Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 7
O título é um verso do canção de Jorge Mautner, “Todo errado”. Caetano dá sua versão de “Maracatu atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, a canção da dupla que recebeu mais gravações, sendo as principais a do próprio autor, no lp de 1974, produzido por Gilberto Gil, que no mesmo ano também a interpretou num compacto, e as quatro versões que Chico Science e Nação Zumbi fizeram em 1996 no cd Afrociberdelia.
O tropicalismo teve inspirações e interpretações várias e diversificadas. Na área da música inovadora, Jackson do Pandeiro, realizando uma estética combinatória e especulando sobre condições de intercâmbio cultural, abordou um assunto que seria eminentemente tropicalista: a internacionalização da música popular. O escritor-músico Jorge Mautner reconheceu o significado daquele artista nordestino na prática e na poética. Obras dele demonstram afinidades essenciais com o tropicalismo e constituem conexão significativa com o movimento mangue de Recife, eclosão cultural do fim do século XX comparável com o movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Estas ligações transtemporais permitem contemplar proveitosamente a extensão do tropicalismo, a riqueza da sua herança, suas colocações cosmopolitas, e novos conceitos de hibridização artística. /…/ Embora composta e gravada depois da fase heróica da Tropicália, “Maracatu atômico” pode ser considerado um tropo e uma instância exemplar da estética tropicalista. /…/ A letra reflete a contraposição e a fusão do técnico e do natural, e do ultramoderno e do tradicional., as quais se procura fazer soar na fábrica como um todo. /…/ O nome de Chico Science também é feito de um termo português de caráter comum e familiar ao lado de uma palavra inglesa da dimensão técnica, uma configuração consequente e consistente com a semântica de “Maracatu atômico”. Podendo usar “ciência” para refletir o interesse em teorias como a do caos, ou bem a noção de um cientista desvairado fazendo experimentos e misturações no laboratório, o poeta-vocalista teria optado pelo uso do inglês pelas razões periféricas alegadas acima ou por fazer vigorar um inter-relacionamento figurativo do científico e do musical, como o imaginado por Jorge Mautner, e, oswaldiana e tropicalisticamente, um constraste efetivo que antecipasse uma atuação transnacional. Assim se entrelaçam dois fios ecumênicos do tropicalismo, cujas intervenções locais e globais, e cujas projeções para um passado remoto de raízes e um futuro presente de frutos tecnicistas, iluminam-se mutuamente.
(Charles A. Perrone, “Do bebop e o Kaos ao Chaos e o triphop: dois fios ecumênicos no escopo semimilenar do tropicalismo”, Linha de Pesquisa, pp. 155-170)
Caetano é um artista, um ator, e se camufla de várias coisas, como Jorge Mautner que produz seus devires e delírios protéicos, Caetano camaleão faz devir mautneriano de muitas maneiras, por exemplo, nas melodias que compõe para as letras do amigo, “Tarado”, “Homem bomba”, “Grava divina”; na forma como canta “Maracatu atômico”, enegrecendo com a cozinha pesada do axé baiano seu mix, composto junto com Nelson Jaobina, de ritmos afro-pop-brasileiros, ou rolando os “rr” e alongando romântica e eslavamente a voz para interpretar “Todo errado”, puro Mautner, funda penetração na beleza assustadora do ser, e ao entoar com sotaque de português “Graça divina”, como Mautner fez no seu “Fado do gatinho” (dele e Jacobina, do lp Antimaldito, produzido por Caetano, canção que o cita e ao seu “Leãozinho”); e ainda compondo, sozinho, “O namorado”, com o gaguejar, tartamudear que Mautner usara em “Olhar bestial” (Para iluminar a cidade), para indicar, nos dois casos, tesão e medo, assombro.
Só Caetano e Mautner, Nietzsche e Oswald, juntos, conseguiriam escrever um samba como “Homem bomba”, que é a reedição do humor do carnaval brasileiro, que pega os assuntos do noticiário e devora, mastiga e digere, apresentando uma nova visão do que era o dramático cotidiano, isto é, apresentando uma visão trágica, afirmadora da vida. A canção lembra Noel e Vadico, e a maneira de Jorge cantar parece vinda da Lapa, dos malandros e de Aracy de Almeida. Já Caetano canta como sempre, seu canto casa com tudo, faz liga, ele é o camaleão, o grande “jokerman” da música brasileira.
A canção “Feitiço” afirma os valores da mestiçagem que Noel Rosa colocava em questão em “Feitiço da Vila”, quando os afirmava e negava ao mesmo tempo.
É interessante notar que Caetano faz duas canções que replicam a Noel; uma é resposta a “Pra que mentir?”, também de Noel Rosa e Vadico, revertendo o suposto machismo do famoso compositor, com a visão do eu lírico feminino, “Dom de iludir”, que está no cd Totalmente demais, e esta, e, nas duas, ele desdiz Noel, o desmente, vai de encontro a ele e lhe faz contestações que viriam de lugares ex-cêntricos que vão colocar em relevo sem relevar o lugar comum, o machismo ou o etnocentrismo do eu lírico que fala nos sambas de Noel.
A resposta de Caetano traz a questão da mistura das etnias, o problema da convivência com a diferença e a pluralidade de culturas como sendo um fator de potencialização da humanidade. A obra de Caetano começa pela valorização da mestiçagem, da mistura dos genes que produz as novas invenções da vida e dos novos modos de vida (ora, Caetano é um apaixonado por Afrodite e por Eros, pelo amor sexual, e também pelos frutos da árvore da vida). Caetano está fazendo os devires de um pensamento brasileiro, que está na prática da convivência das diferenças étnicas, e que foi formulado por pensadores poetas como Sousândrade e Oswald de Andrade. É o contrário do que se coloca numa outra linha que se supõe mais sociológica, e que tem suas bases na sociologia de Comte e do pensamento positivista do século XIX, revisitada com cada vez mais sutileza; é o pensamento do idêntico, do centro e do modelo feito pensamento social.
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço – traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado.
(Euclides da Cunha, Os sertões, pp 86, 87)
Replicando a visão errônea de Euclides da Cunha, que no seu romance Os sertões havia anteposto os dois tipos,
Você é antes de tudo um forte ou não passa de um mestiço neurastênico do litoral?
(Alegria, alegria, p. 151)
Caetano cantou:
Sou um mulato nato
No sentido lato
Mulato democrático do litoral
(“Sugar cane fields forever”)
A recusa à visão positivista e evolucionista das etnias, que informou tanto a cultura quanto a ciência do século XIX e chegou ao XX, perigando passar ao XXI, que gerou o nazismo e tantas outras formas mais veladas de preconceito e intolerância, é o grande motor da arte de Caetano Veloso. Já o fora de Sousândrade, ao criar o seu poema genial Guesa, que previa a antropofagia de Oswald de Andrade e o Macunaíma de Mário, além de soluções poéticas modernistas e pós-modernistas, e utilizava a palavra-valise esotérica, que vai ser uma das ferramentas preferidas de Caetano.
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