A Montanha de Ouro

Luis Carlos de Morais Junior
Segundo Clément Rosset, nas suas obras Lógica do pior (1971) e Anti-natureza (1973), a filosofia é remédio contra a loucura humana, e para a filosofia é remédio o pensamento trágico, que não representa a natureza nem a finalidade, e sim apenas vê o mundo como artifício. Essa liberação é a liberdade do humano, possível quando entendemos num certo nível que parece ou pode parecer uma iluminação espiritual para o senso comum, mas que é o que Espinosa chama de terceiro gênero de conhecimento, contrário de conhecer essências, é conhecer o sem natureza de toda a natureza.

E foi a maior revolução do pensamento humano, várias vezes iniciada e combatida, mas, no nosso mundo contemporâneo, iniciada com Hume, e retomada, a contragosto, com todo o gosto, por Kant.

Hume se constitui num dos transformadores de energia que permitiu a constituição da contemporaneidade, para lá dos esforços retrógrados de Kant, e que vai ser um relé de ligação entre Heráclito e os atomistas e os futuros filósofos da expressão (Espinosa, Nietzsche).

Em Investigação Sobre o Entendimento Humano (1739-40) David Hume pergunta sobre a origem das ideias, que é o ponto de partida do estudo a que procede sobre a maneira como o entendimento humano funciona, e a validade do nosso conhecimento, considerada à luz do que for descoberto a respeito do modo e do escopo pelo qual é produzido. Ele começa por verificar que entre a percepção sensível ou impressão direta, em presença do agente estimulante, e a lembrança que porventura dela guardamos, e que podemos trazer de volta à mente depois, a primeira, a impressão, tem uma força muito maior e uma presença facilmente reconhecível, por parte de qualquer indivíduo são. A partir daí, divide as percepções do espírito em duas classes distintas, por seu grau de força e vivacidade: as impressões e as ideias, que são as imitações que o espírito faz das impressões que anteriormente viveu.

Acrescente-se a isto que a aparente liberdade absoluta do pensamento e da imaginação humanos é na verdade bem mais restrita do que o nosso senso comum acredita, pois as ideias de seres fabulosos são na verdade regidas pela faculdade que o espírito tem de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos. Por exemplo, podemos imaginar uma montanha de ouro através da simples operação de combinar as ideias de ouro e de montanha, oriundas ambas de nossa experiência.

Assim, Hume propõe que todas as nossas ideias (ou percepções mais fracas) são apenas cópias de nossas impressões (ou percepções mais vivas), o que é uma inversão do platonismo.

Tendo chegado a este ponto, cabe ao pensador inquirir sobre o modo de funcionamento da mente, ao produzir e estabelecer conexões entre as diferentes ideias, isto é, investigar de que maneira as ideias se relacionam. E ele identifica as regras gerais consoante às quais a faculdade pensante humana funciona: a contiguidade (estabelecimento de relação entre duas coisas devido à sua proximidade no espaço ou no tempo), a semelhança e a causalidade. Esta teoria se assemelha à teoria dos signos de Charles Sanders Peirce, que vai ser utilizada por Gilles Deleuze para formular a sua teoria da imagem-movimento e da imagem-tempo em Cinema II. Peirce classifica os signos em três tipos: índice, signo natural, funciona por contiguidade; ícone, sinal não sígnico, por semelhança e símbolo, signo artificial, por convenção.

Estas regras de relação não pertencem às coisas, nem às impressões e nem às ideias. Elas são na realidade a forma arbitrária e humana pela qual o nosso entendimento relaciona as ideias.

Isto posto, o princípio da causalidade vê-se como recurso do entendimento, e apenas isto, o que vai redundar, segundo Hume, em colocar em xeque as verdades assentes da metafísica e da ciência experimental.

A causalidade é uma interpretação humana que se apóia no hábito que temos de esperar que dois acontecimentos separados que já se sucederam uma ou mais vezes voltem a se suceder, supondo-se assim que exista um misterioso vínculo que os liga um ao outro. O fato de outras vezes o pão ter alimentado não significa necessariamente que ele volte a fazê-lo, o céu nublado pode ser causa de chuva, mas nem sempre o é. De um relógio encontrado em uma ilha deserta se supõe a presença anterior de um homem na ilha, considerando-se arbitrariamente que houve um homem que possuía um relógio e que o perdeu.

A contiguidade e a semelhança concorrem para criar a ficção da substância. O homem perceberia através de seus sentidos diferentes qualidades que ele se acostumou a encontrar juntas em uma dada coisa (a frequência maior ou menor dos encontros gera o costume, mas ele sempre pode encontrar a coisa sem alguma daquelas qualidades ou as qualidades em alguma outra coisa). Uma laranja é redonda, amarela, cítrica etc. A partir da repetição de encontros que o entendimento considera semelhantes e da contiguidade de qualidades o homem desenvolve o hábito de supor a coisa sempre igual, que gera a crença na substância extensa.

A ideia de alma ou eu também seria criada pelo mesmo processo, através do hábito de relacionar diferentes estados de alma e impressões, como se estivessem enfeixadas em uma consciência isolada, cria-se a crença na alma ou na substância pensante.

Pelo mesmo raciocínio o tempo (sucessão de diferentes estados de alma), o espaço (descontinuidade de pontos luminosos, que a mente humana interpreta como relacionados em um conjunto que pressupõe um espaço), o mundo (o todo da substância extensa) e Deus (o todo da substância pensante) são considerados por Hume ficções, criações da mente humana, que visam a viabilizar a nossa vida, mas que nada de real revelam sobre o ser além de se mostrarem como são, formas do entendimento humano.

Nota-se que a crítica é basicamente à noção de todo: o eu e o mundo e Deus bem como o tempo e a matéria são para ele acontecimentos não totalizáveis, que tendem para os encontros onde criam efeitos de totalidade, mas que são sempre parciais.

Immanuel Kant se diz desperto do seu sono metafísico pela obra de Hume, e procura dar uma resposta à altura, que tornasse possível o conhecimento humano, depois da crítica ou desconstrução das ideias de causa e natureza; com esse propósito em vista constrói sua magnífica obra Crítica da razão pura (1781), na qual propõe o espaço e o tempo como formas a priori da consciência humana, que não estão nas coisas, mas que dão a inteligibilidade e a experimencialidade das coisas para o homem, a partir da formatação do fluxo incompreensível (que ele vem a chamar de “noûmenos”) em estruturas que o homem pode compreender e com as quais consegue lidar (que ele chama “fenômenos”), captados na experiência a posteriori. Ainda cria ou descreve as categorias do entendimento, derivadas dos tipos de juízo possíveis (numa composição com a lógica de Aristóteles): juízos de qualidade (afirmativos, negativos e indefinidos), de relação (categóricos, hipotéticos e disjuntivos), de modalidade (problemáticos, assertórios e apodíticos) e quantidade (universais, particulares e singulares); aos quais correspondem: realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade (ou ação recíproca), possibilidade, existência, necessidade, unidade, pluralidade e totalidade.

O que acontece é que se a forma do tempo e do espaço e as formas que as coisas assumem na contiguidade e as formas dos eventos na continuidade são projetadas a partir da mente humana, novamente a causalidade está colocada em questão.

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