Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 2
A problemática do sexo, principalmente no que tange ao homossexualismo, é tratada com alguma dificuldade e angústia, o que não deixa de ser surpreendente num artista que se destacou por trazer à baila o tema do desbloqueio sexual. Como quando ele afirma que fez muito mais coisas em música do que grandes músicos mesmo não sendo um deles, o que é um narcisismo invertido, ele é tão bom em música quanto parece, mas faz questão de sempre afirmar o contrário; e também que tem mais sucesso com as mulheres do que muitos heterossexuais ortodoxos, ele que se confessa um heterossexual heterodoxo, o que é pior ainda, como se a sexualidade pudesse ser assim determinada, e sentir e praticar tendências homo fosse inferiorizar alguém ou tornar essa pessoa estigmatizada. Mas fez muito bem em protestar no artigo “Vá ver o ‘Ham-let’ do Teatro Oficina”, na Folha de São Paulo, Caderno Ilustrado, 21/10/93, pelo fato de um correspondente do jornal New York Times haver afirmado que ele e Gil usam vestidos, “wear dresses”, e são homossexuais assumidos, quando não o são, e tudo que fizeram foi usar sarongs sobre os smokings quando receberam o prêmio Sharp. Caetano propugna a liberdade comportamental, sem que o ser humano precise se determinar como hetero ou homo ou bi, ou outra coisa qualquer; a opção e as práticas sexuais não podem servir para catalogar uma pessoa.
Por outro lado, o maior defeito da obra é o esforço meio malogrado de ser uma abordagem teórica; uma das poucas que Caetano fez até agora . As suas canções, o seu outro livro e o seu filme são poéticos, e é aí que ele é forte e faz o que sabe. Quando tenta costurar um discurso puramente intelectual, Caetano se torna confuso e inconsistente. Mesmo assim tal característica não chega a tirar o valor do livro, ainda que o faça cometer injustiças ou enfraquecer questões.
O que talvez tenha dificultado tudo desde sempre é o fato de nunca antes ter havido no Brasil uma figura popular com tanta pinta de intelectual quanto eu.
(Alegria, alegria, p. 87, junho de 1972)
É um ponto delicado, porque a proposta dele foi escrever como poeta um texto que falasse do seu tempo e da arte do seu tempo, e da sua, do quanto ela recebeu influência deles. Logo é consequente que trate dos problemas teóricos pertinentes ao assunto, e as críticas que fazemos aqui não significam desvalorizar a atitude corajosa de se embrenhar com talento pelos emaranhados da teoria. Mas há uma certa mania de onipotência que se percebe quando o autor faz colocações abrangentes e quer que sua contribuição consciente e importante para questões como a afirmação da arte brasileira ou os caminhos da música popular dentro da indústria do entretenimento sejam globais e expliquem tudo, como se estivesse produzindo um estudo histórico ou sociológico de fôlego, para o qual não investiu e não tem vocação. É o seu trabalho poético que tem o peso da teoria, o que parece um paradoxo, e é. Pois a teoria vem do verbo “teorein” grego e significa “ver”, é uma ação ligada à capacidade de fazer distinções e avaliações de ideias e de juízos, de formas de compreender o real, e a ação humana sobre o real. Já a poesia vem de “poésis”, que significa “fazer”, e é o agir real sobre o real, isto é, o agir prático que transforma o real. Há, portanto, abordagens, saberes e práticas poéticas ou teoréticas. O que Caetano faz não é teoria hora nenhuma, ele não se liga às estruturas subjacentes ao saber teórico, não trabalha com conceitos, ou com formulações teóricas. Ele mesmo fala muito seriamente na canção “Ele me deu um beijo na boca” do álbum Cores, nomes: “E a crítica que não toque na poesia”.
No entanto pensa, e pensa bem. O que ele faz é poética, o tempo todo, e desde Nietzsche, pelo menos, sabemos que a poesia pode ser também pensamento – não obstante Nietzsche foi um teórico. Por causa dessas e outras é que eu criei a palavra “poeteorético”, para dar conta de um poeta que trabalhe a poesia, fazer artístico, com a densidade e as implicações da teoria, o que não significa necessariamente que ele seja um teórico puro também, o que pode acontecer, mas com Caetano se dá que ele é só poeteorético, quer dizer, ele faz só poesia, que se amaranha toda com as problemáticas da teoria. E é aí que seu pensamento é mais forte e mais influente.
Roberto DaMatta contou, no programa da televisão Educativa do Rio de Janeiro, Conexão Roberto d’Ávila, de 28 de setembro de 2003, que foi a audição que fez da canção “Tropicália” de Caetano Veloso, em 1968, que o levou a desenvolver suas teorias sociológicas sobre a importância do carnaval para a identidade da sociedade brasileira. Roberto DaMatta fazia doutorado na Univesidade de Cambridge, elaborando observações que havia realizado no início da década de sessenta, instado a se tornar etnólogo por seu mestre Darcy Ribeiro (“Na noite em que eu conheci o Darcy eu não consegui dormir”), quando morou com a tribo dos apinagé, da família jê. No último ano de permanência nos Estados Unidos, um dia, escutou sozinho em casa dois discos que amigos do Brasil haviam lhe enviado, um com “Tropicália”, o outro com “Baile dos mascarados”, de Chico Buarque de Hollanda, cantado por Nara Leão e Gilberto Gil. Ele percebe em “Tropicália” uma canção com uma letra neoconcretista, com elementos surrealistas, e que estabelece um tipo de diálogo que vai driblar a repressão da ditadura. Descobre a importância da festa, uma “estrutura de longa duração” que vai se modificando, passa pelos carnavais medievais, o bal masqué e o entrudo, no Brasil colônia, no qual coisas e líquidos eram arremessados contra os passantes, e que todo o elenco do carnaval na Idade Média aparece no carnaval brasileiro. A partir da audição das versões tropicalistas, escreve de imediato o artigo “O carnaval como um rito de passagem” (Ensaios de antropologia estrutural), que vai ser um programa de trabalho que ele desenvolverá durante vinte anos, escrevendo livros como Carnavais, malandros e heróis. Esse é um exemplo do peso da arte de Caetano como pensamento, que influencia a teoria (estabelecendo com ela um corpo continuado de pensamento enquanto arte, sem precisar ser teoria também).
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