Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 6
As ambiguidades e autonegações que Caetano Veloso mostra em Verdade também aparecem, menos claras, no seu trabalho poético, mas não o empanam, e ele demonstra muitas outras qualidades que o superam, e é sobre elas que vou falar nas análises. A duplicidade constitui mesmo algo muito característico de seu estilo e de seu modo de pensar, que é barroco como só ele sabe ser, um novo tipo de barroco, como se Caetano fosse uma flecha que a natureza manda a nosso tempo (expressão de Nietzsche sobre o filósofo), com um novo equilíbrio entre a razão ordenada e a consciência plural: Caetano é o Dioniso apolíneo, ou, utilizando suas próprias palavras, um “cosmético caótico”. Ele confessa com frequência em seus depoimentos se sentir um artista polivalente, ou simplesmente artista, que poderia escolher qualquer meio de expressão, cinema, literatura, artes plásticas, ou a música, quase que por acaso:
Tenho vontade de fazer outras coisas. Fico com um pouco… querendo parar toda hora, porque quero pensar pra ver se faço outras coisas, porque continua aquele sentimentozinho com o qual vim pra Salvador com 18 anos. Um sentimento de que eu quero fazer um negócio, mas não sei exatamente o que é, em arte. Não sei se escrevo, se toco, se pinto, se faço filme… E continuo fazendo música. Mas não me sinto insatisfeito não, sacumé? Do ponto de vista da criação. /…/ Acho que eu podia botar uma tabuleta na porta, assim: faz-se arte. E a pessoa batia, era só eu treinar pintura, era só eu ter tempo e organização pra treinar todos esses meios, me treinar em todos esses meios e eu conseguiria fazer, bastando que houvesse um estímulo no sentido de fazer o quê e como, em que direção.
(Alegria, alegria, pp. 116-7 e 186)
Subentende-se que seu desejo de teorizar está vinculado a tal característica, seria uma parte de sua face literária, o que é interessante, e ao mesmo tempo intrigante. Desde Wagner que se instituiu o mito do artista total, que no século passado ganhou o apelido de multimídia (que usa muitos meios de expressão). Gesamtkunstwerk tornando-se assim Weltanschauung (a obra de arte total é visão do mundo). Por outro lado, a escolha de uma forma de expressão artística é a seleção de um material privilegiado com o qual vamos trabalhar, uma matéria sensível, e a ereção de uma sensibilidade no convívio com esse material; no caso de Caetano, é a melodia e, principalmente, a palavra melódica e rítmica, cantada e falada.
Escrever sobre Caetano Veloso é falar sobre a história da música popular brasileira. Mas não pára por aí, Caetano nos fala sobre muito mais coisas, ainda. Quer como uma rede capturar toda a cultura, a inteligência e a sensibilidade humanas. Ambição quixotesca, impossível, que ele mesmo assim, ousa haver. E chega a resultados maravilhosos.
Soube fazer as melhores amálgamas, e por a nu, à luz do sol, a sua mais genuína verdade, no que é, foi e será, e nos pares da dança, que roda sem descanço, muito mais veloz que 33 e um terço, na vitrola e no toca cd: Caetano e Gal, Gaetano e Gil, Caetano e Chico, Caetano e Bethânea, Caetano e João Gilberto, Caetano e Milton, Caetano e Jorge Ben Jor Caetano e Mautner.
A nave segue, crônica, mas a gente pode cantar jóias da música popular brasileira acima do Ben e do Mautner.
(Caetano Veloso, Alegria, Alegria, p. 74)
A amizade é antiga. Conheceram-se em Londres, durante o período de exílio, e Jorge ajudou Caetano e Gil a recuperar o bom humor com suas conversas e criatividade. Depois de atuar no filme O demiurgo, dirigido por Mautner, no papel título, no qual canta a canção “O Vampiro”, Caetano a gravará em 1979, no Cinema Transcendental. E no ano de 1981, canta com Jorge Mautner duas canções no lp deste, Bomba de Estrelas: “Cidadão-Cidadã” e “Vida Cotidiana” (ambas de Jorge Mautner e Nelson Jacobina). Caetano produziu o lp Antimaldito, de Jorge Mautner, em 1985, citou o livro do amigo em “Sampa” (Muito, 1978), e na canção “Os outros românticos”, dedicada a Mautner, Caetano o imita sutilmente com uma risadinha, depois do verso: “Na voz de algum cantor de rock alemão”.
O cd feito em dupla com Jorge Mautner saiu em 2002, e traz um interessante diálogo entre os dois compositores, que vai se tornar um triálogo com Gil, como não podia deixar de ser, e que se revelar na verdade uma conversa muito mais plural, uma verdadeira polifonia musical e literária. Tudo começou quando Caetano viu Jorge Mautner cantando em cima do trio elétrico de Gilberto Gil, no carnaval de 2002, “Hino do carnaval brasileiro”, de Lamartine Babo (que não era bobo, e, Elvis Presley brasileiro, transduziu o carnaval brasileiro para todas as raças). Depois conversas que os dois tiveram sobre os atentados contra o Pentágono e o World Trade Center, símbolos do poder do capitalismo mundial, central, e vieram as discussões sobre o livro Império, de Michael Hardt e Antonio Negri (uma delas registrada na Trajetória do Kaos, volume 3 de Mitologia do Kaos, de Jorge Mautner). Era preciso transformar isso tudo num cd.
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