DESAFIOS PARA UMA GESTÃO ÉTICA NO TERCEIRO MILÊNIO

Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais.

(Félix Guattari)


GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. São Paulo: Papirus, 1990, p. 9.

Quais são os maiores desafios para a ética empresarial no terceiro milênio?

Hoje em dia o capitalismo, se se globalizou e atingiu o seu auge, “capitalismo tardio”, segundo Frederic Jameson, também se colocou como um emaranhado de crises, cuja resolução é muito difícil de antever.

Uma delas diz respeito à própria dinâmica do capitalismo, que precisa sempre da expansão e da criação de novos mercados para a manutenção do status quo. Isto quer dizer que, se uma empresa obtém o mesmo nível de lucro no ano seguinte, ela está no vermelho; o seu lucro só se garante quando em expansão.

A situação globalizada do mercado, que se apresenta como o máximo da capitalização das relações, também aponta para uma crise permanente: a limitação futura (na verdade, presente) da expansão desse mesmo mercado.

E quais as respostas das empresas a esse problema? A criação artificial de demanda, a busca por criar mais consumo, ultrapassando todas as barreiras normalizadoras que o próprio capitalismo industrial do século XIX ajudara a consolidar, dentro do paradigma de uma moral burguesa e de uma visão de mundo humanista.

Outra crise premente relacionada ao estágio do capitalismo globalizado é a contingência ecológica, a relação dos sistemas vivos, geográficos e econômicos entre si, num desequilíbrio constante, num efeito em cascata de inadequações ambientais, sociais e culturais, que levam a graves riscos para várias espécies, inclusive a humana.

Claro que esses três efeitos/crise se integram e interligam, e, mais, se retroalimentam. O que aparece visivelmente com maior gravidade é o problema social, as disfunções entre produção, mercado e consumo, gerando desde a miserabilização artificial de camadas vastas da população até aquilo que Thorstein Veblen chamou de o “consumo conspícuo”.

O homem vebleriano tem um grau de complexidade bem maior que o seu correspondente neoclássico. Ao invés de uma escala de preferências, ele possui, ou melhor, é possuído por propensões instintivas contraditórias; os objetivos sugeridos pelo instinto predatório e de trabalho eficaz estão em patente conflito. Esta incompatibilidade dos desejos aponta para a existência de uma irracionalidade estrutural dos indivíduos, segundo Schneider (1948, p 112). Para Veblen, tal como na visão de Freud, estes conflitos internos não se mostram para a consciência dos indivíduos, e as ações seriam um fenômeno superficial influenciado por esses processos ocultos. Tais atos têm de ser mediados por algum esquema teórico para que adquiram significado; por si só, eles pouco informam acerca dos objetivos últimos dos agentes.

Note-se bem, os três problemas estão totalmente integrados; não é só a questão de como continuar gerando lucros, e sim, como continuar expandindo o mercado, movimentando o capital, lidar com a velocidade das mudanças das normas e ainda assim preservar uma convivência qualitativa, levando ainda em conta as questões social e ambiental.

Os três vórtices não só se integram, como são, os três, eminentemente problemas éticos. Quer dizer, são questões que dizem respeito à felicidade humana, aos valores e aos comportamentos dos seres humanos. Não devemos mais nos pensar como indivíduos ou espécies isoladas: o que ocorre no social e no ambiental está o tempo todo presente no dia a dia de cada um de nós. Como já dizia Félix Guattari, o que há o tempo todo são as três ecologias: a mental, a ambiental e a social. Somente considerar uma é errado: o equilíbrio mental depende do ecológico e do social, e todas as outras relações, também.

Por isso são tão necessários uma reflexão e um pensamento criativo a respeito das relações entre a empresa e a Ética.

A Ética é uma reflexão filosófica a respeito do comportamento humano, dos valores que o norteiam e das relações entre os homens, em nível pessoal e social, tendo em conta esses mesmos valores e as ações que eles determinam.

A Ética investiga as respostas comportamentais e normativas que o ser humano desenvolve como consequência necessária da sua propensão a ser um animal que distingue opções, leva em conta valores simbólicos e faz escolhas.

E ainda, a Ética é o estudo da felicidade humana, quais valores a promovem, e como o indivíduo pode se encaminhar na sua direção, através de seus valores e atos.

No século XX, a sociedade ocidental se deparou com um poder das empresas e das mídias (meios de comunicação de massa) nunca antes encontrado na sociedade humana.

A propaganda de uma empresa, por exemplo, pode ter um impacto social tremendo; os seus produtos podem ter repercussão e efeitos gigantescos; a sua produção e consumo podem ser ambientalmente devastadores.

Empresa e mídia se acoplam, dentro das estratégias de marketing, para usufruir desse poder, no sentido de tirar as melhores consequências mercadológicas dele.

Esta situação social, onde a equação, que tem como termo comum o lucro e a única constante o capital, abandona rapidamente todos os valores instaurados por um modo de vida burguês e liberal, a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Vivemos estressados, numa sociedade pró-maquínica, mas, anti-humanista.

No dizer de Olgária Matos:

Sociedade pós-ética é a sociedade “pós-humanista”, uma vez que nela os laços telecomunicativos entre os habitantes de uma sociedade de massa não se fazem pela leitura, como vimos, geradora na tradição greco-latina, de amizade, sociabilidade e afabilidade. Criticar a cultura contemporânea requer incluir a crítica à mídia em nome do modelo amigável da sociedade literária. Assim como na antiguidade romana o livro perdia sua luta contra os anfiteatros de gladiadores e todos os teatros de crueldade, hoje a educação formadora do espírito livre, de tolerância e compreensão do outro, está sendo vencida pelas forças indiretas das mídias padronizadoras da sensibilidade e do pensamento.[3]

Assim, em face ao poder incomensurável que a tríade profissão-empresa-mídia passa a desempenhar no século XX, a par da cada vez maior conscientização dos eleitores da responsabilidade e da força da prática política convencional, surge a demanda por uma ética política e uma ética profissional, que vai se desdobrar ainda em ética da empresa e ética da propaganda e da mídia.[4]

Há também a questão do gigantesco poder criador e destruidor das novas tecnologias biológicas, com assustadoras pesquisas sobre transgênicos, clonagem e engenharia genética, técnicas que prometem gerar novos produtos e maiores possibilidades de lucros; isto é, a própria vida é manipulada por uma nova engenharia, e é vista como produto mercadológico. Assim, temos mais esta denominação, a bioética.

A força que a sociedade tem para exigir transparência das políticas, empresas e profissões é enorme, em potencial. Na verdade, esse poder depende totalmente do grau de conscientização da população que abrange, da sua qualidade educacional, da sua consciência política e do seu acesso aos meios de informação.

No Brasil, temos a tradição secular de o povo ser alijado das questões políticas, e isso se rebate em um desinteresse generalizado pela política institucional, pelo papel e o desempenho da mídia e das atuações das empresas.

A questão política de nosso país passa necessariamente por uma profunda reforma educacional, não só no sentido específico da empresa escola, seja privada ou estatal, mas da própria visão de acesso do cidadão comum à formação, à informação e às demandas sobre políticas, serviços e produtos.

O cidadão precisa se integrar ao seu poder de cobrar qualidade de vida, antes de tudo, qualidade essa que se manifesta em setores essenciais como política de administração civil, construção, trânsito, saúde, transporte, segurança, previdência e educação. Mas que também transparece em setores secundários, como outros tipos de serviço, e da linha de extração/produção/distribuição/propaganda/consumo.

O cidadão deve se conscientizar que tanto o governo quanto as empresas trabalham para ele, que ele é quem lhes paga por seus serviços e produtos, e que ele tem o direito de acessar todas as informações sobre esses serviços e produtos, tais como: modo de produção, origem do capital, percentual de taxas, consequências ambientais e sociais, fórmulas, efeitos sobre a saúde, o ambiente, a sociedade etc.

Educar então começa por dar recursos de pesquisa e análise sobre todos esses elementos da empresa (considerando inclusive o próprio estado como tal), para facultar a todos os cidadãos o status de consumidor em uma democracia, isto é, o elemento que paga e recebe os produtos e serviços (inclusive os políticos e gerenciais governamentais, vale repetir) com plena consciência dos fatores envolvidos e das suas consequências.

Vemos bem que educar então é uma fase do mesmo processo político, que podemos chamar alternativamente de gerenciar: cada vez mais as várias faces da questão ecológica se integram, os meios de produção e consumo se integram, mas, também, cada vez mais, os aspectos da cultura e da vivência humana também se integram, quer dizer, só se pode pensar numa qualidade de Administração pensando numa melhoria da Educação e da Política.

Vários estudiosos colocam o problema de estarmos vivendo uma época pós-Moderna ou pós-Contemporânea, caracterizada pelo capitalismo pós-industrial e pelo neoliberalismo. Tantos prós e contras, pós e neos, tanta retomada reestruturada, tanta revisão e reengenharia, acabam confundindo as pessoas e as empresas. Quais os valores que ainda se sustêm hoje? Como pensar na manutenção de valores numa época de cada vez maior velocidade de convívio e de transformação? Que valores transmitir para as novas gerações? Que valores podem a política, a escola e a empresa defender e praticar?

Primeira questão para deslindar a caminhada nessa selva: a globalização é uma rua de mão dupla. Se, por um lado, o mesmo refrigerante e o mesmíssimo filme são igualmente “amados” por consumidores de virtualmente qualquer latitude e longitude, por outro lado esse refrigerante e esse filme perdem o “sabor”, quer dizer, o seu tom cultural, o que se rebate em dizer que eles perdem os seus valores, já que a valoração simbólica humana é cultural, ela depende do contexto de uma civilização à qual se integra. Podemos ver aí a origem da crise moral da qual o capitalismo tardio usufrui. Vejam bem, não só a crise moral pela qual passa a nossa sociedade, mas, também, aquela que permite a equação: tudo igual mercadoria, que acaba por gazeificar todos os valores morais criados e sustidos por nossa própria sociedade capitalista algumas décadas antes.

Como discernir valores globalizados[5]? Sem poder se apegar a valores transtemporais (como se supunham antes, e não eram) nem setorizados por classes, faixas e regiões, tendo que se comunicar e atuar globalmente, os homens ainda procuram por valores. Uma ética é uma busca pela eficácia de valores. Uma moral é a certeza do comportamento orientado por certos valores. De novo a pergunta: que valores buscar, os quais possam ser globais e aos mesmo tempo transitórios, planetários e ao mesmo tempo topológicos (isto é, atendente a regiões, culturas ou até mesmo grupos específicos)?

A própria ideia e a prática da democracia, como espaço que permite a instauração da empresa e a livre iniciativa, e ainda faculta o exercício de quaisquer atividades e serviços e o desenvolvimento individual, e a sua atuação, essa democracia pode servir de parâmetro ético transversal, que possa ser usado globalmente, sem entrar em choque com as diferenças culturais, tanto quanto o mercado internacional o permita.

É na democracia que podemos encontrar um modelo, um parâmetro, para a ética das empresas, da política, das profissões e da biotecnologia.

Qual o interesse da maioria, em tal caso? Qual o consenso obtido após a divulgação ampla da questão, do apoderamento de seus dados totalmente transparentes por todos os interessados e da deliberação de uma maioria expressa como consumidores, mercado, eleitores ou audiência? Quando todos sabem amplamente os aspectos de um problema, ou conhecem bem um produto que lhes é oferecido, e manifestam a sua decisão sobre isso, cabe ao governo, à empresa e à mídia corresponder a esse desejo coletivo.

Isso seria um avanço maravilhoso no processo de democratização, totalmente coerente com as propostas de globalização do mercado; e ainda apresentaria novas e potentes soluções para as crises econômicas, financeiras e políticas.

Por exemplo: uma certa empresa produz tais artigos. Quais as condições da produção? Como trabalham os operários? Qual o percentual de impostos implicado no preço final? Qual a taxa de poluição de seus produtos? Como eles reagem no organismo das pessoas?

O interesse de divulgar tais dados é o maior possível da própria empresa. Quando todos os envolvidos (prestadores de serviços e consumidores) conhecerem-nos, podem manifestar a sua posição diante deles. Tipo: me interessa que para produzir tal rádio mulheres de várias faixas etárias, inclusive férteis, grávidas e lactantes, lidem diretamente com produtos de alto poder patológico, sem as devidas proteções? O público dirá que não, prefere não consumir tal produto, a ter que saber que o preço que paga vai além daquele da etiqueta, é um custo social intolerável.

Lembremos que cada criança ser lar e/ou sem escola tem um custo insuportável para todos os cidadãos e o estado.

Da mesma forma, com todos os estágios da produção, da distribuição e do consumo.

Quando o público tiver plena certeza de estar de acordo com as condições e as qualidades dos produtos e serviços que consome, ele usufruirá destes com muito mais vontade, muito mais interesse e até engajamento.

Ao invés de ter medo ou vergonha de usá-los, ele se sentirá bem, como alguém que compra uma obra de arte e a usufrui se sente bem, mesmo que tenha pago um dado valor por ela. Vale a pena pagar para obter algo que nos faz bem física e/ou espiritualmente.

Conhecer todos os aspectos do produto, saber que ele não implica em desrespeito aos direitos humanos, não faz mal à saúde ou não produz danos ambientais (ou, se os produz, os recupera, como no caso da política de empresas adeptas do “carbon free”, que replantam árvores suficientes para retirar da atmosfera o carbono a mais que a sua linha de produção liberara), ter essa consciência afirma o consumidor e o consumo, pode tornar o consumo integralmente feliz.

Diferentemente do “consumo conspícuo”, ele não comprará algo por razões que ele mesmo não conhece ou entende, mas se sentirá sujeito ativo e atuante, participante de um empreendimento valoroso, o qual lhe dá algo digno em troca de seu poder de compra, obtido por com trabalho, dignos estes dois também.

Lembremos ainda: isso vale para a obra de arte, para o alimento, para qualquer produto ou serviço, para a educação e a política. Pensem e façam as adaptações.

É um caminho simples, verdadeiro e, prestemos bem atenção, muito mais lucrativo. Na verdade, esse é o único caminho empresarial totalmente lucrativo.

Nós somos um, “we are the world”, como afirmou Michel Jackson. Estamos todos integrados, e a natureza das coisas é de tal modo, que todas as nossas práticas e obras também se integram.

O homem não só faz parte da natureza, ele e sua sociedade são a natureza em ação, uma parte da natureza capaz de autorreflexão e criação, e, por isso mesmo, ética. Nós humanos somos a natureza ética.

E é por isso que esse caminho filosófico da felicidade, essa busca de acordo para a melhor convivência, é hoje tão cobrado das empresas e dos governos por parte do público, que sente que essa é a melhor solução, a mais democrática, a mais lucrativa a longo prazo, e a mais bonita: a que produz os mais belos modos de existência.

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