linhas de força do cosmos no formato do infinito, o oito, verdes e vermelhas, que vêm da sua música, ele vem delas. Jacobina sorri simpático ao lado de uma partícula quântica, uma pura energia, fazendo uma espécie de anel de Moebius, dentro de uma caverna com pinturas rupestres. Jorge discursa segurando seu violino na ágora de Atenas, e ao longe vemos a acrópole, mas no céu as linhas de força falam de tempo aiônico.

Na contracapa ele está na selva, e sua camisa é metade verde metade vermelha.

“Os pais” e “Outros viram” são parcerias com o Gil (que canta a segunda, com ele); “Assim já é demais”, “Olha só quem passa” e “Estilhaços de paixão” são só dele (mas esta regravação dos estilhaços tem Caetano e ele); com Nelson Jacobina, Jorge Mautner fez neste CD “Ressurreições”, “Ao som da Orquestra Imperial”, “Nicanor”, “Executivo-Executor” e “Juntei a fome com a vontade de comer”.  Deste álbum, são ainda composições de Mautner com Bartolo, “Kilawea”, Bem Gil, “Acúmulo de Azuis” e Ronald Pinheiro, “A história do baião”.

Te amei no dia em que te vi domando um bando de leões

Domando aquelas feras, conquistando os corações

Dizendo que o amor nunca morre porque tem ressurreições[19]

Vejamos novamente o silogismo de Mautner: anti-mitólogo, antiescritor, logo antimaldito.

Ser anti é uma glória e uma praga para o artista, antipoeta, anticantor, e não por deficiência – por excesso. Por amor e comprometimento com a vida.

O que mais seria necessário dizer?

Há a possibilidade da transmutação do homem e do Mundo, Nietzsche puxou orelhas e martelou até que no século XX viessem algumas respostas de algumas das suas maiores inteligências, inquietas, criativas, heróicas.

Agora todos clamam pelo super-homem.

Fim ou começo da nossa história, meta provisória para nosso florescer, dele também trata o poeta Jorge Mautner, talvez algumas citações e observações aqui constantes deixem entrever – e a mais não pretendeu este trabalho.

Senão, ir à fonte.

Nossa fonte nunca se esgota, esta é a mensagem da arte mais potente, o que nem sempre é tido pela melhor ou grande arte.

Ou, como nosso poeta gosta de fechar sem fechar os seus romances:



[1] MAUTNER, Jorge. “Homenagem a Oxalá” in Mil e Uma Noites de Bagdá. Esta música é um ponto de umbanda ou candomblé.

[2] ­­­­_______. Fragmentos de Sabonete e Outros Fragmentos, 2 ed, Quinto Fragmento, p. 115.

[3] Idem, ibidem, pp. 116-117.

[4] Ala Jorge Mautner, publicação da Funarte – São Paulo, p. 11.

[5] MAUTNER, Jorge. “Os Marcianos” in Pedra Bruta.

[6]  “Nietzsche o Profeta total”, in Panfletos da Nova Era, pp. 140-142.

[7] V. Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI, O que é a Filosofia,  “Do Caos ao Cérebro”.

[8] WISNIK, José Miguel. “O Dom da Ilusão” in GIL, Gilberto. Todas as Letras, p. 17.

[9] Fragmentos de Sabonete, pp. 39, 42-43 e 46-48.

[10] VELOSO, Caetano. “Língua” in Velô, Philips, 8240241, 1984.

[11] MAUTNER, Jorge, Outros 500, pp. 82-83.

[12] Afirmação feita por Mautner em sua conferência pronunciada na “Roda de Leitura” do Centro Cultural Banco do Brasil, em 6 de setembro de 2000.

[13] MAUTNER, Jorge. Kaos, pp. 135, 136.

[14] Idem, ibidem, p. 172.

[15] Zero Hora, 15 de outubro de 2004, Segundo Caderno, p.4

[16] MAUTNER, Jorge. “Todo Errado” in Eu Não Peço Desculpa.

[17] Foi justamente no disco Cinema Transcendental que Caetano Veloso (cineasta virtual também, e real também, ao dirigir Cinema Falado) vai fazer sua única gravação de canção de Jorge Mautner em disco seu: “O Vampiro”, que ele mesmo havia cantado no filme que Mautner dirigiu: O Demiurgo.

[18] Lembrando da “função K” que Deleuze e Guattari atribuem a Kafka em Por Uma Literatura Menor.

[19] MAUTNER, Jorge e JACOBINA, Nelson. “Ressurreições”, in Revirão.

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