A CINEMATÓTICA CONTINUA

Um dos prazeres que sinto ao produzir um filme é constatar que muitas vezes uma cena inesperada ou até mesmo errada acaba dando certo.

(Charles Chaplin)

O subtítulo desta apresentação é: porque o Paulo Coelho está errado e não entende nada.

O que eu pretendo fazer aqui é o seguinte:

I – Ensinar vocês a pronunciarem Oswald de Andrade, Oswald com acento prosódico no “a”, que é o nome dele, porque ele recusava o “Oswaldo” que o Mário de Andrade tentava impor, porque Osvaldo é brasileiro, e a pronúncia clássica de Oswald (com acento no “o”), como as pessoas geralmente pronunciavam, porque é inglês. Ele não era puro brasileiro, ele não era puro estrangeiro, ele queria a mistura.

Há inclusive o artigo de Antonio Candido, “Oswaldo, Oswáld, Ôswald”, publicado na Folha de São Paulo de 21/03/1982, mostrando isso, que a pronúncia correta é Oswáld.

Por outro lado, a família sempre pronunciara o nome assim, conta-nos que Owald de Andrade:

que esta forma peculiar fora iniciativa da avó, natural de Baependi e leitora do romance Corina, de Madame de Staël /…/ Esta forma inglesa se manteve na família do nosso escritor por três gerações, sempre pronunciada Oswáld, à brasileira (como certamente pronunciaria também, mas aí à francesa, Madame de Staël) /…/

II – Meu segundo objetivo é dar para vocês uma ideia do que é a cinematótica, que é uma palavra que eu inventei e uso na minha tese de doutorado em Ciência da Literatura (Teoria da Literatura) e no meu livro O olho do ciclope e os novos antropófagos; antropofagia cinematótica na literatura brasileira. Forjei este expressão para explicar a importância do que foi feito por Oswald de Andrade e James Joyce, em suas obras.

III – Outro objetivo é mostrar para vocês o que é um trabalho de leitura em várias camadas, em literatura; onde mora essa profundidade. Quando a gente está no ensino médio, fica parecendo assim: uma narrativa que se atenha a uma “historinha” particular seria superficial, “falou mal do governo” seria profunda. Fica um beco sem saída: nunca a obra será profunda, nessa leitura. Não se aprendem onde estão as profundidades. O que faz o cinema de arte ser cinema de arte, o que faz do quadro “Guernica” de Pablo Picasso uma obra genial, o que faz de Ulisses de James Joyce uma obra fundamental. Então, eu vou apontar um pouco esses caminhos.

Essa questão é muito importante, para a vida de vocês, para vocês se tornarem teóricos potentes, realmente, e ela é importante para o Brasil, porque a coisa mais fraca que há em nosso país, talvez, é o campo das Ciências Humanas. Você pode dizer: “Ah, Luís, é a política”. E eu lhe digo: é a mesma coisa! A gente é tão ruim de política porque a gente é ruim de Ciências Humanas. Nós somos um dos melhores países na física e no desenvolvimento de tecnologia de engenharia, nós somos uns dos melhores do mundo.

Mas nós somos um dos piores do mundo em Ciências Humanas.

Qualquer uma delas, e Letras é Ciências Humanas, vocês sabem. Tudo que estudamos de língua em Letras está dentro da Linguística, tudo que estudamos em literatura está dentro da Ciência da Literatura.

Nós no Brasil não temos orgulho das Ciências Humanas, e pouco conseguimos desenvolver. Os livros, quando chegam, vêm mal traduzidos; os livros são caríssimos, nem todos leem em inglês, francês e espanhol, e, quando leem, poucos se dispõem a ir à Livraria comprar um livro caro, nessas línguas – porque nelas você encontra tudo. Em português não há quase nada de Teoria da Literatura, Linguística, História, Sociologia, Filosofia etc.

Então, os objetivos são esses.

O que eu quis dizer quando falei que Paulo Coelho não entendeu? Eu não vou voltar a palestra para Paulo Coelho, não vou usar uma bomba atômica contra uma formiga. O objetivo não é este. É só pegar uma frase dele, na entrevista à revista “Rolling Stone Brasil” de setembro ele disse que ele é o intelectual mais importante do Brasil, e à “Folha de São Paulodisse que James Joyce fez mal à literatura, e que “se você disseca o Ulisses, dá um tuíte”.

Ora, Joyce não foi um autor de best sellers, que vendeu muito e viveu disso. O Joyce enfrentou muitas perseguições.

Manuel Bandeira dizia que para ele o mais lindo verso escrito em nossa língua era:

Tu pisavas os astros, distraída

“Chão de estrelas” é um poema enorme, do qual Silvio Caldas musicou três ou quatro estrofes.

Já eu acho que este é, com certeza, um dos versos mais lindos da língua portuguesa:

Te levei solitário

Nos ergástulos vigilantes da ordem intraduzível

“Ergástulo” significa: cárcere, prisão, masmorra, enxovia.

O Oswald de Andrade, como quase todo grande gênio da arte no século XX, não ficou rico como Paulo Coelho, eles sofreram muito, porque incomodavam muito. E não incomodavam só porque falavam do governo, ou porque falavam de sexo. É muito mais complicado. É nisso que eu estou querendo chegar, nessa questão. Pelo menos, sensibilizar vocês para esta questão: o que são e o que querem realmente que as vanguardas na Europa e o modernismo no Brasil. E por que Paulo Coelho não entende quando fala isso sobre James Joyce, que ele fez à literatura e que Ulisses se resume a um tuíte.

Segundo Paulo Coelho, o romance tem que ter uma historinha de uma novela de televisão, com lances de amor, o vilão que se dá bem e revolta todo mundo, ou se dá mal, e todo mundo fica feliz etc.

Ulisses é um romance que apresenta 852 páginas da mais densa prosa. Se você quiser ler em português, há três ótimas traduções disponíveis: do Antonio Houaiss (publicada originalmente em 1966), da Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e de Caetano W. Galindo (2012; esta edição, pela editora Companhia das Letras, tem 1.112 páginas).

Se você pegar um dos textos mais geniais do mundo que é Hamlet de William Shakespeare dá um tuíte: o tio matou o irmão que era rei, se casou com a rainha, e o sobrinho quer se vingar. Pronto! Tuitei o Hamlet. Mas, acabou? Hamlet é só isso?

Paulo Coelho também dá um tuíte. Tudo dá um tuíte.

Porque a literatura não é feita da história.

Quer dizer, a história, a narrativa, é um elemento, é um dos elementos.

Mas então do que ela é feita? O que que eu quero dizer então?

Pois bem. Em O olho do ciclope, eu criei a palavra “cinematótica”, com os radicais gregos “kinetós”, “que pode mover-se, capaz de mover-se”, e “optikós”, “que se refere à visão e seus fenômenos”.

Minha tese se baseia em dois livros fundamentais do filósofo francês Gilles Deleuze sobre cinema: Cinema I: a imagem-movimento e Cinema II: a imagem-tempo. Vamos falar um pouco da sua teoria.

Quando o cinema apareceu era uma novidade. Há vários inventores e datas importantes para marcar o início do cinema, mas podemos, por exemplo, assinalar o dia 28 de dezembro de 1895, que foi quando os irmãos Lumière fizeram a primeira apresentação pública do seu aparelho cinematógrafo, no Salão Grand Café de Paris.

Como toda novidade ele ainda não tinha “IBOPE”, não era qualificado, era uma coisa nova. E começam a se criar duas vertentes no cinema: a primeira é o cinema de arte, que não conta história, e a segunda vertente é um cinema de historinha, historinha movimentada, como no teatro vaudeville. As duas aconteceram simultaneamente. E rapidamente se viu que as pessoas eram capazes de pagar um centavo para ver a historinha corridinha, mas não eram capazes de pagar para ver o cinema de arte. Para ver mostrar os filmes comerciais surgiram as salas de cinema, e para poder mostrar os filmes de arte surgiram os cineclubes, que era onde você podia passar os filmes que não vendiam, que eram cinema de arte.

Para mim o cinema brasileiro é fundado por um filme que eu analiso no artigo “Mário Pirata” deste livro. Em 1931, Mário Peixoto realiza Limite, um dos melhores filmes de arte do mundo, e que é respeitado, no mundo todo.

O Mário Peixoto nunca mais conseguiu filmar. Ele tinha 23 anos quando lançou Limite, morreu com quase 84 anos, ele tentou filmar a vida inteira, não conseguiu. Ele publicou um romance, o pai dele mandou comprar tudo e queimou, O inútil de cada um; depois, já idoso, ele refaz o romance em vários volumes, no estilo de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. Esse romance não vende, o primeiro volume Itamar, e eles não publicam os outros volumes. Até hoje não foi publicado inteiro O inútil de cada um. O filme Limite foi destruído pelo tempo, depois foi recuperado por Plinio Sussekind e Saulo Pereira de Mello. Hoje o filme está recuperado como película, está em vídeo e você pode ver até no youtube: vejam Limite.

Então, você tem o cinema e arte e o cineclube, que pode mostrar cinema de arte, porque não está dependendo da renda, e o cinema comercial, e as salas de cinema. Quando veio a TV, foi uma avalanche em cima disso; e agora, com a TV por assinatura e as locadoras, a avalanche é total. Tipo: TeleCineCult é para mostrar Um cachorro muito louco, Curtindo a vida adoidado etc. Onde está o cinema de arte? Não está na TV. Não está na TV aberta. Está na locadora? Aí a gente fala um pouco sobre um certo apartheid social e econômico do Brasil. Na locadora do Leblon, está. Mas eu morava na Ilha, e o cara quase me escorraçava quando eu pedia um filme de arte de lá de dentro. Agora eu moro no Grajaú. Na Tijuca não há filme de arte. Estão entendendo? Até tem acesso. Basta você nascer numa família de posses, com uma certa conexão da elite. Isso é apartheid. Então, nós não sendo da elite, e nos apropriando da arte, estamos fazendo algo revolucionário. Porque não querem que a gente se aproprie. Você pode ficar o fim de semana inteiro, as férias inteiras em frente à televisão, e você não vai ver um filme de arte. Você não vai ver uma mensagem inteligente.

E qual é a tese do Deleuze? O Deleuze diz o seguinte: o ser humano tem a capacidade de ver de duas formas. Deleuze está se ligando a um filósofo chamado Herni Bergson. Em Matéria e Memória, o Bergson diz que a nossa consciência é como um cone invertido. Imagina uma mesa, um papel em cima da mesa, e aí você tem um cone. A ponta do cone toca na mesa. Essa ponta do cone é a nossa consciência, quando eu estou preocupado com almoço, a janta, a hora, correndo, eu estou ali todo voltado para o funcional. Mas ele fala que se a pessoa conseguir se desligar do funcional, ela conseguirá acessar outras seções do cone. Por exemplo no sonho: você não está na ponta do cone, o papel sobe, e você intercepta uma outra área do cone (BERGSON, 1990, p. 125 e ss.).

Conforme você vai se soltando do funcional, expande a consciência. O animal está só preocupado em se defender, se acasalar, quando é a época, e obter alimento. Então ele está ali, toda a consciência dele está “linkada” àquilo.

James Joyce, para poder pensar Ulisses, ele teve que soltar a consciência dele. “James Joyce, você não está preocupado com a conta, você não está preocupado com o seu sapato que está furado, com não sei que lá…” “Espera aí, eu não estou preocupado com isso”, entendeu?

Uma vez eu dava aula em um CIEP em Acari e pegava o metrô e me veio a ideia de um poema na hora que eu fui pegar o metrô. Eu cheguei e veio a ideia do poema na minha mente, e eu estava preocupado e mantê-la e entrar logo no trem para escrever e não esquecer a ideia. E eu me confundi quanto à entrada da cabine onde se compravam as passagens, e a moça que atendia na cabine começou a debochar, como se eu fosse um bobo, porque eu não estava bem onde ela estava. Se eu voltasse para argumentar com ela, iria perder o meu poema, porque a gente esquece e nunca mais lembra. Nem entra no repertório dela a possibilidade de eu não estar com a minha consciência toda conectada no funcional. Ela estar conectada em alguma outra coisa, estão entendendo?

O primeiro passo para essa alguma outra coisa, todos os outros estágios que são possíveis, segundo Bergson, é justamente se libertar da consciência funcional. Coisa que é difícil. E que hoje em dia está cada vez mais difícil, por causa do stress, das demandas, e, com o celular, com a internet e com o tipo de TV que a gente tem, a pessoa está ligada mesmo quando está dormindo, atende celular estressada. A pessoa está o tempo todo ligada ao funcional, mesmo quando está dormindo. E quando vê os filmes também, é tudo funcional, tudo funcional.

Então, seria necessária uma outra prática, que é muito simples na verdade, não é complicada, não se está falando nada demais. “O que o Joyce fez para escrever Ulisses?” Ele só deu tempo, só deu espaço. O Joyce perdeu tempo, digamos assim. O Joyce deixou rolar, é uma coisa zen. Se bem que há escritores que foram pelo lado da embriaguez, o Scott Fitzgerald, o Hemingway, mas não é necessária a embriaguez. Não é o caso. E muito menos a loucura. Existe gente que defende que o Van Gogh era louco. Há controvérsias. Alguém já leu as Cartas a Théo? Van Gogh é um dos melhores teóricos da arte modernista. Como é que um cara louco tem aquela autoconsciência? O cara vivia lá na perseguição, na miséria, só vendeu um quadro em vida, por um preço irrisório, mas, ele sabia o que ele estava fazendo.

Não sei se alguém viu o filme O segredo de Beethoven (Copying Beethoven, 2006, de Agnieszka Holland, com Ed Harris e Diane Kruger), em que Ludwig está namorando uma moça nova, é uma história real, que era música também, e ele estava totalmente surdo, e já idoso. E ele começa a fazer a Nona sinfonia, e todo mundo fica contra ele, inclusive ela. Ela dizia: “Mas a harmonia está toda errada!” E ele respondia: “Eu estou fazendo a música do futuro”. E estava. A música teve dois grandes formatadores, Johan Sebastian Bach, que estabeleceu os padrões harmônicos, a lógica da harmonia ocidental, e o Beethoven revolucionou a construção da harmonia, na última fase dele. Mas ninguém ficou a favor dele. Diziam: “Ele está surdo! Ele está maluco! Ele está gagá!” E ele sabia o que ele estava fazendo.

Um cara como Joyce também, que pagou para editar seus livros, poucos exemplares, os livros eram queimados na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, em praça pública, igualzinho a Dom Quixote, mas ali eram os livros dele. Um cara faz isso, e vive sem nenhum reconhecimento, com toda a dificuldade, porque ele sabe o que está fazendo. Então, não é a loucura, não é a embriaguez.

Não estou dizendo que não haja casos de artistas que caíram na loucura ou na embriaguez, como há com homens comuns, na mesma proporção; a pessoa segue as tendências delas, nas várias instâncias da vida.

E no caso do pensamento, ela é tendência de todos nós. Mas, temos um sistema, que não é nem do governo X, Y ou Z, há uma tendência social que liga você ao funcional. E da forma mais simples, alguém como James Joyce e Oswald de Andrade, na literatura, conseguem elevar o corte do plano.

Em Cinema I: a imagem-movimento, Deleuze analisa os filmes que são funcionais, e há filmes deste tipo muito bons. No Cinema II: a imagem-tempo, ele analisa os filmes do tempo puro. O que acontece com o cinema é que a imagem está em movimento, literalmente. Mas ela é feita de luz projetada. Você pode se ligar à ideia de que a imagem está em movimento, logo, é o movimento da imagem. Por exemplo, eu posso filmar uma peça de teatro, com as pessoas em movimento, as pessoas agindo. Esse é o cinema movimento. Mas ele é feito de luz, na verdade. Ele é luz criando diferença, o tempo todo. Que a gente, funcionalmente, de uma forma interessada, lê como movimentos orgânicos.

Essa é outra terminologia que Deleuze usa muito: orgânico e inorgânico, e que ele haure no teórico das artes plásticas Wilhelm Wörringer (1881-1965), nos livros Abstração e Natureza (1908), Problemas formais do gótico (1911) e Problemática da arte contemporânea (1948). Em sua teoria da empatia ou projeção sentimental (Einfuhlhung) Wörringer afirma na toda a história da arte existem dois impulsos (ou um, ou outro): A) de satisfação, que se dá pela beleza do orgânico; e B) abstracionista, que encontra a beleza inorgânica, regida por leis e necessidades abstratas.

Para Deleuze, o cinema de arte seria inorgânico na teoria do Wörringer, um cinema na terminologia de Deleuze com Bergson, é cristalino, e mostra o tempo puro. É uma percepção do tempo puro. O que seria o tempo puro para Deleuze? Essa é uma questão muito grande, muito complexa. Eu vou dar algumas indicações para vocês. O melhor livro para entendê-lo é a obra deleuziana Diferença e repetição, que é um livro denso.

Quando eu estou no funcional, eu estou agenciado com o tempo real, por exemplo: quando eu estava preparando esta palestra, é passado; quando eu estiver de noite, assistindo ao Seminário, é futuro; agora estou falando, é presente. A ponta do cone está seguindo uma linha só do tempo. Mas, a arte consegue trabalhar com o tempo virtual que é uma interseção de tempos. Porque, quando eu tenho passado/presente/futuro, uma linha que passa na ponta do cone, igual à ponta de diamante da agulha da vitrola tocando o disco. Todo momento você tem um presente, na ponta da agulha, na ponta do cone. Então, eu cheguei na hora, estou dando a palestra, estou fazendo isto. Eu estava ontem fazendo aquilo. De noite vou estar fazendo outra coisa. Isso é real.

Agora, eu posso fantasiar. Como numa seção de relaxamento do curso de teatro: “Fechem os olhos, relaxem… Estamos numa praia… Você está flutuando…” Você não está flutuando. Mas as crianças levam isso tudo muito a sério, você já percebeu? Teatro, relaxamento, brincadeira. E a criança não quer parar. Ela não tem fome, ela não fica frio, ela entrou naquela brincadeira e ela quer continuar. E ela sabe que a mãe dela é a mãe dela, que está chamando para o jantar, e ela sabe que ela está no navio do pirata.

Esse outro real imaginado é um real virtual. Mas, ele não é chamado de virtual, ele é chamado de “falso”. Normalmente, é o falso. Então, você tem o verdadeiro – a prova de verdade é a ponta do cone, o que está na sucessão da linha do tempo; e você tem o virtual – o falso, o que não aconteceu.

E eu vou tentar explicar porque ele não vira falso para o Deleuze. Para o Deleuze não tem falso. Falso é uma categoria platônica. Platão dizia que o que imita uma ideia é verdadeiro. Se imita mal, é verdadeiro, mas é mau, mas imita. Se não imita, é falso (simulacro). Então, para o Platão, a questão é seria o que imita melhor, o melhor e o pior, e o certo e o errado, o verdadeiro e o falso.

Para o Nietzsche não existe verdadeiro e falso. Existe aquilo que te torna potente, e aquilo que reduz a tua potência. Comer uma macarronada com bisteca é verdadeiro ou falso? Depende e mim, agora. Esse é o segredo do regime. Comer a macarronada pode ser verdadeiro agora, ou não. Estão entendendo o que eu estou dizendo? Quando ela vai ser verdadeira? Qual o bom momento de eu comer a macarronada? Quando ela for aumentar a minha potência. Qual o momento ruim de comer macarronada? Quando ela for diminuir minha potência. Essa é a prova do Nietzsche; aumentou a potência, diminuiu a potência.

Estou querendo colocar a ideia do virtual para vocês. Alice no país das maravilhas do Lewis Carroll é um livro todo sobre o virtual, o Deleuze tem um livro sobre Alice, que é A lógica do sentido, que na verdade estuda a lógica dos estoicos. Na Alice, você não há uma realidade só, você tem várias realidades que se dão ali, criativamente.

Um dos melhores filmes da nouvelle vague francesa é O ano passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961), de Alain Resnais, que mostra uma mulher que está hospedada num hotel com o marido, e ela encontra ali um homem que começa a dizer que eles tiveram um caso de amor, no ano passado, em Marienbad, e que eles tinham combinado de se encontrar ali para fugir juntos. O filme não tem uma linearidade. É como uma música, na qual os temas vão voltando. Então as falas dele vão de noite, de dia, quando eles se encontram essas falas acontecem, e elas se repetem mesmo nos momentos em que eles não estão juntos, no jardim, na orquestra e todos os lugares, e as falas dele, as falas dele se repetindo. Ele acredita piamente que eles marcaram encontro em algum lugar, ele não lembra bem, ele fala o nome de várias praias, foi tal ou tal ou tal lugar, ou foi em Marienbad. E ela não lembra, não lembra, mas, cada vez, ela vai ficando mais seduzida por aquilo. No final eles fogem juntos. E então: ele estava falando a verdade ou ele estava falando a mentira?

No início era mentira, no final era verdade.

Quer dizer, aquilo teve potência para se realizar.

Paulo Coelho é um mago? Agora ele diz: é um mago das vendas, das palavras que vendem. Quer dizer, ele teve potência para realizar. Torna-se real o que tem potência para ser real. E o que não tem potência para ser real? Agora vamos falar de James Joyce.

Joyce que está apanhando de Paulo Coelho. Só que Paulo Coelho é best seller, ficou rico. James Joyce nunca ganhou um centavo com literatura. James Joyce não teve potência para se realizar, é o virtual. Mas é um virtual que (enquanto virtual) tem potência.

Vou dar outros dois exemplos.

O garoto tem uma lembrança da infância dele. Tudo foi errado desde o início, por causa disso, disso e disso. Aí um dia, alguém chega e fala para ele: “Cara, não foi assim que aconteceu, foi assim”, e ele vê que ele não tinha sido o fraco da história, ele tinha saído bem. E muda o presente dele. Estão entendendo? Qual passado era real? Os dois são reais. Num passado ele foi covarde, no outro ele foi corajoso. E ele viveu a vida inteira carregando a diminuição do passado A. E existia o passado B. Os dois são reais. Os dois são virtuais. O virtual é o real do lado B. O real que está em stand by, entendeu?

Os dois são reais, e você pode escolher o que você quiser. Já que a sua potência vai ser dada hoje pela lembrança do passado, edita isso bem.

Há uma historinha zen muito bonita. Vocês conhecem o conto da joia Muni? Um homem era muito rico e encontrou um grande amigo de infância que estava mendigando, na miséria total. Ele ficou com muita pena e ofereceu dinheiro, o outro falou: “Não! Nunca! Que é isso? Eu estou feliz de lhe ver, jamais aceitaria algo de você”. Aí, o amigo rico deu um abraço no outro, e colocou, sem ele ver, a joia mais cara do mundo no bolso dele, e foi embora.

Passaram-se dez anos, e ele reencontrou o amigo, na miséria. E ele perguntou: “Por que você está na miséria? Eu lhe dei a joia Muni!” “Você me deu o quê?” “A joia Muni, eu botei no seu bolso.” “Ih, eu nunca botei a mão no bolso”. E ele colocou a mão no bolso e lá estava a joia Muni. Ele carrega um tesouro com ele o tempo todo, e não sabia. E é exatamente isso que é o virtual. Esse tesouro que a gente carrega.

Havia duas versões do passado, e uma lhe enfraquecia, e você adotou porque quis, e ela lhe enfraqueceu ao longo da vida, e uma lhe fortalece, você adota porque quer, e ela lhe fortalece, porém as duas são do passado, e as duas podem ser adotadas – depende do ponto de vista.

Deleuze fala que o cinema de vidente, que nos mostra o tempo puro, esse cinema mostra o real e o virtual sobrepostos. Ele mostra as duas versões sobrepostas. Com isso, ele não dá a visão do presente – o herói beija Julieta. Não é a visão do presente, ele dá a visão do tempo puro.

Isso é cinematótica, palavra que eu inventei, para dizer que essa faculdade de ver o tempo puro é nossa, é uma faculdade humana. Deleuze está falando do cinema. Eu digo: o homem tem o olho cinematográfico.

O cinema sempre existiu. O cinema já existia antes do cinema existir. Desde a pré-história. Eu já começo o livro falando que há milhares de anos atrás os chineses faziam teatrinho de sombras com lanternas. Isso para mim é cinema.

A mais antiga pintura rupestre das Américas fica no Brasil, em Lagoa Santa, Minas Gerais, é de dez mil e quinhentos anos atrás. A mais antiga do mundo foi encontrada em Chauvet, no sul da França, e foram feitas há mais de 28 mil anos. Isso já é cinema. O homem projetando imagens de luz que podem ser lidas de duas formas: ela pode ser lida como algo funcional, o movimento acontecendo, ou ela pode ser lida como a luz. Como arte.

A gente pode ver o mundo, ver a vida, ver qualquer coisa, de uma forma funcional, ou ver de uma forma cristalina, que é a interseção do virtual com o real. Quando eu vejo a interseção do real com o virtual eu vejo o supertempo. Para o Deleuze, é o tempo puro. Porque eu vejo todas as possibilidades que poderiam acontecer. E, secundariamente, um bônus, é a joia Muni: você pode escolher outra virtualidade.

No filme Quem somos nós (What the bleep do we know?, 2004, direção de William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente), há um momento em que a Amanda vê as três possibilidades dela, e escolhe o que ela vai fazer. Mas, aí, já é uma questão ética, a posteriori.

Qual o foco do que eu estou falando em Oswald de Andrade?

A minha teoria é que algumas obras, não todas, fazem a cinematótica. Se a gente ficar só falando: o modernismo revolucionou a linguagem literária – sim; ele chocou a burguesia – sim; a burguesia do início do século XX ficava impactada a toa – porém, isso fica muito pobre.

Vieram me perguntar se Nelson Rodrigues ainda tem atualidade. Aquela mentalidade, aquele tipo de família, aquele pai doente ali de Os sete gatinhos, é raríssimo hoje. Se você for pegar assim, fica uma coisa histórica, datada, foi importante. Mas Nelson Rodrigues é importante pelo tanto o quanto ele é metalinguístico, e o quanto ele descontrói a linguagem cênica. Esse é só um exemplo.

No caso do Oswald de Andrade, para mim ele sofreu a maior injustiça da literatura brasileira. Porque na melhor das hipótese a maioria acha que ele fazia humor e tentava épater les bourgeois, chocar os burgueses.

Não sei se vocês viram a minissérie da Globo Um só coração (2004, direção de Carlos Araújo, roteiro de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira), que se passava em São Paulo, e eles avacalhavam totalmente os modernistas. O Mário de Andrade era um fresquinho, bobinho, e na verdade o Mário era um grande pensador, corajoso para caramba. O Oswald na série era um bobalhão, um palhaço que ficava debochando – não é nada disso.

O Oswald foi um dos maiores pensadores do mundo.

Até prova em contrário para mim (e isso é outra coisa que eu defendo na minha tese), ele produziu a única filosofia original feita no Brasil. Original. A própria filosofia da antropofagia.

E ele faz isso que eu chamo de cinematótica na obra dele. Ele não teve como ler Joyce, porque em 1922 Joyce estava publicando Ulisses, e teve repercussão mínima na época, porque foi muito perseguido.

Existem estudos muito bons do Haroldo de Campos na edição das obras completas de Oswald de Andrade, e ele explora essa relação (CAMPOS, 1975, passim), assim como faz essa ponte, que ele chama de “camera eye”, no estudo para as Poesias reunidas, “Uma poética da radicalidade” (ANDRADE, 1974, p. 18).

Otto Maria Carpeaux e muitos outros também perceberam de cara, que a prosa de Joyce e Oswald são cinematográficas, mas isso não tinha grande valor para as pessoas na época. “É cinematográfico, eles estão trazendo essa coisa, é interessante e tal”. “É só uma influência”… Não é! Ele estava pegando a potência da cinematótica, que é uma potência do homem, de ver o tempo puro, ele pode ver o tempo puro, os feiticeiros dos índios viam o tempo puro, místicos cristãos que voavam, ficavam sem comer, viam o tempo puro…

Ele pode ver o tempo puro. Mas ele não vê o tempo puro. Por que o homem não vê o tempo puro? Porque ele está na ponta do cone lá do Bergson, ele está todo ligado com o funcional. Ele precisa se desligar do funcional. E como se faz isso? Faz só desligando, não precisa fazer nada. A gente faz isso todo dia – quando dorme. Quando sonha a gente está vendo o tempo puro. É a interseção do real atual com o real virtual.

Enquanto arte isso dá uma visão ontológica, uma visão do ser, que transcende as injunções humanas, o pequeno, o mesquinho. A grandeza de Hamlet, que pode dar um tuíte, está aí. Está nessa visão do tempo e do ser. Não está no tuíte.

A grandeza do Joyce de Ulisses está aí, e não no tuíte.

A pequeneza do Paulo Coelho, por mais prepotente que ele seja, também está aí. Ele pode ser interessante, porque o tuíte dele é engraçado e dá uma moralzinha. Sim, mas, ele não mostra nada. Continua na ponta do cone.

Agora vamos mostrar o cristal do tempo puro em Oswald de Andrade. Vamos ver um dos “Poemas menores”, “balada do esplanada”, para mostrar como ele faz essa junção do virtual com o real.

O Cazuza, que era muito inteligente também, musicou e gravou esse poema no LP Só se for a 2 pela PolyGram, em 1987. O que foi uma raridade, porque geralmente o Cazuza fazia o poema e alguém fazia a música, aqui ele é que fez a melodia para o poema.

E o que acontece? Como é que o Oswald faz essa fusão, esse ponto de interseção, do real com o virtual na obra dele? De duas formas, uma é o tempo, aquela questão dos tempos possíveis, os mundos possíveis do Leibniz, as realidades possíveis. E o outro é o humor.

Uma das coisas mais geniais do mundo é o poema que abre o Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade: amor/humor[11]. O nome do poema é “amor”, e o poema todo é a palavra “humor”. E não é só porque ele é sintético, minimalista, experimental e traz uma sacada, não. É porque ali está o programa literário, e o programa filosófico do Oswald de Andrade.

Tenta entender isso: é amor ou é humor? Geralmente, amor é amor, humor é humor. Poemas satíricos e poemas líricos, concorda comigo? Ou o poema é lírico, ou ele é satírico. Ou você gosta do cara, gosta da garota, ou você está de “zoação”, está entendendo? Ou aquilo é sério, ou não é. Mas é, e não é.

O tempo todo, todas as obras de Oswald de Andrade têm essa fusão de uma visão lírica muito séria, real, com a crítica e o humor. Por exemplo, em “meus sete anos” e “meus oito anos”[12], a nostalgia verdadeira, ele está realmente falando da infância dele, mas ao mesmo tempo ele está realmente criticando o romantismo, ele está realmente fazendo humor, e a metalinguagem, e tudo ao mesmo tempo.

Essa é a forma como ele nos mostra o tempo puro, a imagem cristalina, porque não dá para fechar no ego do Oswald, só. E é isso que a Globo tentou desvirtuar totalmente, quando o colocou como um palhacinho, ele não era um palhacinho. Ele foi o cara mais sério da literatura brasileira.

Vamos ver um pouco isso na “balada do esplanada”:

Ontem à noite

Eu procurei

Ver se aprendia

Como é que se fazia

Uma balada

Antes d’ir

Pro meu hotel

Ele é poeta, aqui ele já tinha feito vários livros, mas ele quer aprender como se faz uma balada. Balada é uma forma clássica, e ele é modernista, então ele está querendo se render ao clássico? Mas ele mora no hotel, logo ele não tem lar, não tem família.

É que este

Coração

Já se cansou

De viver só

E quer então

Morar contigo

No Esplanada

O hotel vira a metáfora desse homem cigano, que não tem afetos fixos, e, ao mesmo tempo, a vontade dele de mudar, como se ele dissesse: “Eu não quero mais ser modernista, eu não quero mais ser maluco, eu quero morar com você”. Mas ele quer morar com ela no hotel. Ele quer fazer o paradoxo.

Eu qu’ria

Poder

Encher

Este papel

De versos lindos

É tão distinto

Ser menestrel

Quando ele faz a elisão da vogal em “qu’ria”, está usando a apócope e o apóstrofo, como se ele quisesse entrar numa métrica, que era um recurso muito usado pelos clássicos e pelos românticos, e ele na verdade não está entrando numa métrica, mas faz como se quisesse. Como se ele fosse um sujeito muito inábil, quase um garoto, e ele vai tentar imitar o que ele não sabe imitar bem. Ele está assumindo essa visão. Aliás, ele já era um poeta bastante experiente quando fez o Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, que este poema em tela integra. Que não era o seu primeiro livro, e ele não era um garoto, e sim um cara maduro.

Há um outro poema dele, que diz:

Aprendi com meu filho de dez anos

Que a poesia é a descoberta

Das coisas que eu nunca vi

As coisas são as mesmas, é a mesma coisa, mas eu nunca vi, nunca tinha visto antes, assim. É o tempo que vem. A gente sempre olha para o tempo que vai.

Voltando à “balada do esplanada”:

No futuro

As gerações

Que passariam

Diriam

É o hotel

Do menestrel

Como se estivesse com inveja, querendo ser menestrel.

Pra m’inspirar

Abro a janela

Como um jornal

Vou fazer

A balada

Do Esplanada

E ficar sendo

O menestrel

De meu hotel

Aí vocês estão percebendo, que ele, o tempo todo, está sendo hiper debochado, está debochando do classicismo, do romantismo e do próprio modernismo! Ele fala: “Essa visão de ser revolucionário, não ter amarras, não ter certezas, me cansou. Ela dói também”. Ele está debochando do próprio modernismo.

Mas não há poesia

Num hotel

Mesmo sendo

‘Splanada

Ou Grand-Hotel

Ele está se mostrando como alguém que quer o amor, ao mesmo tempo em que parece que está usando isso como um deboche.

Há poesia

Na dor

Na flor

No beija-flor

No elevador

Aí, ele acha que a poesia está onde os clássicos botavam a poesia, ela está naqueles versos e naquelas rimas tradicionais, pré-estabelecidas.

É como se fosse uma rendição, mas na verdade é uma grande festa.

Aí ele faz uma oferta:

Quem sabe

Se algum dia

Traria

O elevador

Até aqui

O teu amor

Com isso ele funde e confunde as rimas surradas, transmutando a dor pela palavra “elevador; e aí ele mostra que há poesia em qualquer coisa, e não só nos temas pré-estabelecidos.

Esse elevador é o objeto concreto, ponto de contato com o mundo, e, ao mesmo tempo, é a porta para ela chegar, e muda a dor em algo bom, porque eleva, é como um “elevador” da consciência do eu.

Assim, ele recupera reanima, recicla e repotencializa, o que havia de esgotado, tanto no eu, quanto no social, tanto nos clássicos, quanto nos modernos.

Há outros que pregam a imbecilização da literatura, reduzindo-a a efeitos fáceis e historinhas pra boi dormir, e consequente alienação vital dos leitores, que se tornam “telespectadores” de “tvs de papel”, livros tão raros como as telas costumam ser, mesmo podendo ser profundas.

Porém não vamos mais falar deles.

Paulo Coelho os resume, eles não valem a pena. Acho que agora podemos começar.

(Polemizei sobre isso em mesa redonda na Faculdade CCAA, com um auto proclamado – e medianamente vendido, vendável – eu o li, é ruim sim – “escritor” – merece as “aspas” – o qual dizia que criticava acerbamente grandes autores considerados clássicos, ou experimentalistas, e principalmente quem proponha sua leitura hoje – proclamando bobagens do tipo “Machado e Dostoievski são uns chatos, que ninguém mais aguenta ler, e que só fazem afastar os alunos da literatura”; novamente, não vale a pena.)

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