Deleuze a literatura – parte 4
A filosofia nômade de Gilles Deleuze pede a criação de um método próprio, diferente do método genealógico ou genético e do método estrutural (o genético é histórico, tempo histórico, o problema tem uma linha de evolução; o estrutural é o tempo lógico, apresenta os conceitos, o sistema, a estrutura do problema). Como observa Jean-Clet Martin:
As multiplicidades só se deixam pensar na condição de empreender uma travessia conforme um itinerário que faria crescer suas dimensões. Cada multiplicidade designa o lugar de uma pragmática singular, onde se compenetram semióticas complexas conforme um efeito de fundo que Deleuze eleva ao estado de uma potência plástica, a potência do falso. Toda multiplicidade deve se conceber sob a forma de uma coexistência capaz de impor a simultaneidade das dimensões das quais ela se compõe. Sob este ponto de vista os elementos de uma multiplicidade não param de modificar suas relações, passando pela totalidade aberta das dimensões de uma variedade. Cada termo entra assim em uma série de variações, tornando-se outro ao mesmo tempo que variam as dimensões sobre as quais nós os pré-estabelecemos. Podem-se construir várias multiplicidades. Evidentemente, não dispomos de um método geral para um tal problema. Cada dimensão das notas blocos comporta suas próprias regras de repartição. Eis porque a distribuição dos pontos sobre uma multiplicidade vai depender da seção considerada. A mudança da região se acompanha inevitavelmente de uma mutação de ordens métricas, topológicas, intensivas, capazes de entrecruzar uma dimensão. Variação então é o melhor nome para uma metamorfose desta natureza.
Sob esta perspectiva a metodologia impõe-se como um descentramento produtor de superposições, entrelaçamentos de conceitos e problemas em uma multiplicidade que se compõe diretamente na pluralidade dos campos de saber (arte, ciência, filosofia), na singularidade de cada tema, na variação contínua que ele sofre através de suas temporalidades, autores, usos e práticas, modulação topológica segundo a localização por vizinhança, e não por determinação pontual. E situa-se a alteridade na variedade do sentido que tomam os problemas e as questões a partir do devir em que incorrem, ao invés de definir os itens de um suposto conteúdo de saber elaborado de uma vez para sempre.
Como Deleuze e Guattari já trabalham com uma outra concepção do ser, que se pensa a partir da diferença, e que é quando se pensa, uma ontologia da diferença, o eu fica desmascarado como unidade social, quer dizer, como produto das relações de poder que unificam o pensamento e as vivências em um todo que se pretende falsamente homogêneo.
Assim a princípio poderia se pensar numa liberação total da psicologia, estudo dos processos mentais, da psicanálise, que seria toda construída sobre a ficção do eu triangulado com um id (ça, isto) natural e um superego social; tudo é social, o triângulo é implantado na criança junto com outros, pai, mãe e filho, santíssima trindade.
Mas Deleuze e Guattari não abandonam a análise, é um processo muito interessante e eficaz para ser desprezado; a questão torna-se mais utilizar essa prática numa perspectiva da ontologia diferencial, ao invés de apenas lutar contra, como se quisesse extinguir a prática. Na verdade é uma luta e uma extinção, no entanto o corpo institucional pode ser tomado pelas novas forças e formas de pensamento, que venham de fora, no lugar de servir ao estado e às estruturas sociais contemporâneas.
Como Deleuze e Guattari não acreditam na fechadura do sujeito, na sua anterioridade, eles começam a sua análise pelo estudo da infância dos povos, quer dizer, pelas relações sociais que se perdem na história dos tempos, nas quais vemos sempre a luta entre bárbaros, selvagens e civilizados, uma nova trilogia, não mais interiorizada, mas exterior ao sujeito, não mais constituída com ele, mas antes dele, fora dele, independente dele, mesmo que ele não seja alheio a ela. Isto é, há um sujeito para cada modo desses, ou mais.
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