Alguma coisa sobre Caetano Veloso – parte 1
trechos do livro Crisólogo o estudante de poesia Caetano Veloso. Rio de Janeiro: HP Comunicação, 2004.
Luis Carlos de Morais Junior
Caetano Veloso é um dos mais queridos cantores e compositores da música popular brasileira, que é a forma mais reconhecida de expressão artística do nosso país. Ele canta de uma maneira muito bonita e cativante, faz melodias que ficam, e suas letras são verdadeiros poemas, com alta qualidade literária. Possui o “toque de Midas”, pois tudo que toca vira ouro, e vira outro, isto é, quando se envolve nos projetos ou dá a sua interpretação particular, mesmo que seja para canções consideradas de mau gosto, estas se tornam sucessos e passam a ser consideradas lindas (como aconteceu com “Coração materno” de Vicente Celestino em 1968, no disco Tropicália, e “Eu vou tirar você desse lugar”, de Odair José, no evento Phono 73, por exemplo). É Caetano quem afirma:
Mais que um projeto musical, é um projeto de vida quebrar, à minha maneira, a estrutura social e econômica do Brasil. Gravar esses compositores sempre foi para mim uma forma de gritar contra o apartheid social brasileiro. /…/ Muita gente me acusa de falta de critérios quando defendo esse ou aquele tipo de música, de defender o vale-tudo. Mas o que eu busco é complexificar os critérios. Era essa complexidade que eu buscava em todas as vezes que provoquei o bom gosto dominante de Vicente Celestino ao “Tapinha”.
(O Globo, Segundo Caderno, 29/06/2003)
Isso inclui, não apenas o mau gosto oficial, ou oficializado, mas também o soi disant bom gosto, ou bom senso, que não o assusta, mesmo que o pratique, sempre crê poder revitalizar aquilo:
É evidente que com a Carolina tudo foi diferente: de certa forma é uma das músicas aparentemente mais medíocres do Chico, parece música normal de rádio etc. Por um lado, é isso o que mais me atrai nela: eu sempre tenho vontade de gravar (cantar) coisas que já se tornaram opacas, que já estão fazendo parte da geleia geral, e tentar reiluminá-las.
(Carta a Luiz Carlos Maciel, Geração em transe, p. 230)
Caetano Veloso foi o primeiro artista brasileiro a ter todos os seus discos convertidos em disco laser (cd, que quer dizer compact disc), o que foi facilitado pelo fato de toda sua carreira haver se constituído na mesma gravadora, Philips.
Eu adoro CD. Tem uma pureza, um silêncio… Com o CD você pode ouvir uma faixa só. Não precisa ir lá longe com o braço da agulha procurar uma canção no LP. Isso dava um trabalhão. Da fita cassete nem se fala. Você anda pra frente, anda pra trás, não acha a música e aí desiste.
(Entrevista a Márcia Cezimbra, Jornal do Brasil, 16/05/1991)
Além disso, protagonizou o maior movimento cultural da segunda metade do século XX do Brasil, a Tropicália, como ele prefere chamar, e tem uma atuação inteligente e superinformada que se derrama por outras áreas, aonde consiga chegar: cantor e compositor, instrumentista, ator, diretor de clipe e filme (O Cinema Falado, 1986), autor de várias trilhas, publicou até agora um livro de artigos e entrevistas (Alegria, alegria, 1977) e um excelente estudo sobre sua própria obra e o ambiente cultural que a cerca (Verdade tropical, 1997), que, a princípio, seria um depoimento sobre o tropicalismo do final dos anos 60 e início dos anos 70, mas suas colocações se estendem no tempo e no espaço, para além do período proposto, e Caetano se posiciona face praticamente a tudo que aconteceu na música brasileira do século XX, e boa parte do que aconteceu nas outras artes também (este estudo Crisólogo foi escrito em 2003 e 2004, e neste ano publicado; em novembro de 2005 veio a lume O mundo não é chato, que reúne em livro vários textos escritos por Caetano para jornais, revistas e releases). O que mais realça Verdade tropical é a honestidade intelectual de Caetano, o seu esforço por ser claro e verdadeiro tanto com suas intenções e investimentos quanto na avaliação dos movimentos de outros artistas e pensadores. O livro é um acontecimento fundador na história da cultura mundial, um artista, cantor e compositor popular, mostrando as motivações e ligações de sua obra com tanta base e fluência, revelando-se um estudante vital, que pesquisa as coisas e procura compreender sempre melhor o mundo e a arte. Outra qualidade que se destaca é a feição de narrativa do texto, lemos Verdade tropical como um romance muito interessante e que prende a nossa atenção, um romance de ideias e, ao mesmo tempo, o périplo de um jovem brasileiro em sua busca pela forma artística. O recurso de auto-remissão, que fecha/abre e entrega ao leitor o livro, os diálogos implícitos, o uso do discurso indireto, as digressões e fluxos de consciência, a abordagem da experiência com a droga, o texto limpo e bonito, a criatividade e novidade das imagens, a ironia inteligente que brinca com o próprio texto, as citações explícitas ou implícitas, a metalinguagem e outros efeitos estéticos (alguns conhecidos no Caetano poeta, alguns próprios do escritor que já sabíamos dos textos do Pasquim e de outros jornais) são qualidades literárias visíveis na obra. A humildade verdadeira também ressalta, Caetano não esconde sua influência do tempo, dos artistas que conheceu, do social. É claro para o leitor que ele fez o que fez porque estava no lugar e no momento certos, isso sem tirar a valia do seu talento ou o mérito de sua abordagem. Há narcisismo também, o autor é o primeiro a brincar com isso, mas essa característica não torna obtuso o Caetano artista.
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