Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 5

Uma outra forma, latente, do seu deslumbramento, pode-se perceber na relação que vê entre o ser brasileiro e o outro, estrangeiro, naqueles que se consideram a si mesmos como “primeiro mundo” ou “grandes países”. Verdade tropical foi feito a pedido da casa editorial americana Alfred Knopf, encomenda esta motivada pelo artigo “Carmen Miranda Dada”, que saiu publicado no jornal The New York Times, em 1991, e que chamou a atenção dos editores. Ora, Carmen Miranda é a outra face da moeda “poesia de exportação” de Oswald de Andrade, pois ela realmente levou nossa poesia como letra de música para a matriz do capitalismo do século XX, mas foi apropriada, tornada ícone, e fizeram com sua imagem o que ela quis e o que eles quiseram, quisesse ela ou não. Foi considerada exótica, e vendeu essa imagem de nosso país e cultura. E não era baiana, e muito menos brasileira, e sim portuguesa (mas não foi para ela que Geraldo Pereira escreveu “Falsa baiana”).

Caetano funde Oswald de Andrade e Carmen Miranda em si mesmo; industrial da poesia consciente que faz a revolução das formas artísticas nacionais desdenhando a colonização e rindo dela, e cantor do rádio. Esse tema incomoda Caetano ainda mais do que a questão da sexualidade. Não é à toa que seu livro abre com um capítulo de negação dos ícones de massa, os objetos sexuais estadunidenses, masculino, Elvis Presley, e feminino, Marilyn Monroe (a musa constante que obceca PanAmérica, de Zé Agrippino).

Aí vemos as duas questões nevrálgicas. Muitos episódios confirmam isso, como o da entrevista de Mick Jagger para o programa Conexão Internacional de Roberto d’Ávila, em Nova Iorque, em 1983, da qual Caetano participou: o roqueiro inglês foi irônico e quase desdenhoso com o jornalista, bem como com o cantor brasileiro que lhe dirigia perguntas, o que só depunha contra Jagger, não contra Caetano e Roberto. Em artigo de jornal Paulo Francis comentou sarcasticamente o fato, o que despertou a ira de Caetano Veloso, e gerou uma das muitas polêmicas de nosso poeta com intelectuais (outras ocorreram, com José Guilherme Merquior e Décio Pignatari) ou com a imprensa.

Ele vive essa duplicidade, defendendo um padrão e às vezes até mesmo uma visão que representam mais os desejos e apegos dos neocolonialistas, do que o racionalismo ou a qualidade e competência propriamente ditos; enquanto, ao mesmo tempo, é crítico em relação a tudo isso, e um ativo produtor de “biscoitos finos para as massas” bárbaras, nossas ou não.

O problema do uso da língua estrangeira, que ele discute também, é outro exemplo gritante. Ao chamar suas composições anglófonas da época do tropicalismo de “monstrengos” e desfazer do próprio domínio, alegando que o inglês e o português são tão diferentes como dois idiomas podem ser (o que é uma bobagem, mesmo na Europa as línguas urálicas, Húngaro, Finlandês etc., estão bem mais distantes das nossas, indo-europeias, como as latinas e as germânicas, do que estas entre si; sem contar as orientais ou ameríndias). O que ele não fala é que o inglês se misturou por toda parte, se imiscuiu em prol do comércio e da exploração; por isso não pode exigir a “correção”, isto é, o cumprimento à norma das universidades britânicas, ao ser falado, por exemplo, por um africano ou um jamaicano, que não pedem desculpas por usá-lo ao seu modo, já que ela se torna sua língua também, quando se impõe assim tão sem cerimônia sobre o resto do mundo; e a reinventam, e os falantes ingleses ou estadunidenses são obrigados a suportar os novos idiomas ingleses que vão aparecendo aqui e ali, pois foram produzidos pela sua própria atividade de expansão, e são reais, como é real a diferença e a necessidade de expressão dos outros povos que os falam, inclusive nós, se o fazemos. “Nós canto/falamos como quem inveja negros que sofrem horrores nos guetos do Harlem”, Caetano canto/fala em “Língua” (Velô), reconhecendo a riqueza dos slangs e dos patois, bem como do black english, e ao mesmo tempo sendo irônico com nossa mania (brasileira) de tentar imitar o modo de falar dos americanos, recolocando a questão que Noel Rosa já colocara em seu “Não tem tradução”. Mas ele (Caetano) parece querer passar um atestado de que está além de ser latino e mestiço, é um cidadão do mundo, homem culto e viajado, e reconhece suas próprias deficiências linguísticas do passado (ou que está além dessas determinações, por esforço pessoal ou genialidade racial, e pode reinventar o inglês, fazer o seu pop, o seu rap, como um bom antropófago – ver, por exemplo, o álbum a foreign sound). Convém notar que Caetano é totalmente detalhista e perfeccionista na pronúcia e performance de outro idioma, quando canta em línguas estrangeiras. Chega, por exemplo, a pronunciar gutural, com um pequeno /g/ depois do /y/, palavras hispânicas como “ley”, e outras minúcias assim.

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