Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 4
Outra questão que poderia gerar controvérsia é ver o samba de roda da Bahia como primeiro em relação ao do Rio de Janeiro, tão diferente daquele, e considerado por Caetano, que segue a opinião de alguns, como seu descendente, o que reafirma na música “Onde o Rio é mais baiano”, que está no cd contemporâneo, Livro. Ora, o samba do Rio de Janeiro é diferente do samba de roda, aliás, há vários tipos de samba originais do Rio de Janeiro, dos subúrbios e dos morros, das favelas. Os ancestrais desse samba são ritmos e tradições ainda preservados e vivos, como o jongo ou caxambu (Serrinha no Rio de Janeiro, Associação de Moradores do Quilombo São José da Serra em Valença e mais quinze comunidades no Rio de Janeiro, Vale Paulista e Minas), ou ritmos da época do Brasil colônia que aparecem no Rio antigo, como o lundu, além de formas correlatas que se encontram próximas do samba, o chorinho ou tango brasileiro (como os de Ernesto Nazareth), entre outras. Ainda levamos em conta a contribuição das batidas de candomblé e umbanda, que tanto se encontram no Rio quanto na Bahia. E há a documentação e registro do primeiro lugar onde se fez samba no Rio de Janeiro, a casa da tia Ciata, na Praça Onze; e do primeiro samba propriamente dito, que ali foi composto, por Donga e M. de Almeida, “Pelo telefone”. Talvez seja impossível determinar com certeza onde o samba nasceu, e tais precisões documentais tenham algo de mítico, mas podemos dizer que é (apenas) provável que tenha sido no Brasil. Criações populares, como um estilo musical, são trans-pessoais, atravessam gerações e não precisam ser datadas e etiquetadas. Podemos também nos lembrar que em países africanos, como Angola e Moçambique, existe o “semba”, que já traz em si célucas rítmicas matriciais do nosso samba, e que veio para o Brasil junto com os negros escravizados e a religiosidade dos deuses que aqui se constituíram como o candomblé e os orixás; e que, mesmo assim, é diferente do samba do Rio de Janeiro ou do da Bahia, que são, por sua vez, frisamos, diferentes entre si.
Mas a característica mais ingênua do relato/análise feito por Caetano Veloso em Verdade talvez seja o produto do deslumbramento que alega ter pelo iluminismo em suas várias formas, como o livro O mundo desde o fim de Antônio Cícero, irmão e letrista da cantora Marina, tentativa de restaurar a funcionalidade do cogito. No programa “Noites Cariocas” com Scarlet Moon e Nelson Mota, que passava na tv na primeira metade da década de 80, Antônio Cícero elogiou Caetano por ser iluminista; agora é o baiano que vê no outro tal qualidade. Mas foi na Londres dos anos 70 que, pela primeira vez, Jorge Mautner chamou, rindo, Caetano Veloso de iluminista, assim que os dois se conheceram. A crítica genérica a fenômenos que o próprio Caetano Veloso identifica como retorno do medieval, sebastianismo e irracionalismo, é leviana, pois não leva em conta todas as pesquisas que mostram as forças e investimentos do pensamento alternativo à chamada razão clássica, que é considerado racional também, plural, racionalidades alternativas, e que estão em todas as práticas, mesmo as científicas.
E gostamos dos irracionalistas, dos racionalistas e dos super-racionalistas.
(Caetano Veloso, “A Primeira Sessão do Kaos”, reunião realizada no dia 29 de novembro de 1974, em sua casa, na avenida Delfim Moreira, no Leblon, Rio de Janeiro, com Jorge Mautner, Luiz Carlos Maciel e Luís Carlos Cabral, para produzir o release do jornal que fariam, Kaos, e que não obteve patrocínio; do livro: Geração em transe, p. 263)
Há dubiedade em nosso autor quanto a estas, pois valoriza vários autores que ele mesmo chama de irracionalistas, além de confessar a influência que sofreu do que considera o sebastianismo de Fernando Pessoa do livro Mensagem e do professor baiano Agostinho da Silva. Declara ainda que ficou deslumbrado com PanAmérica (1ª edição: Rio de Janeiro, Tridente, julho de 1967, 2ª edição: São Paulo, Max Limonad, agosto de 1988, 3ª edição: São Paulo, Papagaio, março de 2001) de Zé Agrippino de Paula, mas não conseguiu compreender bem a epopeia pós-moderna, nem soube onde ou como encaixá-la, e pede que uma avaliação crítica seja feita, e que venha a satisfazer seu desejo de entender a obra (Evelina Hoisel faz análise da epopeia no livro Supercaos: os estilhaços da cultura em PanAmérica e Nações Unidas, editado pela Civilização Brasileira e Fundação Cultural do Estado da Bahia). Caetano Veloso vai responder ao seu próprio chamado no excente prefário à terceira edição do livro.
No campo filosófico, a fraqueza de Caetano, esse compositor que faz uma quase filosofia, no dizer de Gilberto Gil (Songbook de Caetano Veloso) vem de não conseguir dar conta da superação da tola dualidade entre o autodenominado racionalismo (ou o super-racionalismo, junto com ele, que para Caetano é a alternativa racionalista da vanguarda, como se dá na Bauhaus ou no concretismo brasileiro) e irracionalismo (visível em outras formas de vanguarda, como o surrealismo, o que é uma pecha, animais talvez sejam irracionais, não o pretendem ser artistas de vanguarda ou filósofos). Caetano Veloso não considera filosoficamente a criação de uma nova razão (para além das conhecidas e reativas, e que para Bergson seria a razão intuitiva) que nos liberta da fraca e submissa filosofia da consciência (como, por exemplo, o cogito cartesiano), nova razão que produz obras como a filosofia de Gilles Deleuze (a confusão que, no livro, Caetano faz entre esquizoanálise e esquizofrenia patológica é risível) ou as obras de arte experimental do século XX.
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