Deleuze a literatura – parte 2
A soberania se impõe pelo controle dos fluxos. As águas, a terra, os ventos – tudo tem que ser controlado pelos funcionários do estado. Inventam-se uma matemática, uma agrimensura e uma geometria para a normatização dos fluxos.
A semiótica escrita e a semiótica oral também vão ser apropriadas, quem sabe escrever, a quem é dado o direito de falar. Quando surge, a linguística adota o modelo estatal de linguagem; a escrita fica subsumida à linearidade da fala, as dicotomias reproduzindo esquemas metafísicos e etnocêntricos.
As ciências psi também podem aparecer apropriadas pelas forças do estado, constituindo-se em saberes de dominação, de produção de subjetividades medrosas, culpadas, ressentidas. A esse saber, Gilles Deleuze e Félix Guattari opõem em sua obra O Anti-Édipo (Capitalismo e Esquizofrenia I) a esquizoanálise, que trabalha com o “inconsciente maquínico”, que é uma usina geradora, e não mais uma cena de teatro (a repetição da cena do Édipo). O inconsciente maquínico e o “corpo sem órgãos” são conceitos que vão pensar o vivo como potência e produção.
Ao conhecimento como dominação se opõe o pensamento enquanto criação, que está ligado ao poder, entendido como potência que quer ser vontade (o conceito de “vontade de potência” de Nietzsche). Na nova imagem do pensamento, o poder é afirmação e necessidade.
Assim se produz uma outra matemática, uma outra ciência, uma outra linguística. De um lado, funcionários do estado e aparelhos de captura. De outro, pensadores nômades e máquinas de guerra.
O nomadismo é o lugar para onde migrou o pensamento filosófico que se liga às diferenças puras, às essências neutras, às espécies especialíssimas, à indiscernibilidade e à haecceidade. O pensamento é o lugar para onde migrou o nomadismo, quando as estepes e desertos foram dominados pelos homens do estado. O agenciamento entre os dois se dá em diferentes dimensões, descontinuadamente em platôs que se ligam em um rizoma, que é a nova imagem do pensamento: qualquer parte de um rizoma pode se ligar a qualquer outra parte, criando as continuidades mais inesperadas, sem programações prévias.
Já o conhecimento (saber de estado) adota o modelo da árvore e da hierarquia das ciências, e, ainda, da hierarquia dentro das ciências: um eixo principal, do qual saem eixos secundários que também se subdividem, tudo remetendo à mesma unidade.
O pensamento nômade envolve a concepção de tempo puro, rompendo com a tradição clássica. Deleuze, trabalhando com as três sínteses temporais diferenciadas (passado-presente-futuro), reverte a noção de linearidade kantiana do tempo, como forma de sucessão.
Investigação sobre o tempo puro, como “eterno retorno” (outro conceito tomado a Nietzsche) e “forma vazia” (Deleuze vai mostrar, no livro sobre a filosofia de Kant e no artigo intitulado “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir o pensamento de Kant”, que é este filósofo quem vai inaugurar a concepção de tempo como “forma vazia”). Liberação do tempo, opondo-se à noção aristotélica de tempo como “número do movimento”. O tempo não subordinado ao movimento, mas subordinando-o ele mesmo, como movimento aberrante, em uma física de intensidades. O corpo sem órgão e os devires intensos são modos de conhecimento para o pensamento nômade.
Vamos encontrar em O que é a Filosofia?, também em colaboração com Félix Guattari, a ideia de três planos independentes, que vão dar conta do pensamento:
1. Plano de referência: é o plano da ciência, tem como escopo entender o mundo referencial, e como instrumentos os functivos, as funções matemáticas.
2. Plano de composição: é o plano da arte; visa à criação e à experimentação, antes que à simples referenciação, e tem como instrumentos os afetos e os perceptos, que são os elementos constituintes da percepção e do sentimento. Na obra de arte eles aparecem libertos da psicologia e da existência do sujeito. Aí se inaugura a possibilidade de uma experimentação absolutamente nova, não marcada pela percepção interessada. São espécies de “vivências” virtuais, mundos possíveis que o artista atualiza, isto é, torna presentes. O virtual é real, o atual também é real. São dois tipos de realidade. Mas o artista torna possíveis estas vivências paralelas, que não são oriundas da experiência, e sim da experimentação.
3. Plano de imanência: é o plano da filosofia, que trabalha com a construção de conceitos, que são os seus instrumentos. Os conceitos são assinados e topológicos; é o plano da filosofia, que reclama a imanência do pensamento, a sua ontologia.
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