Deleuze a literatura – parte 1

Luis Carlos de Morais Junior

A arte consiste em libertar a vida que os homens aprisionaram.
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Somos todos moléculas, uma rede molecular
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A literatura é uma grande saúde
(Gilles Deleuze )

A obra de Gilles Deleuze – uma filosofia experimental, constituída de partes móveis e cambiáveis, com diferentes inter-determinações – é intrigante pela sua complexidade e pelos diferentes devires que faz, não só pela abrangência de um pensador duplo de historiador da filosofia que vai trabalhar com tantos outros filósofos, como pelas diversas e potentes ligações que produz com a arte e a ciência, além de delimitar toda uma lógica em coerência com suas ontologia e política, e conseguir o mais constante agenciamento de um filósofo com outro, a tal ponto que não podemos discernir, nas obras a quatro mãos, e até nas produções singulares, até onde vai a influência de um sobre o outro.

A partir de uma nova imagem do pensamento, dentro de um padrão estético que entende a vida como criação e o pensamento como a possibilidade desta criação, a potencialização máxima da vida, surge uma nova forma de abordar o conhecimento, há aí uma epistemologia, uma política e uma estética.

O próprio conhecimento não é tido mais como natural, mas é uma construção, que procura entender o mundo e as produções humanas como dados que podem e devem ser salvos de maneira reativa. A ele Deleuze opõe o pensamento, que aparece aqui enquanto agenciamento do humano com o devir, as diferenças, mesmo para lá do humano, no campo animal, tecnológico, cibernético, molecular, inorgânico.
A estética ganha uma dimensão fundamental, na medida em que a relação da vida com a arte se torna o próprio diferencial da imagem do pensamento, dentro de uma perspectiva nietzscheana de compreensão da relação entre arte e vida.

Sendo assim, a obra artística ganha estatuto de maneira de pensar e de produção de modo de viver, já que Deleuze entende a relação arte, vida e pensamento à maneira de Friedrich Nietzsche:
\…\ Mas então a crítica, concebida como crítica do próprio conhecimento, não exprimiria novas forças capazes de dar um outro sentido ao pensamento? Um pensamento que iria até o fim do que a vida pode, um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela pode. Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a vida. A vida seria a força ativa do pensamento, e o pensamento seria o poder afirmativo da vida. Ambos iriam no mesmo sentido, encadeando-se e quebrando os limites, seguindo-se passo a passo um ao outro, no esforço de uma criação inaudita. Pensar significaria descobrir, inventar novas possibilidades de vida. \…\ Em outras palavras, a vida ultrapassa os limites que o conhecimento lhe fixa, mas o pensamento ultrapassa os limites que a vida lhe fixa. O pensamento deixa de ser uma ratio, a vida deixa de ser uma reação. O pensador exprime assim a bela afinidade entre pensamento e vida: a vida fazendo do pensamento algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo. Essa afinidade em geral, em Nietzsche, não aparece apenas como o segredo pré-socrático por excelência, mas também como a essência da arte.

Podemos ver aqui a nova relação que se apresenta para o pensador entre vida e arte.

Ao invés de ser tomada como dimensão específica dentro de um todo do pensamento filosófico de determinado autor, a estética é constitutiva do próprio pensamento, atuando como paradigma ela mesma na filosofia de Gilles Deleuze.

É assumida assim uma diferença não numérica, mas qualitativa entre arte-vida-pensamento, na qual a valoração da arte se estabelece como diferencial dos valores que engendram a vida e engajam o pensamento.

Ao mesmo tempo, preserva-se o que à arte é essencial, no estabelecimento desta valoração: o plano de composição artístico é o campo da imanência dos perceptos e dos afetos, lá onde se joga o lance de dados da criação.

A diferença entre pensamento e conhecimento se faz presente na arte e implica em diversos processos de subjetivação. Nenhum dos dois é entendido como previamente dado, como “natural”. Não há uma instância “sujeito”, nem uma outra “objeto”, assim como a verdade não pode ser produzida pela adequação perfeita entre o discurso do sujeito e o fato objetal.
Esta estrutura de produção de verdade é ela mesma produzida, criada em certos momentos específicos, em certos lugares do mapa da história dos homens. Há vários regimes de signos que produzem subjetivações diferentes: um regime significante, ligado a uma semiótica do estado; uma semiótica pré-significante, ligada aos nômades caçadores; uma semiótica contra-significante (aritmética e numérica), ligada aos nômades guerreiros e pastores etc.

Exemplos de conhecimento, ligado ao estado, podem ser encontrados na psicanálise e nos postulados da linguística saussureana. Estas são, entre tantas outras práticas, aparelhos de captura montados pelo estado para se apropriar das semióticas das populações a serem dominadas. As tribos sem estado têm uma escrita espacial, corporal e pictórica – entendendo-se que escrita é todo sinal produzido sobre uma superfície e que pode ser compreendido por algum outro indivíduo da espécie. Quando o estado surge como centro de poder que subjuga as tribos, o que ele faz é apropriar-se de seus fluxos: mulheres, mercadorias e palavras.

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