A filosofia – parte 3
Diante de uma cadeira o Mito procurará fundar o herói ou deus que primeiro utilizou uma cadeira e a concedeu à humanidade. O homem do senso comum vai dizer: ué, a cadeira serve pra sentar, que bobagem perguntar, querer falar algo, além disso. O cientista vai estudar a cadeira como referente, coisa do mundo, que ele a vai analisar nos seus aspectos mecânico, vetorial, estrutural, molecular, quântico, através dos functivos da Ciência (v. Deleuze e Guattari, O que é a Filosofia?). Já o artista irá produzir algum duplo da cadeira, criando realidades virtuais, nas quais a cadeira atual que está na sua frente pode ser um simulacro mais ou menos fiel, pois ele pode pintar ou escrever ou filmar uma cadeira gigante ou animada ou o que ele quiser. O filósofo não encara o objeto como coisa do mundo, dado positivo que cumpre compreender, ou motivo para a recriação sensível do mundo; mas sim como uma forma de pensar e investigar as bases do pensamento sobre o mundo, o que é a cadeira, o que é a matéria, o que é o tempo, o que é o espaço, o que é este que percebe a cadeira, ele realmente o faz ou se engana, ou realmente percebe mas se engana no modo como percebe, o que é a essência da cadeira etc.
A Arte, a Filosofia e a Ciência vivem da sua criatividade, mesmo que muitos artistas, filósofos e cientistas, ou professores dessas coisas, sejam tão dogmáticos quanto o homem do senso comum, e não queiram aceitar inovações; ainda que uma minoria realize a Arte, a Filosofia e a Ciência como pensamento, elas só ganham sua dimensão quando são realizadas com criatividade e abertura, feitas com dogmatismo elas pouco preservam de suas características, e tendem a se parecer com o senso comum ou com o Mito.
Vamos pensar aqui sobre as diferenças entre Ciência e Filosofia, e por que a Filosofia não pode ser arrolada entre as Ciências humanas, já que não é uma Ciência. A Ciência pode compreender as coisas do mundo em três níveis, que correspondem às três grandes divisões das Ciências.
Tomemos como exemplo a Clara, ser humano, uma gata e uma pedra. Os três podem ser estudados pelas Ciências físicas, pois todos têm moléculas, átomos, energias etc. Quanto aos aspectos cobertos pelas Ciências biológicas, só Clara e a gata são constituídas de células, tecidos que desempenham funções orgânicas. Mas apenas a Clara possui certos aspectos que não dizem respeito nem à pedra nem à gata, e não são entendidos pelas Ciências físicas ou biológicas: ela ama, estuda, trabalha, compra, vende, vota, se informa e outras coisas.
Esse nível do simbólico é o campo da investigação das Ciências humanas, e se abre em três frentes: o exterior social (ao qual correspondem a sociologia, a política, a antropologia, a economia, a história etc), o interior psicológico (Ciências psi) e a linguagem que é a ponte entre o eu e a sociedade (Ciências da linguagem, linguística, gramática, semiologia, semiótica, filologia entre outras; Ciências da literatura, crítica, teoria literária, história literária, semiologia, poética, criteriologia etc).
Claro que a separação é artificial, um fato psicológico como sonhar já é social e linguístico por natureza, um acontecimento social como votar já é também totalmente linguístico e psicológico, a linguagem é o tempo todo marcada pela psicologia do indivíduo e do grupo e pelo social.
Essas são as Ciências humanas, que como todas as Ciências trabalham com um referente, que no caso é o campo simbólico que faz o ser humano ser o que é. É o que o diferencia dos outros seres, e é condição para seu desenvolvimento saudável. As Ciências humanas estudam aquilo que torna o ser humano ser humano: o simbólico.
Uma criança criada sem nenhum código linguístico ou social, sem programação simbólica vinda do meio, não consegue se tornar adulta. Bebês que foram criados por lobas ou macacas tornam-se para todos os efeitos comportamentais parte integrante do grupo de animais no qual cresceram, como se a genética humana que aceita e pede programação semiótica vinda de fora pegasse aquela dos animais que, mesmo que insuficiente, serve como substituto. Esses indivíduos quando são encontrados, já adultos, e trazidos para a sociedade humana, não conseguem se readaptar.
Já a Filosofia não estuda essa dimensão simbólica do ser humano, não estuda nada, porque não é um estudo, uma Ciência. É claro que podemos dizer que estudamos pintura, natação ou japonês. Mesmo assim, essas coisas não são estudos, a pintura é uma arte, a natação um esporte, e o japonês uma língua.
Assim, podemos dizer que estudamos Filosofia. Mas a Filosofia em si não é um estudo, não estuda nada, ela pensa o fundamento do pensamento de todas as coisas.
Filosofar é fabricar conceitos. Assim como podemos dizer que uma poesia metalinguística fala sobre o próprio fazer poético, a filosofia pensa o próprio pensamento.
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