A marcha dos zumbis
Acorda, Pataco, tá na hora!
Essa voz que vinha de algum lugar fora do tempo e espaço, e que enchia meu saco, tá sempre na hora, hora de dormir, hora de acordar, hora de quê?
Odiava o Brumas & Avalons, odiava as donas Patrícia e Leonor, com seu jeito auto-suficiente e desdenho em relação aos homens, se bem que elas tivessem os delas, um, um engenheiro de produção, um, um agente da Bolsa, mas eles não entravam em cena, Brumas & Avalons era toda delas, e elas eram as rainhas tiranas ditadoras absolutas.
E ele o mais baixo dos esparros.
Havia os programadores. Havia os produtores.
Havia os desenhistas, os redatores, os diretores.
Havia os copistas, capistas, copeadores.
Havia as secretárias e os “pau-pra-toda-obra”.
Era uma firma grande e cara, cara.
E havia ele. Ele e mais dois como ele. Os boys, office boys, motoboys, os boyzinhos, os vá-lá-pagar-pegar-levar-moleque-boys.
Essa a pirâmide. Ele e Tico e Teco eram a base. Tipo apelidos, ele era o Pateta.
Essa a sua patota.
Ele amava moto, por isso entrou nessa fria.
E agora precisava sempre das notas pelegas que elas forneciam, avaras, aos poucos, em troca de muito trampo e toda tralha/trolha.
Por isso ele odiava o grito agudo do relógio que o fazia acordar pra trabalhar.
Sua mãe dona de casa e seu pai aposentado sempre falavam: – Marco arruma um estudo de noite, faz faculdade.
Ele quando dava seis horas da tarde estava um trapo.
Só servia pra beber cerveja ou refri comer muita muita pizza se empanturrar e tentar cantar as mina do shopping que não olhavam pro teu lado, MOTOBOY.
Ele quando juntava uma grana ia nas prima.
Gostava/gastava nessa ordem: moto, prima, trash, zumbi, pizza.
Trash era sua música, seu filme, suas comics.
E de todas, preferia zumbi.
Agora, tinha prima que parecia zumbi, também.
Talvez de tanto aguentar palhaço pela madruga, elas ficavam meio fora de si, como uma dor que não dói, um corpo que age igual uma maquininha, e nem sente o peso da tralha/trolha. Igual ele ficava, no trampo da Brumas & Avalons. Igual um zumbi.
Por isso amou quando soube que naquele findis ia rolar a 1ª Grande Marcha dos Zumbis de Sampa.
Agora ele enfelizou.
Lembrou que o treco não estrilava pro trampo, mas sim porque logo depois das doze ia começar a marcha, com concentração no MASP, e ele queria acordar no mínimo umas quatro horas antes, pra poder se produzir legal.
Ia ele, o Tico, o Teco e a Prazinha, uma mina que eles conheciam desde pivetes, mas que eles nunca quiseram pegar, talvez porque fossem amigos demais, tipo irmãos assim. Também ela era feia paca. Talvez só ela nem precisasse de disfarce e produção pra ir na marcha. A marcha! A grande marcha! A grande mancha!!
A primeira Grande Marcha dos Zumbis de Sampa.
Rolando por todo centro novo, espisoteando a cara lisa e perfumada da Paulista, mostrando o oco do mundo pra todos aqueles boyzinhos que só conheciam Rua Augusta e Disneylândia, que virava Miami e Ibiza, quando eles se achavam adultos.
Sentia um prazer gigantesco de fazer a marcha naquele domingo, como se ele estivesse se vingando de todas Pats e Leonores do mundo, e de tudo que não teve, que não pode, que não fez etc.
Todo animado, foi se vestir, com os trecos que tinha comprado na sexta, na rua Direita.
Estava horrível, com manhas de iodo pela cara, todo rasgado, e umas gelecas coladas por toda parte, como se fossem carnes caindo.
Tico e Teco eram mais do mesmo, como tantos, pareciam centenas, milhares na verdade, Pataco sentiu algo quente, acho que estava feliz.
Aí chegou Prazinha, que ele conhecia da outra rua e brincavam desde crianças, e que ele sempre achou que:
é muito baixa;
fala mal;
é desengonçada;
é magra sem formas voluptuosas;
é sem sal;
tem mau hálito;
sempre foi sua amiga perfeita.
Porque nunca deu vontade de cantar, mesmo.
Tico e Teco falavam em coro com suas vozinhas que ela era super afim dele, ele nem registrava, porque Tico e Teco eram como os neurônios que eles nomeiam, atomizados, e ele nem achava que uma menina tão sem graça fosse algum dia gostar de alguém, ousasse achar que tinha alguma chance.
Ela chegou estranha.
Muito estranha. Seus olhos brilhavam, com um brilho negro e mau.
Ela quase não trazia maquiagem, só uma roupa preta e lilás. Seus cabelos confusos como sempre, ela sarará não alisava, como todas fazem hoje.
– Eu sabia que tu não ia se disfarçar…
Tico e Teco riram maus, com mãos na frente das bocas.
Pela primeira vez ele pensou: será se eles são gays?
Ela respondeu:
– Eu sou monstra natural. Eu sei.
Eles não ligaram, eram muito mauzinhos os três, com sua amiga de coração e de infância, que já tinha vinte e sete e nunca tinha namorado, será se ela nunca tinha transado, será se era virgem????????????????????????????????????????????????????
Foram desaguando sua revolta de filme sobre a linda Paulicéia vazia de domingo, bem, não tava vazia, tinha muito paraíba e oriental pela rua, comendo pastel chinês, churrasco grego, caviá russo, era a própria Babel legal, nossa samba querida; que alegria derramar nossa monstruosidade sobre você todinha, nossa cidade-monstro do Brasilmundo.
Uma mulher tava dando ponto pra ele!!!!
– Pateta, no es posible! – disse o Tico.
– No creo en brujas, pero que las hay, las hay – perolou Prazinha, bem direto na sua boca, e ele pensou, aí vem o bafão!! Mas qual o quê, veio um aroma delicioso, de perfume, de bolo da mamãe.
Mulher com perfume na boca!
Eu to ficando maluco.
A zerinha da Praza!!!!!!
Teco urrou e ecoou pelos prédios:
– Segura peão!!
Tanta coisa incrível.
A mulher era enorme, parecia uma manequim, e NÃO ERA TRAVESTI.
Sua voz era melodiosa, trazia um hematoma pintado na cara e uma caveira na malha, e o chamou pra sair, ela se chamava Inês.
E ele claro que ia…
Mas, quando estava dispensando o Tico o Teco e a Prazinha, esta pegou na sua roupa com força, uma força que ele nunca achou que ela teve, ou poderia ter, com seu tamaninho, seu bracinho fininho, ela puxou pela gola dele e quase o enforcou, e falou:
– Marco, se tu for com essa aí, eu te mato, ouviu?
Ele falou deslumbrado:
– Você nem me chamou de Pateta!!!!!!!
Ela o puxou com força, muita força, parecia um aço:
– Vem.
Tudo sumiu, os amigos, a modelo paquera, os malucos do centro novo e velho, a cidade, tudo.
Quando viu era noite.
E eles estavam sozinhos, dentro do cemitério.
– Como você conseguiu trazer a gente pra aqui? O portão ta fechado.
– Cala a boca e me beija, ela falou.
E quando ele viu a sua verdadeira face, a sua face de monstra superpoderosa e cruel, que ela nunca mostrou pra ninguém, que agora lhe revelava por amor – quando ele viu a verdadeira Prazinha, soube que a amaria pra sempre, por mais monstruosa e cruel que ela fosse.
E ela o era.
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