Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 3
Quando Caetano pensa e fala sobre os autores que mais gosta e mais lhe estão próximos, ou quando nos mostra meandros e minúcias da sua carreira ou do negócio da música que conhece, traz contribuições importantes, reveladas com coragem e pensadas com perícia. O livro sobre João Gilberto, que declara querer fazer, mas sentir timidez, talvez venha a ser uma bela continuação, que Verdade tropical merece, principalmente se Caetano explorar mais ainda o que sabe fazer melhor, que é o sabor poético e narrativo que consegue imprimir ao texto (assim como o próprio Caetano soube reconhecer o caráter de narrativa na entrevista que Augusto de Campos fez com João Gilberto e que está em O balanço da bossa e outras bossas, pp. 251-256).
Outro livro faz um par perfeito com o de Caetano: Geração em transe; memórias do tempo do tropicalismo, de Luiz Carlos Maciel, lançado um ano antes, ou seja, 1996. Ouso pensar que, assim como Crisólogo é uma resposta gerada por Verdade, esta o foi por Geração (sabemos do convite dos editores americanos, mas, mesmo assim, parece que Caetano se sentiu obrigado a responder ao livro de Maciel). As duas obras se parecem, em muitas coisas, e é muito proveitoso lê-las em conjunto, pelo que têm de revelador, de dois pontos de vista, de dois caras que viveram no centro das coisas que contam, pelas informações de primeira mão que trazem, pelas muitas e importantes ligações culturais, pela proximidade de pensamento, e sua diferença, e pelo brilhantismo dos dois autores. Maciel pareceria menos, ao começar seu livro ficamos com uma impressão um pouco frouxa, mas depois vemos que aquilo nele é zen, que ele é muito inteligente e arguto, agudo, capta tudo, apesar de ser tão despretencioso. Em seu livro ficamos sabendo sobre o savoir faire com que encarou o fato de haver acompanhado o florescimento de Glauber, ter sido ator de seu segundo curta, o experimental A cruz na praça, que se perdeu, e cogitado para tantos outros projetos, estar presente ao início do Pasquim, ser um dos primeiros críticos a avaliar de modo correto e generoso o trabalho de Caetano e dos outros tropicalistas, ser guru da contracultura, e o diretor de teatro que “descobriu” O rei da vela de Oswald de Andrade, que decidiu montar, e que cedeu a ideia a José Celso, e um dos poucos precursores da leitura séria da obra de Carlos Castaneda, no Brasil e no mundo.
Quanto a Caetano, o conjunto de suas canções não é o livro sobre o cantor da bossa nova, é preciso compreender isso, apesar de ele se consolar com tal ideia. Esse livro nasceu dentro de Caetano quando escreveu os artigos que abrem Alegria, alegria (“Primeira feira de balanço”, Ângulos, 1965-66), antes de se tornar famoso, onde argumentava contra a crítica de José Ramos Tinhorão, que propunha a permanência do que seriam valores nacionalistas da mpb, e que na verdade representam um momento do diálogo entre a nossa a arte e a do mundo, já que os seres humanos e suas produções são comunicantes. Tinhorão se mostrava prenhe de preconceitos obscuros contra a bossa nova, e Caetano rebate-os, muito bem. Mas o livro que quer escrever sobre seu cantor preferido não foi feito ainda. É clara a presença de Orlando Silva sobre o modo de cantar de João Gilberto, e ele é o primeiro a diagnosticar isso; não concordo, porém, que se possa descartar a vertente, o vetor de força que veio do “mandarim” da nossa música popular, esse gênio do canto que é Mario Reis, que Caetano considera um “anticantor” (o que é um elogio, como a antipoesia pode ser a melhor forma de fazer poesia), e que não teria, segundo seu parecer, influência para o que seria o canto de Gilberto e a revolução da mpb que a partir dele se deu. Ora, o anticanto de Mario Reis inaugura uma nova dicção e um pensar sobre o samba, e ouço ali muito do que viria a ser o século musical do Brasil, que não seria o mesmo se não tivesse ouvido a fluência do canto elegante e inteligente de Reis, inclusive a bossa nova e João Gilberto, mesmo que sua vocalização seja realizada mais próxima, e seja herdeira, de Orlando Silva.
Orlando fazia a sua bossa também, suas inovações, e é uma ponte que vai de Noel a João Gilberto. Havia mesmo um maestro que já dava uma roupagem de luxo para as canções de Orlando Silva, o sofisticado Radamés Gnatalli. Guardadas as proporções, o caldo multi-cultural que Gnatalli ferveu com o canto de Orlando Silva corresponde ao acoplamento da genialidade de João Gilberto com o talento original de compositor e orquestrador de Tom Jobim. A cultura orquestral brasileira é continuada, uma progressão que se desenvolve, como notou Egberto Gismonti na estrevista a João Luiz Macline no programa Por Acaso da tv Educativa em março de 2004. É preciso fazer a superação continuada da música na sua totalidade sinfônica, como também da literatura e da cultura em geral; se libertar dos modernismos, do século vinte, dos grandes monstros sagrados. Seguir as pegadas de Orlando não foi prerrogativa de João Gilberto, antes dele já o tinham feito, cada um a seu modo, muitos cantores. Lembremos também que João foi outro ponto de união e abertura de trilhas da nossa música, tendo sido imitado por líderes de movimentos diferentes, entre eles Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso.
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