Continuação do blog geoegologia3

  02/ 07 / 2013
 
   

Eliane Colchete
   
              O consenso do corporate state, em torno do qual estamos promovendo a tentativa de reconstituição, ocorre após o cenário de guerras da descolonização afro-asiática, mas antes do situamento atual da reordenação do planisfério em função do conflito norte/sul. 
        O consenso, se não tem sido um referencial já nominalmente corrente, não deixa de constituir necessariamente o plano de fundo dos empreendimentos que visam entender o período histórico recente. A atitude pela qual esse período deve ser visado do outro lado de um fosso profundo e intransponível traçado pela microinformática e “globalização”  (internacionalização da economia/indústria) apenas integra o discurso neofascista que dela fez parte. Não é o que pretendo instigar, ainda que minha proposta nominal do “consenso” implique realmente que se trata de a prioris distintos em relação à era que seria a nossa, presente, cuja determinação se expressa pelo reordenamento do “mapa” geopolítico.
          Mas se o estamos visando na perspectiva historiográfica, os aspectos de esquematização ligados ao levantamento de a prioris determinantes estruturalmente (sincronia) não implica dicotomia excludente da relevância de aspectos ligados a motivos de longa envergadura histórica tais que implicados nos acontecimentos presentes.
         Por exemplo, tenho acentuado que a compreensão da “globalização” não será histórica se não envolver a tarefa de compreender a ditadura militar especialmente com o intuito de estabilizar a informação a propósito como já suficiente para conceitua-la como produto do intervencionismo para-legal norte-americano. O deslocamento da autoridade estatal pelo representante do capital multinacional mesmo no cenário político, ou as transformações tecnológicas sine qua non da “globalização”, são fatores determinantes desta e que obviamente não são explicados pela ditadura militar.
           Mas isso não acarreta a consequência que no entanto tem sido tacitamente observada como óbvia, de que sendo assim a ditadura fica como um capítulo do passado histórico. Importante para que se o conheça, mas nada além disso no sentido de alguma conexão necessária à apreensão da problemática atual.
         Inversamente, nós não visaríamos senão uma sequência lacunar quando, em vez de aceitar que apenas o peso do investimento do capital internacional é fator relevante à menção historiadora do presente, tematizássemos o teor do investimento local e a qualidade do mercado interno, por si mesmos no interior de uma história econômica ou  com vistas a conceituar a própria mentalidade relativa à nacionalidade.
         Todos esses elementos  foram severamente recalcados pelo sinal verde ao investimento ilimitado do capital internacional que se traduziu, na transição aos anos dois mil, pelo sucateamento dos setores estratégicos da economia, cuja mera existência até então se deveu a ter sido objeto da luta nacionalista pela industrialização. Mas essa (neo)-liberação é o que não está explicada a partir do fato de meramente apresentar-se.
        Há uma falsa opção latente na discussão ainda atual do pós-estruturalismo enquanto proposta histórica descontínua na acepção de estrutural e a priorística, quando ela se limita aos argumentos críticos de uma hermenêutica que de novo só visaria tematicamente os significados da neo-liberação do investimento do capital internacional  a partir de uma tarefa circunscrita a ser “primeiro” a da definição do objeto presente tal que sua lógica imanente não poderia extrapolar a sua “historicidade” como processualidade limitada a correlato daquilo que constitui essa definição.
           Por esse caminho, nós teríamos que entender o que é o capital internacional e por que ele quis e pode só agora vir a tamanha escala de empreendimentos, em vez de poder colocar a questão daquilo que se subtrai a toda a sua lógica como o processo da afirmação da autonomia sócio-econômica e político-cultural nacional (local), e que no entanto é o que em relação a ele mesmo seria fator de inteira reordenação conceitual se viesse à luz da análise porque então ele não seria uma essência na historicidade, mas um avassalamento violento na alteridade.
         As ditaduras militares foram na verdade esse avassalamento demarcado em termos do avanço do que não tem continuidade com o capitalismo clássico europeu, mas se expressa historicamente como os métodos e processos internos ao neocapitalismo norte-americano. As ditaduras militares na América Latina, começando pela política de reapropriação do controle no Oriente Médio interrompido lá o domínio inglês, formam a base da política econômica do “neocapitalismo” que é internacional estruturalmente – depende ele da apropriação das fontes energéticas no terceiro mundo e não como antes, começando como uma indústria local pela demarcação local dos recursos energéticos somando-se à disponibilização local da mão de obra (luta de classes local).
          Sem entender a política econômica do neocapitalismo norte-americano, nós não dispomos de qualquer arcabouço viável de apreensão do que ela faculta e promove ativamente ter vindo a existir em termos do neofascismo (deslegitimação) subjacente ao estado de coisas cartografado como “conflito norte/sul”.
        A época em história intelectual que nomeei do consenso do corporate state, devido ao hábito historiador de ser tratada apenas como cronologia do pós-guerras intra-europeias, não tem sido visável como um deslocamento radical da proveniência extra-europeia dos acontecimentos desde que em meados do século XX os Estados Unidos se tornaram o referencial do processo capitalístico.
          Esse estatuto implica não só a dependência econômica mundial ao capital estadunidense, revelado de modo aparentemente paradoxal pela própria crise da década de trinta, que mostrou ao mundo como suas consequências atingiam agora o mundo e não só a nação. Como também,  principalmente, a sua aptidão ordenadora dos parâmetros do desenvolvimento internacional, sustando alguns, como os americano-latinos, e incentivando outros por razões da mesma estratégia anticomunista além do mero interesse econômico diversificado, como no Leste asiático.
         Vários aspectos do neocapitalismo norte-americano como irredutível ao clássico europeu já do ponto de vista de sua mera esquematização foram ressaltados por Pierre George (“O mundo atual”), e aqui eu gostaria de ressaltar, além da premissa internacionalista,  o que atinge toda a caracterização marxista da indústria centrada na preponderância dos meios de produção, que torna os bens de consumo aspecto periférico.
         O mercado norte-americano, porque está liberado da servidão mineral da clássica indústria pesada, é pelo contrário centrado na circulação dos bens de consumação. Ele cria, além disso, o que George tratou como um capitalismo subalterno na margem que é reconceituada em termos de contextos nacionais de indústrias não assim liberadas – elas se tornam dependentes tecnologicamente e em nível de preços de custo. 
        O reinvestimento sistemático em pesquisa tecnológica foi o que se possibilitou pela contenção da produção abaixo das capacidades produtivas nos Eua após a crise de superprodução, segundo George. Isso teve consequências que ele não podia ainda descrever, pronunciando-se antes da globalização, ainda que já soubesse tratar-se de algo de amplitude crescente.
         Mas para efeitos do que estamos visando como não apenas o deslocamento extra-europeu do processo capitalístico, como também as suas mais amplas consequências histórico-sociais, o importante é reconstituir as conexões entre a reordenação do papel dos governos subalternos ao capital globalizado e os meios da repressão da autonomia já conquistada como estatuto da representação política que possibilitaram localmente a reordenação. É o que impele a relativizar a autonomia histórica suposta obtida pelos agentes empresariais multinacionais.
        É claro que não são esses agentes necessariamente incorporados ao círculo da autoridade estatal, mas justamente a margem de independência deste, expressa por exemplo na luta antitruste, é o que se torna novamente importante pensar quando fica tão nítido do ponto de vista “evenemencial” (dos “acontecimentos”, em francês “événement”) sua dependência da política externa conduzida pelos governos dos países-sede.
         Cl. Julien demarcou inclusive haver, sim, o aspecto da incorporação – mostrando que a aposentadoria do alto funcionário de governo e forças armadas nos Eua muitas vezes resultava em sua cooptação pelo grande capital devido aos seus contatos oficiais, garantindo a facilidade dos trâmites legais para obtenção de decisões favoráveis, inclusive propriamente políticas.
        Na margem, a reconceituação das relações de capital e Estado é mais decisiva pelo intervalo, que estamos demarcando ser aqui o pivô histórico, entre o resultado factual como por exemplo a globalização neoliberal e mesmo já o “império” oitoscentista,  e as forças efetivamente atuantes – que eram pelo contrário, até a ditadura e no decorrer da resistência a ela organizadas em prol da independência da economia local, assim como na emergência dos movimentos por independência política na transição ao século XIX, cuja mentalidade mais tipicamente expressa nada tinha de escravista, elitista ou imperial.
       Enquanto o “consenso do corporate state” pode se afirmar, isto é, enquanto o cenário de estabilização da descolonização política afro-asiática permitia supor ter se instalado uma ordem internacional burocrática-legal em vez do que hoje sabemos que estava realmente ocorrendo em termos da violência neocapitalista, compreende-se que a “ideologia” tenha sido um conceito tão útil.
          Num cenário (suposto) internacionalizado pela legalidade burocrática, trata-se ainda de todo contexto imperialista como de legitimação. Essa é a base de toda conceituação do capitalismo clássico europeu. Isto é, a indústria, que ainda não era exportável mas somente seus produtos, era em todo caso a modernização em nível político-social e cultural, como ocidentalização.
         A luta pela industrialização local na margem – como processo autônomo e não “globalizado”/ multinacional  – expressava-se como luta pela modernização nesse sentido legitimante e sempre estava secundada por uma teoria ocidental sócio-evolucionista nesse sentido. No centro ou Europa mesmo, a modernidade expressa-se como esse sócio-evolucionismo  inclusive quando se trata de pós-positivismo, pois não se concebia a cultura não-europeia senão como qualitativamente distinta da europeia em termos muito – ainda mais que no positivismo –  determinados de desconhecer a legalidade constitucional e ser por outro lado, pré-egológica.
        A mentalidade do “consenso do corporate state” parece-me resgatável como suposição de que se havia atingido o estado de coisas plenamente internacionalizado da ocidentalização. Assim, todo conflito local poderia em princípio ser reduzido à “ideologia”, e tanto melhor se pela internacionalização completa ele houvesse se ampliado para abranger disparidades culturais.
         O rise estruturalista se tornou conveniente a esse princípio, e isso até mesmo quando o ‘”discurso” se tornou  formalmente independente da morfologia superestrutural de Marx com o pós-estruturalismo, como numa autêntica ilusão perceptiva – que não se desfaz mesmo que se conheça a verdade.
         Por um lado, o campo estrutural não solveu de todo a barreira. Continuou caracterizando, como temos visto pelo exposto acima e desde o blog “Geoegologia: ciência e política”, o “civilizado”  (egológico/constitucional) como requisito apenas do percurso ocidental por isso ele mesmo unificável desde os antigos gregos.
         Por outro lado, pode tratar a modernização local em termos não traumáticos de interpenetração de modos de produção diferentes, e como mais profundamente o “discurso” é uma teoria do inconsciente, enquanto estrutural os elementos são livres e em tese reordenáveis, o que chega a uma solução ótima pela esquizoanálise – não a toa, ela foi realmente utilizada nos anos noventa brasileiros em projetos de conceituação da nacionalidade local em termos de aptidão ao heterogêneo e assim tanto diversa do individualismo essencialista europeu quanto  proveitosamente destinável à internacionalização.
        No contexto de tematização da “ideologia” por essa época o que emerge pode a meu ver ser interpretado como reorientação com vistas a obter um ambiente mais amplo tal que a questão cultural pudesse ser nele embutida, em vez da requisição de uma ruptura que implicasse o que hoje é o que eu mesma considero necessário como transformação do problema da irredutibilidade cultural de modo que ele não mais se deixe reduzir a qualquer grande narrativa ou grande teoria unificada. A interlocução de Eagleton e Hutcheon nos permitirá apreender o relevante àquele contexto, na base dessa intepretação, e assim nos fornecer pistas importantes a propósito do que emergiu com a rubrica de “pós-modernismo”, e  envolvendo polemicamente o próprio “pós-estruturalismo”.
          Uma aproximação oportuna seria assim a do artigo de Eagleton sobre “A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental”. Eagleton examina em seu artigo as objeções que se apresentaram sucessivamente de modo paralelo à surgência sucessiva de interpretações variadas da ideologia após Marx. Assim ele menciona a crítica ao argumento lukacsiano de que o proletariado é por natureza apto a apreender as verdadeiras relações sociais capitalísticas  – enquanto por si mesmo assimétricas e não sendo a desigualdade distribuída simetricamente às capacidades individuais.
          Inversamente, a posição da burguesia por si mesma – enquanto emerge por sua vez frontalmente oposta ao dogma aristocrático do privilégio de nascimento  – implica o pressuposto dessa simetria entre capacidades individuais e realizações econômico-sociais.
         O crucial não é a cisão entre burguesia e proletariado, mas a sociedade na era industrial como totalidade – onde há burguesia e proletariado empenhados num conflito que a um só deles, o proletariado, permite apreender a totalidade. Obviamente essa totalidade do social corresponde à universalidade, na acepção do que efetivamente ocorre, o que é essencialmente verdadeiro (real). Isso, ainda que em termos epistemológicos Lukács visasse desfazer a dualidade de objeto e sujeito para apreender a realidade em devir onde o objeto é produzido pela prática do sujeito, sendo sempre potencialmente mutável por esta.
       A totalidade (sociedade) é então não a morfologia positivista das classes, mas o processo em que: a) as duas classes se dispõem  “ideologicamente”  a partir da oclusão da verdade obtida pelo fetichismo da mercadoria onde em vez da assimetria das relações de produção só está expressável a equivalência de preço e posse; b) o efeito da disposição se verifica pelo individualismo pressuposto objetivo; c) o contra-efeito da disposição se verifica pela impossibilidade do proletariado conceber o individualismo e logo, pelo acesso do proletariado à auto-apreensão como classe explorada desfetichizadora da mercadoria.
          Lukács pode portanto justificar plenamente a sua convergência entre universalidade cognoscível por um lado e caráter histórico do próprio objeto por outro lado, na base de que, conforme Eagleton, “a autoconsciência do proletariado é como que a forma-mercadoria conscientizando-se de si e, nesse ato, transcendendo a si mesma”. Já não subiste oposição entre “ideologia” e ciência como conhecimento de um objeto a-histórico, mas ciência, verdade ou teoria será expressão da “ideologia” definida como “visão de mundo”.
         A objeção visada por Eagleton como de ordem lógica a isso, não é o que desde o início deste longo estudo tenho tratado como o etnocêntrico axioma do desnudamento – ou seja, o pressuposto de que há um sujeito epistêmico cuja auto-apreensão, e não de um objeto externo, revela-se suficiente para esclarecer toda apreensão objetiva possível, de modo que somente a repetição do seu processo de auto-apreensão faculta a outros sujeitos um conhecimento válido de direito.
          Pelo contrário, Eagleton pensa que o desnudamento – e ele usa a palavra, inclusive – é um princípio hegeliano que Lukács utiliza com toda propriedade em termos de um “importante discernimento” tal que “os que hoje renegam, como está na moda, a necessidade de uma perspectiva ‘global’ ou ‘total’ talvez sejam suficientemente privilegiados para dispensá-la”.
Então para Eagleton o problema não é a premissa de que “há certas formas de conhecimento – em especial, o autoconhecimento de uma classe explorada – que, embora rigorosamente históricas, são capazes de desnudar os limites de outras ideologias e, desse modo, desempenhar o papel de uma força emancipatória”. (grifo meu)
           É sim que se o campo social na modernidade é seccionado somente entre burguesia e proletariado, mas somente este detém a aptidão à verdade, então não há uma validação possível do  verdadeiro.
       Além de si mesmo, o proletariado não pode justificar-se, pois somente sendo proletário é que alguém pode meramente conceber o conceito da assimetria constitutiva da produção que condiciona acessos, posse de meios e oportunidades. Na expressão de Eagleton: “Como assinala Bhikhu Parekh, afirmar que apenas a perspectiva proletária permite que se apreenda a verdade da sociedade como um todo já presume que se saiba qual é essa verdade”.
        Na verdade, o desenvolvimento da exposição das objeções a Lukács neste artigo de Eagleton retorna contraditoriamente sobre sua inicial valorização do princípio da totalidade.
        Envereda a princípio por uma apreciação da antítese entre visão de mundo burguesa-capitalista como o condicionante da descoberta do devir e ultrapassamento  do paradigma a-histórico do ser, e dependência da estabilidade dos valores por parte do mesmo regime burguês-capitalista. Em todo caso, não é o proletariado, mas a burguesia o agente histórico da transposição epistemológica: “O conceito de ideologia pode-se dizer surgiu no momento histórico em que os sistemas de ideias conscientizaram-se pela primeira vez de sua própria parcialidade”. O deparar-se com “formas estranhas ou alternativas de discurso” é corolário da “ascensão da sociedade burguesa”.     
          Imbrica-se assim esse trecho, que por si só demonstra  o que tenho tratado como engano da unificação histórico-epistemológica do Ocidente que subjaz ao sócio-evolucionismo (“pela primeira vez…”) em termos de um falso pressuposto da história efetiva,  ao confronto do imperialismo consigo mesmo em termos de um processo que coage a visibilidade das diferenças ao mesmo tempo que implica o recalcamento delas. Mas nisso percebemos que o problema está sendo ressituado dos dois lados da assimetria, e já internacionalizada pelo imperialismo.
         Eagleton ataca o problema por um dos lados propondo que “A arraigada autoridade de qualquer visão de mundo singular, por conseguinte, é minada pela própria natureza do capitalismo” ou ainda “Nesse espaço atomizado, marcado por uma divisão proliferante do  trabalho intelectual, uma multiplicidade de credos, doutrinas e modos de percepção compete pela autoridade; e essa consideração deve fazer hesitar os teóricos pós-modernos, para quem a diferença, a pluralidade e a heterogeneidade são inequivocamente ‘progressistas’ “, pois ao invés elas deveriam conduzir ao ceticismo: “Se todo pensamento é parcial e sectário, então todo pensamento é ideológico”, o que para Eagleton não é algo que a gente descubra para celebrar, mas sim equivale a “descobrir-se pressionado por concorrentes indesejados e, desse modo suas próprias fronteiras serão claramente postas em relevo.”
       Por outro lado “o imperialismo precisa afirmar a verdade absoluta de seus valores no exato momento em que esses valores confrontam-se com culturas estrangeiras, o que pode revelar-se uma experiência singularmente perturbadora. Ao ver de Eagleton “neste como em outros aspectos, portanto, a emergência histórica do conceito de ideologia atesta uma angústia corrosiva – a embaraçosa consciência de que nossas verdades só nos parecem plausíveis em função de onde estamos situados num dado momento”.
       O engano sócio-evolucionista pode ser demonstrado como um historicismo contextualizante do tipo que o próprio Lukács poderia aprovar, ao lançar o conceito analítico de “reificação” que generaliza a mercatorização  atomizando além do produto vendável todos os processos e usos na sociedade capitalista cujos trâmites seriam então redutíveis a essa forma de análise.
        Pois para Eagleton a “polifonia” de Bakhtin é “exatamente” referencial do embaraço da heterogeneidade trazido pelo capitalismo, quando inversamente Bakhtin valoriza a polifonia como um constitutivo apenas redescoberto na Modernidade, e de fato presente na Antiguidade democrática antes da viragem epocal rumo à cultura clássica unitária imperial que se consagra não só como acadêmica mas também feudo-monástica.
       Além disso, o ceticismo, tanto o antigo quanto o dos tempos montaignianos,  não é uma visão negativa do mundo, mas pelo contrário é  afirmativa na medida em que sua crítica do dogmatismo não é melancólica como diante de um barroco desengano, mas sim terapêutica como diante de um longo erro cuja constatação nos livra de suas más consequências.
           Mas podemos notar que já a valorização da totalidade como subjacente requisito de qualquer objetivo revolucionário, e Eagleton aqui referencia tanto o feminismo como o anti-colonialismo, não observa que é a totalidade que está embasando a problemática do próprio objeto do conhecimento e assim não pode ser separada do problema lógico do situamento do sujeito do conhecimento. Eu mesma considero não pertinente o problema lógico. Posto que ele é inserido na totalidade, e assim o proletariado só pode apreender a verdade da injustiça social na medida em que os valores que constroem o parâmetro do juízo sobre o justo e o injusto são, sim, os mesmos que os apregoados pela burguesia.
        Apenas o proletariado é o locus em que o discurso desses valores se interrompe por não corresponder ao que efetivamente acontece, na proposição de Lukács. Mas não há testemunha dessa quebra do discurso a si como prática, além da vítima, o proletariado. Uma circunstância assim obviamente não invalida a virtualidade da prova do crime.
       Somente se dependesse de: 1) o proletariado estar acusando propositivamente além do código vigente em comum com o acusado; 2) ou se pudéssemos caucionar a afirmação de que não é só o proletariado o locus de interrupção discursiva por não ser sua problemática exaustiva da sociedade que então não pode ser totalizada; 3) ou ainda, se nós relativizássemos a capacidade do proletariado de realmente expressar ou conceituar a interrupção do discurso na prática;  é que a objeção lógica poderia ser distinta como algo independente da totalidade então valorizável.
        Ou seja, somente numa dessas três ocorrências é que o proletariado teria se tornado ao mesmo tempo a forma e o conteúdo de qualquer referencial propositivo suposto válido e portanto, não válido realmente.
       Eagleton comenta somente o terceiro destes aspectos, mostrando-o como realmente não pertinente em termos de crítica a Lukács. Posto que asseverar que nem todo operariado é capaz de realizar a autoconsciência de si como explorado não implica que por um lado, enquanto não autoconsciente ele é objeto da mesma – e não de uma outra – falsidade discursiva que instrui a falsa consciência de si burguesa. E por outro lado, não implica que não haja o oposto a isso como apreensão legítima do que ocorre em termos de exploração social pela parcela revolucionária do proletariado.
       Além disso, Eagleton parece caucionar a noção lukácsiana de que uma situação pode ser falsa, e assim a falsa consciência burguesa não reside na sua apreensão proposicional da situação: “Essa maneira de colocar a questão talvez ajude a compreender um pouco a noção, de outro modo intrigante, da ideologia como pensamento fiel a uma situação falsa”. 
        Ora, o modo como Eagleton expõe a justificativa a isso pode a meu ver ser traduzido do seguinte modo: uma situação é falsa quando ela aliena algo mais e no entanto apresenta-se como totalizante, além dela não havendo nem devendo haver qualquer alternativa: “A situação falsa só pode ser identificada em termos hipotéticos ou retrospectivos, do ponto de vista do que seria possível, caso essas forças frustrantes e alienadoras fossem abolidas”. Então deve haver algo mais no presente cronológico do que ele mesmo: “há nele algo que aponta para além dele; na verdade, a forma de todo presente histórico é estruturada por sua antecipação de um futuro possível”.
        Mas se é assim, não podemos afirmar que a viragem revolucionária de uma apreensão situada reside, primeiro na desmontagem da oposição entre por um lado “visões ideológicas meramente parciais” e por outro lado “visões desapaixonadas da totalidade social” sob a alegação de que “o que essa oposição deixa de levar em conta é a situação dos grupos e classes oprimidos, que precisam ter alguma visão do sistema social como um todo e de seu lugar dentro dele, simplesmente para serem capazes de reconhecer seus próprios interesses parciais e particulares”.
        Para Eagleton isso apenas consiste em notar que em vez de isento ou neutro, esse ponto de diagnose do opressivo está radicalmente comprometido com “interesses políticos prementes”, e no entanto sem transitar “do particular ao geral”, esses interesses fracassariam. Contudo, a totalidade é ainda considerado um objeto cognitivo, e por isso ficou sujeita sua verdade proletária à questão da validação.
         Eagleton inclusive comenta ligeiramente a teoria dos atos de fala de Austin para mostrar que ela não invalida a questão da validez do contexto em que depende apenas da nossa voz que algo seja ou não real, como quando respondemos “sim” perante o juiz e nos casamos. Pois, se o juiz não fosse autoridade constituída, ou se as condições do contrato não fossem condizentes com a legislação vigente, de nada valeria a nossa expressa anuência.
           Mas Eagleton não comentou assim o que moveu a polêmica derridiana contra o aspecto substancialista dessa teoria, e a meu ver Derrida em “Limited Inc.” nisso conserva-se muito correto. Ele demonstrou que em vez da teoria austiniana dos ato de fala poder colocar num estatuto secundário  – “parasitário” – os regimes da língua não factuais, do tipo literário ou dramatúrgico, ou seja, aqueles em que vigoram condições de não verificabilidade da eficácia performativa, com isso ela apenas se mostra uma petição de princípio. Pois afirma que porque não assim vigoram, esses regimes são classificáveis “parasitários” como não exemplares da natureza em si da linguagem. E então epistemologicamente eles dependeriam de primeiro se ter bem caracterizado essa natureza para depois poderem ser conceituados em que consistem.
         Mas que a vigência de uma eficácia performativa na realidade é a natureza da linguagem, e assim de modo que além de toda linguagem estão os requisitos factuais sobre que se instala a vigência, é apenas o pressuposto da teoria, não algo demonstrado além dela. O estatuto parasitário não é uma consequência real, mas já está inteiramente subjacente ao pressuposto. A questão é como esses requisitos se tornam instrumentais a certos atos na linguagem. Isso a teoria dos atos de fala, assim como a junção eagletoniana da totalidade objetiva, anula enquanto nível de instalação consequente da problemática.
      Então Eagleton não pode considerar senão como negatividade o contraste real de linguagens, nem chega a colocar como o verdadeiramente opressivo aqueles dois outros modos de se situar o conflito social tal que não há comensurabilidade efetiva alguma entre os litigantes.
          O pós-modernismo assim como desenvolvido em Linda Hutcheon em termos de algo que pode ser resumido em contraponto ao que ela designou como as oito teses anti-pós-modernas de Eagleton, deveria ser o locus da assunção desse nível incomensurável da opressão social, mas não me parece acertado afirmar que realmente o faz. Aqui estou afirmando portanto que a opressão social não ocorre de fato em qualquer nível tal que as condições de vigência da verdade se conservem, ou seja, enquanto partilháveis.
        Se a opressão é discursiva, ela não pode ao mesmo tempo ceder o que a excede enquanto linguagem, e assim podemos demonstrar que ao  manter toda a problemática social da modernidade na referência do proletariado, o marxismo e a “ideologia” perseveram no objetivo de “modernização” ocidentalizante que é – para além da questão de classe – o mesmo que o da burguesia.
         Assim por exemplo, Marx soube ressaltar não só a crueldade da colonização, mas também o seu papel economicamente crucial, e no entanto o estabeleceu apenas no âmbito do que chamou a infância do capitalismo ou o período “primitivo” da acumulação.
         Manifestamente conceituou o capitalismo pleno como um período posterior cuja estrutura, não mais sendo comercial e sim industrial, não era mais definível  economicamente pelo nexo da exploração de uma margem, portanto nesse estatuto situada pelo próprio movimento da apropriação ocidental-capitalista.
          O próprio epíteto “primitivo” aqui já é esclarecedor de que se trata de um conceito evolutivo – ainda que sócio-histórico. Ao mesmo tempo outro e mesmo (ao mesmo tempo não o capitalismo pleno ou industrial;  nem conceituável como algo autônomo). Weber não procedeu de modo diferente quanto a isso. J
       Já a categoria antropológica do “primitivo” como não-ocidental mantem a estruturação do termo nessa mesma ambiguidade e como tenho demonstrado pelo exame dos textos referenciais, essa é a categoria axial a todo o andamento das grandes teorias em humanities que assim não são “representação” de um todo universal como o “Homem”.
     Elas devem ao invés mostrar como o “homem” vem a ser somente o correlato da trajetória – assim paralógica  – do Sujeito da História (ocidente/ civilização/ autoconhecimento), nela estando  implicado a sua sombra – ao mesmo tempo mesmo e outro –  como o “primitivo”, aquele cujo referencial pensável se estabiliza apenas pelo estatuto lacunar de que não agencia a trajetória e não é imanente a esta.
          A Geoegologia como minha proposta teórica assinala então as mutações discursivas na constituição dos grandes relatos ao longo da modernidade, lembrando que eles devem secundar não somente a legitimação central da trajetória cuja prática é o imperialismo, mas principalmente na margem enquanto vinha legitimando a integração imperialista como evolução tal que a luta anti-imperialista foi se tornando impossível senão como luta modernizadora e portanto recalcadora da heterogeneidade.
      O  marxismo viveu esse problema ao estabelecer o axioma de que o proletariado é uma consequência dialética da burguesia, e assim a revolução seria condicionada pelo aburguesamento. A reconceituação do marxismo à luz do neocolonialismo implicou a revisão desse a priori, mas de fato isso continuou como o problema do próprio imperialismo soviético.
        Examinando o que Hutcheon estabeleceu como o articulado argumento eagletoniano contra o pós-modernismo, estamos no cerne desse problema, na medida em que para o marxismo a autocrítica das consequências soviéticas da revolução não poderia extrapolar o axioma do desnudamento no plano teórico (epistêmico), nem permitir que a consolidação da objetividade da “formação social” extrapolasse  o limite do modo de produção ou como luta de classes no rumo da proliferação dos antagonismos sociais. 
         Ora, enquanto se está no pressuposto do consenso do corporate state, em todo caso não se extrapola o limite do partilhável discursivo, pelo contrário, se pensa que o limite se tornou infranqueável. Assim, a “ideologia” é imanente ao limite e ela jamais pode chegar ao que lhe é inapreensível como real “dominação cultural”, onde o conflito ocorre  em nível discursivamente 
incomensurável. 
           Espero mostrar como em Hutcheon o pós-modernismo preserva-se na ambiguidade desse limite.  

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